quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Ecos Culturais | Quarto de Despejo na casa da infância

Quando eu era criança, nossa estante era pequena. Nada a ver com minha estante (ou melhor, as 400 estantes) de hoje. Naquela pequena estante, dois livros chamaram minha atenção: ambos velhos, desajeitados e molengas. Era o que meus olhos de criança viam, porque os livros que eu lia eram uns poucos de Monteiro Lobato e dois ou três de contos de fada, todos de capa dura, bem enfileirados e apoiados entre si. Mas aqueles dois livros de capa mole, desbotados e esgarçados me intrigavam. Parecia que estavam gastos, cansados, precisando de um apoio. O primeiro era A Carne, de Julio Ribeiro e o outro é o da foto abaixo.  

 

O segundo livro, cuja capa desbotada tenho até hoje na memória, era Quarto de Despejo- Diário de uma Favelada, da mineira de Sacramento Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Publicado em 1960, o livro é a reunião dos diários de uma mulher negra, nascida na zona rural mineira, de pais analfabetos, que pouco frequentou a escola, mas mesmo assim aprendeu a gostar de ler. Depois da morte de sua mãe, Carolina deixou a cidade natal em 1937, em busca de emprego na capital paulista. Moradora de uma favela no Canindé, era catadora de papel e lavadeira, trabalhando para sustentar a família (três filhos) e, de 1955 a 1960, nas horas "vagas" narrava seu dia a dia em um diário, ou melhor, nos cadernos que recolhia do lixo. Carolina era pai e mãe, nunca quis se casar. Lutava o tempo todo para sair daquela situação e atribuía sua capacidade de resistir à sua fé. Sua história é de sofrimento e resiliência.

Autodidata e realista, de vez em quando usava, em seus diários, palavras mais difíceis, provavelmente aprendidas nos livros que recolhia nas ruas da cidade. O livro tirou a capa de invisibilidade do morador da favela e sua condição de miséria, porque é o pobre que fala de sua dor em primeira pessoa, embora também reclame um mundo melhor. Não é uma descrição de terceiros, fantasiosa; é a descrição de uma situação vivida.  E mais, além de pobre, quem escreve é uma mulher negra, favelada, mãe solteira que usava sua própria forma de falar, longe da norma padrão da nossa língua. Em suma, ninguém imaginaria que ela seria uma autora. Mas seu livro foi um marco na luta da mulher por afirmação e respeito, ainda que por muito tempo ela e o livro tenham sido discriminados não só no Brasil, mas em outros países da América Latina.

Na década 1950, o então repórter Audálio Dantas foi fazer uma reportagem na favela do Canindé, viu seus cadernos e ficou impressionado com o que leu. Como seu primeiro editor, organizou a publicação de alguns trechos no Diário da Noite, depois na revista O Cruzeiro e, finalmente, publicou o livro todo, em 1960. Quarto de Despejo fez sucesso, chegou a vender mais de 100 mil unidades em um ano e foi traduzido para outros 16 idiomas.

Mais tarde, Carolina Maria de Jesus escreveu Pedaços de Fome e Provérbios, além de seis obras póstumas, compiladas a partir de seus diários. Mesmo hoje, é uma autora um pouco marginalizada, talvez porque retratasse uma situação "desconfortável" e ainda existente. Seu registro é o de sua oralidade, longe da gramática da língua padrão. Anos mais tarde, conheceu um professor chileno que a levou ao Chile para participar de um evento literário, de onde ela saiu decepcionada dizendo "Me dei conta de que esse mundo tem muito mais palavras que ações". 

Quarto de Despejo - Diário de uma favelada foi publicado em espanhol pela Uniandes, da Colômbia (2019) e pelo Editorial Mandacaru, da Argentina (2021), como Quarto de Desechos. As informações para este post, além das minhas memórias, vieram de um webinário, oferecido pelo GREAT-Grupo de Estudos em Adaptação e Tradução da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP): Carolina de Jesus em espanhol - tradução ao espanhol de Cuarto de desechos y otras obras de Carolina Maria de Jesus: Reflexões. O webinário, apresentado pelos professores Mario Rodríguez Torres, Bruna Macedo de Oliveira e Penélope Chaves Bruera, discutiu o projeto de tradução do livro desenvolvido entre 2017 e 2019 por estudantes e professores de distintas localidades do Brasil, Argentina e Colômbia da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), dentro do projeto de extensão “Laboratório de Tradução da UNILA. Maravilhoso projeto!

