quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Ecos urbanos | Obras de Arte e o espaço público (2)

23 de maio. Tchau, grafites. Fonte: DCM

Ainda falando sobre arte urbana, este post levanta uma discussão sobre um tema recente: a destruição de esculturas, monumentos e obras de arte nos espaços públicos. De início, temos o exemplo dos grafites da Avenida 23 de Maio (SP), literalmente pintados em 2017 com tinta cinza. Desde 2015, o mural era marca registrada da paisagem paulistana, cobria 15 mil metros de muros e paredes daquela avenida e tinha a assinatura de mais de 200 artistas de rua, entra eles: Os Gêmeos, Kobra, Finok, Nina Pandolfo, Nunca e Zefix. À época, a prefeitura justificou o "apagamento" pela necessidade de construir um jardim vertical ou, alternativamente, construir um espaço especial para arte de rua, como existe em Miami (?).  Bom, parece que não deu muito certo - nem jardim vertical, nem distrito de arte - e vale lembrar que o que acontece em Miami tem a ver com outra cultura, outro país, outras referências. Aqui, no nosso patropi, as condições são outras, os artistas são outros e, portanto, a proposta deve ser muito bem considerada, como o tema – a arte urbana nos espaços públicos – merece. 

Luiz Gonzaga, no chão. Divulgação

Comuns também são as notícias relatando furto, destruição e vandalismo de monumentos ou estátuas por todo o país. Só para citar alguns casos: em João Pessoa, uma escultura de Iemanjá foi decapitada por motivos religiosos; no Rio, Drummond, Noel Rosa, Clarice Lispector são só algumas das obras vandalizadas; em Recife, o roubo de peças de Brennand ou a destruição de estátuas de poetas, porque (pasmem!) seriam de esquerda já que defendiam qualidade de vida, moradia digna e universalização dos serviços públicos como educação, saúde, transporte e segurança!
 

Drummond e Quintana. Divulgação

Oi? O que justifica isso? Defender esses valores é defender o ser humano, a justiça social e a vida digna; é querer que todos vivam decentemente, com o mínimo de qualidade e respeito. É inadmissível hoje privilegiar apenas o bem-estar individual, o enriquecimento absurdo de poucos em detrimento do coletivo, agravando o quadro de excluídos de nossas cidades.  Será que já não vimos o bastante?

Voltando às estátuas, é preciso se opor com firmeza e se mobilizar para impedir esse ataque de uns poucos que fazem muito barulho. Mas fazem barulho porque nós, que formamos a maioria, somos tímidos. Quando legitimamos, por inação ou omissão, essa destruição de "simples" obras de arte com argumentos ideológicos, abrimos uma porta perigosa para que outras obras, inanimadas ou animadas (inclusive estátuas vivas), também sejam decapitadas.

Colombo sem cabeça. BBC

Por outro lado, muito tem-se falado sobre a derrubada de estátuas de figuras ligadas a qualquer forma de racismo, exploração e colonialismo em várias partes do mundo - Bristol na Inglaterra, Antuérpia na Bélgica, Boston nos Estados Unidos, por exemplo.  Há tempos, grupos de universitários dos Estados Unidos e África do Sul têm exigido a retirada, de seus campi, de monumentos que homenageavam caçadores de índios e de escravos, racistas assumidos, ditadores etc.  O fato é que essas obras estão presentes no inconsciente de todos nós, já que a história é sempre contada pela visão dos vencedores. Em sã consciência ninguém aprovaria, por exemplo,  erguer uma estátua ou propor um monumento a um genocida, concordam?  

