Saber História é
muito bom. É essencial, como sempre afirmaram filósofos, historiadores, antropólogos e tantos outros. É fundamental para entendermos nosso tempo e sua relação com fatos do passado, percebermos perspectivas outras, estabelecermos cotejo, abrirmos nossos horizontes, refletirmos e apreendermos o que está por trás dos acontecimentos de forma ampla e não a partir, unicamente, do nosso ponto de
vista, ou do ponto de vista de quem conta a história.
Sim, porque
ponto de vista é a vista a partir de um ponto. É vital, portanto, ter
outras visões. Visões a partir de outros pontos, pontos
de vista diferentes.
|
Estátua de Martinho Lutero com a Bíblia aberta (1821). Praça do Mercado de Wittenberg, Alemanha. |
Hoje, abordo aqui o
tema da Reforma Protestante e as
celebrações pelos seus 500 anos, já que em 2017 comemora-se o quinto centenário do movimento.
O que foi a
Reforma? Sabemos, de fato, seu significado e como se deu? Ou apenas nos lembramos, vagamente,
daquilo que lemos há tempos nos livros escolares? Ou, pior ainda, com nossos parcos conhecimentos, nos encrespamos
como gatos ameaçados sempre que ouvimos falar no
tema?
Vou tentar
sintetizar o máximo possível. Quem quiser mais informações poder pesquisar nos
bons livros ou começar nos endereços abaixo.
Cenário 01: Wittenberg, Alemanha, outubro de 1517.
A partir de seus
estudos da Bíblia, o alemão Martinho Lutero
(1483-1546), monge agostiniano, professor e doutor em Teologia,
contestou algumas práticas da Igreja Católica Romana. Após ler atentamente a Bíblia, encantou-se com os escritos de Paulo e percebeu que os
homens poderiam aproximar-se de Deus sem intermediários, graças à própria fé; que era preciso acreditar na misericórdia de divina; que pecados não
podiam ser apagados, como era comum na época, com a compra de indulgências e que a Bíblia era a única referência da Verdade. Assim, Lutero alegava que todos deveriam ter acesso direto à Bíblia, não em latim ou hebraico, mas em sua própria língua. Criticava os abusos da
autoridade papal, colocando em dúvida a tese da infalibilidade do papa e clamava por uma profunda reforma geral na moralidade religiosa e pública.
Inicialmente, o contestador Martinho Lutero falava disso apenas em suas aulas de Teologia, mas, ao pretender discutir abertamente os temas, acabou chamando a atenção da Igreja.
|
Catedral de Wittenberg, na Saxônia, Alemanha, onde Lutero teria afixado suas 95 teses. |
Em 31 de outubro
de 1517, reuniu seu pensamento em 95 teses ou cartas, como era de praxe quando se queria discutir algo. Alguns historiadores discordam do fato de que ele teria colado suas teses em um cartaz na porta da
igreja de Wittenberg, na Alemanha. O fato é que, com a imprensa nascente, suas teses foram logo copiadas e espalhadas pela Europa. Suas colocações buscavam retomar a proposta e o espírito original do Cristianismo, propondo uma fé vivida na vida comum. No entanto, em função de seus questionamentos, Lutero acabou contradizendo os poderosos da época: o Imperador Carlos V e o Papa Leão X. Resultado: foi excomungado
pela Igreja e declarado fora da lei pelo soberano.
Era o início de uma
revolução religiosa, histórica e cultural, um cisma entre católicos e protestantes que mudou a
Igreja, a Alemanha e o mundo. Era o início de uma nova era. Historiadores chamam a atenção para o fato de Lutero não ter sido o único reformador do período, citando outros como Ulrich Zwinglio e João Calvino. Alegam também que a reforma seria um movimento bem mais amplo do que a chamada 'Protestante', lembrando o momento vivido com a transformação promovida pelo Renascimento, através de figuras do porte de Leonardo da Vinci e Maquiavel.
Cenário 02: Play Mobil lança
bonequinho de Lutero, fevereiro 2015.
|
Fev. 2015. A empresa PlayMobil lança 34.000 peças do Pequeno Lutero. Imagem: dw.com |
Apaixonada por
PlayMobil, desde o tempo em que meus filhos eram crianças, fiz um post sobre o
lançamento do boneco de Martinho Lutero, ocorrido em 2015, já antecipando as comemorações
dos 500 anos da Reforma. Nas primeiras 72 horas as 34 mil peças produzidas se esgotaram. Ver aqui.
Cenário 03: Documentos de Lutero declarados
Patrimônio Mundial, março 2016.
A Unesco declarou como Patrimônio da Humanidade os documentos de
Lutero, entre eles cartas, um
cartaz contendo as 95 teses e um exemplar da edição da Bíblia em
hebraico. Na justificativa lê-se que “os documentos mostram como um
impulso religioso conseguiu desencadear um profundo processo de transformação.
Tal movimento teria mudado a religião, a política, a sociedade e a cultura,
através de uma nova forma de divulgação midiática, a impressão.”
A propósito, a lista de Patrimônios da Humanidade inclui vários documentos considerados como um tipo de memória digital da
humanidade: autênticos, de relevância internacional, únicos e insubstituíveis. A lista inclui desde partituras de compositores famosos aos diários de Anne Frank.