Em março deste ano, no dia do aniversário de Carolina Maria de Jesus, o Instituto Moreira Sales - IMS criou um evento para resgatar sua história, com uma série de depoimentos sobre a autora. Agora, o mesmo IMS montou a exposição Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros,  dedicada à vida, ao percurso e à produção dessa mulher que, além de autora, foi compositora, cantora, poeta, artista circense. Carolina Plural!  

Como ocorre com qualquer projeto com densidade, além do apoio de uma grande equipe mais discreta e anônima, inúmeros profissionais participaram da pesquisa e da montagem da exposição, dentre eles, o antropólogo Hélio Menezes e a historiadora Raquel Barreto, como curadores, e a pesquisadora Fernanda Miranda. A mostra reúne fotografias, manuscritos, vídeos e documentos.  

Parabéns ao IMS por resgatar nomes importantes da nossa história social, literária, artística e fotográfica! 

 

Referências

https://ims.com.br/exposicao/carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/

https://www.youtube.com/watch?v=QJoNLlgMPuc

https://www.culturagenial.com/quarto-de-despejo-carolina-maria-de-jesus/

https://www.historiasemmim.com.br/2020/02/04/resenha-quarto-de-despejo/ 

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Ecos Urbanos | Pandemia e sustentabilidade

Foto: Anita Di Marco, num inverno qualquer.

Tirei a foto ao lado numa manhã gelada de inverno. Linda, né? Essa era a vista que tinha do meu escritório até o dia que resolveram cortar o lindo guapuruvu e a espatódea, alegando...o que mesmo? Não importa. Meu coração doeu... Parece um ato isolado, mas não é. Anos depois, a epidemia de Covid-19, causada pelo surgimento e disseminação do coronavírus (SARSCOV 2), escancarou não só a poluição ambiental mundial, a desigualdade social e a importância vital da natureza, da ciência, da educação e do Sistema Único de Saúde-SUS (no caso brasileiro), mas também os danos causados ao planeta Terra pelo comportamento humano. A humanidade sempre viveu como se os recursos naturais fossem inesgotáveis ou como se a natureza atrapalhasse seus planos. Embora o isolamento inicial tenha diminuído a poluição na Terra, no ar e na água, ainda vai levar muito tempo para melhorar de fato esses índices, o que exigirá profundas e estruturais mudanças.

No início da pandemia, ingenuamente, eu acreditava (acho que como muitos) que o mundo consumista sentiria o choque e sairia melhor desse momento, com mais empatia, mais generosidade, mais conhecimento. Hoje não tenho essa certeza. O choque parece ter sido apenas momentâneo. Parece que não aprendemos nada, ou quase nada, e desprezamos a sabedoria de quem sempre entendeu seu papel no ciclo da vida e soube cuidar da mãe Terra – os guardiães de ensinamentos ancestrais, os povos indígenas, os ambientalistas. No entanto, sem pensar no que semeamos, nós nos assustamos quando vemos as consequências das nossas ações: aquecimento global, enchentes, secas, incêndios, furacões, terremotos, deslizamentos de terra, tempestades de neve e granizo, doenças, grandes amplitudes térmicas afetando a saúde, porque o corpo não consegue se adaptar a essa mudança brusca da temperatura...

O Planeta Terra grita, nós choramos, mas não assumimos nosso papel e nossa culpa. Talvez algo ainda possa ser recuperado ou interrompido, mas para isso é vital repensar a nossa relação com os outros, com as demais formas de vida e com o meio ambiente. É imperioso mudar nosso estilo de vida e de desenvolvimento econômico. 

Se mudarmos o modo como pensamos sobre edifícios, talvez o que construímos possa mudar o mundo. Dr. Prem Jain (1936-2018), professor da Faculdade de Arquitetura e Planejamento de Nova Dheli, por 43 anos, pai do movimento de construção sustentável na Índia.