 

Cabeça sem Colombo. Fonte: BBC

O fato é que esse movimento é mundial e povos originários, explorados, amordaçados ao longo da história estão se insurgindo contra essa forma de celebrar as ações dos "conquistadores”, em geral homens brancos, machistas, preconceituosos e prepotentes. Agora, se essas obras tendem a homenagear tais figuras deploráveis, tentando cobrir o rastro de seus tristes feitos e transformá-los quase em heróis, o contraditório é indispensável.  Se a memória é essencial para conhecer a história, também é essencial contar o outro lado da história, ou seja, contar a versão dos perdedores, dos escravizados, dos vilipendiados. E mais ainda, daqui a 50 anos, as estátuas que erguemos hoje poderão ser derrubadas. Aliás, o saudoso geógrafo e professor Milton Santos (1926-2001) falava que a utilização pela sociedade é o que cria os espaços, ou seja, o espaço público é criado em consonância com a sociedade.

Estátuas de Buda destruídas. Afeganistão. Divulgação

Então, o primeiro pensamento que me ocorre, no caso dessas homenagens a uma persona non grata é que destruir a obra não vai apagar a história, tampouco a memória. Talvez o melhor seja deixar a prova de crueldade, desumanidade, racismo, seja o que for, mas, ao mesmo tempo, ressignificá-la. Ou seja, abrir espaço (literalmente) para que uma nova obra de arte seja feita como contraponto à primeira. Há inúmeras sugestões de como fazer isso: da realocação das estátuas para museus e centros de estudo, à criação de outras obras com instalação de placas explicativas etc. Nesses "novos" lugares, tais obras poderiam ser melhor contextualizadas, de forma didática, com textos críticos, fotos e outras obras de referência para informar a sociedade sobre os atos daquela figura, instigá-la a desenvolver o pensamento crítico em relação à História e a tudo o que vemos para que tais fatos não voltem a se repetir.

Quanto à arte urbana nos espaços públicos, talvez o melhor mesmo seja utilizá-los, da forma mais democrática possível, porém sempre escolhendo obras e personagens que enalteçam e valorizem valores universais como justiça, igualdade, solidariedade e respeito.

Referências

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/03/150312_budas_taleba_pai
https://www.cafehistoria.com.br/especialistas-comentam-derrubada-de-estatuas-pelo-mundo/
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/06/11/destruir-uma-estatua-nao-resolve-e-preciso-discutir-a-memoria-diz-historiador.htm?cmpid=copiaecola
https://noticias.r7.com/cidades/obras-de-francisco-brennand-sao-furtadas-em-parque-de-recife-04122020
https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/09/21/estatua-do-escritor-ariano-suassuna-e-depredada-e-fica-caida-no-chao-no-recife.ghtml
https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/decapitacao-de-estatua-de-iemanja-causa-revolta-em-joao-pessoa/
https://www.istoedinheiro.com.br/derrubadas-decapitadas-ou-vandalizadas-cinco-estatuas-polemicas/
https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/est%C3%A1tua-de-crist%C3%B3v%C3%A3o-colombo-%C3%A9-decapitada-em-boston-1.434514
https://guiadoestudante.abril.com.br/redacao/tema-de-redacao-a-destruicao-de-monumentos-como-forma-de-protesto/
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53472767

5 comentários:

  1. Anita, sem palavras porque você tudo disse! Bravo!!!

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  2. Anita, sem palavras! Você usou toda a significação delas! Parabéns pelo texto!

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  3. Cara confreira: verdade que a poeira do tempo tende encobrir memorias às vezes alem daquelas passado meio seculo. Exemplo presente vem a ser medida da prefeitura de niteroi-rj a bolir o nome consagrado da rua coronel moreira cesar, no nobre bairro de icarai, daquela cidade, substitui do pelo nome do ator paulo gustavo, recem falecido. Alem disso a prefeitura local erigiu duas estatuas na cidade tanto a dele,ator, quanto a da sua criatvidade:dona erminia. Claro que, se ainda nao ocorreu, os vandalos estao prontos para agir por conta propria. Abraços

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  4. Perfeita a sua sugestão sobre o que fazer com homenagens a uma persona non grata !

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  5. Texto bem colocado, Anita, dentro da esfera atual em que desenrolam essas disparidades.
    Genial!

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