Cenário 04: Lançada edição revisada da Bíblia de
Lutero, abril 2016
|
Castelo de Wartburg, onde Lutero traduziu a Bíblia para o alemão. Imagem: DW. |
Depois da excomunhão, Lutero abandonou a ordem agostiniana, casou-se e já como herege iniciou, no castelo de Wartburg, a tradução da Bíblia para o alemão, para ampliar o acesso ao livro sagrado. A primeira edição do Novo Testamento em alemão foi lançada em 1522, quando o reformador contava 39 anos. Doze anos depois, seria lançada a versão completa da Bíblia. Com impressionante
estilo linguístico, Lutero ajudou a moldar a língua alemã, unificando
dialetos regionais e colaborando com o desenvolvimento de uma identidade nacional.
Em 2016, foi lançada a mais recente edição
da Bíblia de Martinho Lutero em alemão, a
quarta ao longo dos séculos, depois de dez anos de preparação e revisão e de um trabalho que
envolveu 70 teólogos.
Na edição especial, há ainda páginas adicionais
descrevendo a vida do reformador e tradutor da Bíblia, além de
preâmbulos das primeiras edições. A edição, também disponível em formato digital, conta com várias versões de capas, criadas
por artistas e celebridades daquele país, sempre com o intuito de provar que este é um livro central na vida de todos.
Cenário 05: Lund, Suécia, outubro de 2016
|
O presidente da Federação Luterana e o Papa Francisco. Segundo a DW, a Federação Luterana mundial reúne, hoje, 145 igrejas em 98 países e mais de 74 milhões de pessoas. Imagem: http://www.dw.com |
Em outubro de
2016, ao lado de líderes luteranos e do casal real da Suécia, o sempre admirável
Papa Francisco, nascido Jorge Mário Bergoglio (1936, Buenos Aires) participou
de uma cerimônia ecumênica para marcar o início das comemorações da data. A declaração conjunta assinada pelo papa e por Munib Younan, presidente
da Federação Luterana Mundial, dá o tom do evento: "O que nos
une é maior do que o que nos separa".
(1)
[Pausa para respirar,
agradecer e aplaudir com o coração.]
Sem dúvida, a
capacidade de diálogo do papa Francisco é tamanha que levou a jornalista da DW
Astrid Prange a afirmar que se Lutero voltasse hoje para comemorar a data,
“certamente se entenderia melhor com o papa Francisco do que com os pontífices
de seu tempo”. Destaca a jornalista que, apesar de suas falhas, como seu conhecido antissemitismo, Lutero era corajoso, combativo e fiel à sua consciência. Salienta que suas teses
pressionaram a Igreja e abriram caminho para o Iluminismo, para a liberdade religiosa e para a tolerância. Ela
continua:
“Se ele [Lutero] soubesse que Francisco
homenageia a Reforma junto a protestantes justamente no dia 31 de outubro, na
Federação Luterana Mundial em Lund, na Suécia, ele gostaria de estar entre
os convidados. Talvez ele se arrependesse amargamente de, certa vez, ter
chamado o papa de anticristo. Pois este pontífice também é corajoso e quer
reformar a própria Igreja.” (2)
Em seu sermão,
na catedral de Lund, os líderes cristãos pediram perdão à humanidade pelas mortes causadas a
partir da divisão da Igreja. Conta a História que, com o início da Reforma, vários conflitos
religiosos se espalharam pelo mundo, como a sangrenta Guerra dos 30 Anos (1618 a
1648) e as diversas punições, mortes e deportações daqueles que rejeitavam a
fé luterana. Os dois líderes afirmaram que “recusam energicamente todo o ódio e toda violência,
passada e presente, especialmente a cometida em nome da religião" (3).
Cenário 06:
Alemanha e Brasil, abril 2017.
Em conjunto, Brasil e
Alemanha lançam um selo e um carimbo em comemoração à data. Os selos trazem o retrato de Lutero e a frase "No princípio era a
palavra", nos respectivos idiomas. A concepção do selo é da designer
alemã Antonia Graschberger, de Munique, também responsável pelo carimbo com a Rosa
de Lutero, símbolo que ele usou, a partir de 1530, para autenticar suas
cartas e obras.
Em 1983, os Correios do
Brasil já haviam lançado um selo alusivo aos 500 anos do nascimento do reformador.
Cenário 07:
Vaticano, abril 2017.
|
Estátua de Lutero inaugurada no Vaticano. Imagem: pt.radiovaticana.va |
O Papa Francisco vem enfrentando reações violentas e críticas mordazes vindas de dentro da própria Igreja, em função de muitas de suas ações e discursos em defesa dos mais pobres, em prol da humildade, da tolerância, da ética e da Verdade. As críticas recrudesceram depois da inauguração de uma estátua de Martinho Lutero, no salão de audiências do Vaticano. Sábio, humilde, generoso e fiel aos ensinamentos originais do Cristianismo, à pergunta que lhe fizeram sobre quem são melhores, se católicos ou protestantes, o admirável papa
Francisco respondeu, simplesmente: "Melhores somos todos
juntos". (4)
Juntos.
Todos nós, de todas as religiões, cada um com seu Deus, com
sua crença e seus ritos, como demonstram as recentes visitas e encontros do papa com outros líderes religiosos do mundo. Ele sabe, como muitos de nós, que só a tolerância, a caridade, a verdade, o respeito ao outro e o
amor, ensinamentos de mais de 2000 anos, são os denominadores comuns que salvarão a nossa humanidade dela
mesma.
http://www.dw.com/pt-br/nas-pegadas-de-martinho-lutero/g-35934521