Dados recentes da ONU indicam que as cidades são responsáveis por 75% das emissões globais de CO2 e pelo aquecimento global. A partir da consciência despertada por esses números e pela pandemia, talvez nossas escolhas presentes e futuras possam ter impacto real no meio ambiente. Desde atitudes simples, e há tempos divulgadas, como economizar água, separar o lixo orgânico do reciclável ao uso dos recursos naturais para garantir melhor qualidade e conforto das edificações e, consequentemente, das cidades. Como? Com a correta implantação do imóvel no lote, aproveitando a melhor insolação, os ventos dominantes, aumentando a arborização e as áreas públicas, criando mais praças e jardins, impermeabilizando menos o solo, escolhendo materiais adequados, priorizando a mobilidade, o transporte público e as ciclovias para reduzir a poluição, os congestionamentos e por aí vai.

A lista é grande, mas não é nova. Trata-se de aprendizado básico dos cursos de arquitetura e urbanismo, engenharia, meio ambiente, ciências da terra e similares que deveria ser devidamente valorizado e aplicado (e nem sempre é), na construção de imóveis e espaços públicos com mais qualidade, mais conforto térmico, mais sustentabilidade, menos desperdício e menor custo, tendo em vista as cidades como um todo. Tudo isso diminuiria as ilhas de calor urbano e melhoraria a qualidade dos espaços e das cidades.

Áreas marginalizadas e muito adensadas, porém, sofrem mais pelas próprias condições, sem essas noções básicas para criar melhores edificações ou  espaços públicos mais definidos, quando existem. É preciso atuar no todo e no pontual, ao mesmo tempo. Só assim é possível melhorar nossa ação no meio ambiente e recuperar (ou ao menos não piorar) a situação do planeta com nossa ação diária.

Grécia. https://territoriosecreto.com.br/tinta-ultra-branca
 Há tempos, universidades no mundo todo vêm pesquisando  materiais e soluções para mitigar o calor nas cidades e diminuir o impacto ambiental:  materiais alternativos como cimento ou tijolo ecológicos, blocos de concreto alternativos como o concreto do caule do cânhamo (isolante térmico natural), bambu, placas e tijolos drenantes, painéis solares e placas fotovoltaicas, jardins suspensos, sistemas de reuso de água ou que gerem menos desperdício no canteiro de obras, tintas minerais antimofo, mais refletivas e, em especial, a tinta branca etc. 
 
Sim, uma simples tinta para refletir o calor das edificações e produzir ambientes menos quentes e temperaturas mais frias. Pesquisadores da Universidade de Purdue nos Estados Unidos, por exemplo, criaram uma tinta ultra branca que reflete até 98% da luz, mantém os interiores mais frescos que o entorno e até dispensa o uso de ar-condicionado. E mais, os pesquisadores sugerem o emprego dessa tinta não só em paredes, mas também em grandes superfícies, como telhados e estradas. 
 
Em tempo, o que podemos aprender com a arquitetura mediterrânea? Soluções paliativas? Pode ser, mas se todos – profissionais, escolas e indústrias – usarem a criatividade, os recursos intelectuais, financeiros e técnicos à sua disposição, algo pode mudar, não? E já passou da hora. 

Uma última dica em relação à internet. Vocês já ouviram falar do Ecosia Fundado em 2009 pelo alemão Christian Kroll, o Ecosia é um mecanismo de busca que já viabilizou o plantio de 82 milhões de árvores, numa super dedicação ao meio ambiente, combinando plantio de árvores e produção de alimentos, além de gerar emprego e renda para as comunidades locais. É também uma escolha possível.  

Referência:
https://nossofoco.eco.br/construa-sustentabilidade/tinta-branca-pode-reduzir-a-necessidade-de-ar-condicionado/
https://premjain.in/index.html
https://www.archdaily.com.br/br/793802/materiais-inovadores-para-construcoes-sustentaveis
https://www.pensamentoverde.com.br/arquitetura-verde/confira-sao-materiais-alternativos-utilizados-construcao-civil/
https://www.ecosia.org/