Muito já se escreveu sobre o espaço doméstico, sua história e importância na vida do cidadão, sua transformação ao longo do tempo. Desde o primeiro abrigo nas cavernas às tendas; das palafitas às casas flutuantes; das casas de terra e palha às moradias atuais; das celas monásticas às mansões e edifícios; das favelas e loteamentos irregulares aos conjuntos e condomínios fechados. Talvez, a moradia seja o produto mais desejado no mundo inteiro. Sim, porque morar é preciso, é verdade. Comprar, não necessariamente. Moradia, mais que produto, é direito social constitucional e deve ser visto como serviço.
Mas duvido que, quando alguém sonha com uma casa (cedida, alugada ou comprada), sonhe apenas com um teto. Habitar envolve muito mais que isso: inclui espaço adequado e digno, boa relação com os vizinhos e com o entorno (dotado de equipamentos, áreas verdes e serviços públicos). Inclui, sobretudo, desenvolver uma sensação de pertencimento.
Por isso, é tão importante discutir nosso déficit habitacional e novas formas de acesso à moradia (que não apenas a compra da casa própria) como políticas de aluguel (controle, incentivo a aluguel social e auxílio aluguel) e integração entre habitação e patrimônio histórico, por exemplo. Além disso, é preciso divulgar os benefícios de cidades mais adensadas (nem por isso menos agradáveis), porque o fato é que todos querem e merecem morar com dignidade, com o trabalho e outros serviços nas imediações. Mas, como já disse na série de três posts sobre Moradia para Idosos, estamos acostumados com essa situação. Esse é o problema, o costume. Pois que nos desacostumemos, por uma questão de empatia e dignidade. Empatia, colocar-se no lugar do outro, parece meio fora de moda, eu sei, mas é o que nos resta para sobrevivermos como sociedade humana. Porque o olhar acostumado (ou distraído, como dizia Walter Benjamin) só perpetua a atitude preconceituosa de segregação, exclusão e toda violência daí advinda. As recentes e tristes notícias envolvendo, sobretudo, mulheres e crianças nos lembram disso a todo momento.
Muitas de nossas casas, por exemplo, ainda guardam características que lembram os tempos da escravidão. Mudaram os arranjos espaciais, as dimensões, a decoração, os materiais, mas o modelo de segregação ainda se repete, quase mecanicamente. Em geral, quase todas dispõem de um espaço destinado ao trabalhador doméstico. Alguns são verdadeiros cubículos: sem espaço, sem ventilação, sem iluminação suficiente. Não conseguem dar o descanso devido a esse trabalhador e, nesse caso, não podem ser chamados de quarto que, por definição, é um local local privativo de refazimento e repouso.
O documentário Aqui não entra luz (2021), da cineasta Karoline Maia, mostra a relação entre o tal quartinho de empregada e a senzala. Para produzi-lo, a cineasta, ela própria filha de empregada, entrevistou domésticas dos estados que mais receberam escravizados: São Paulo, Maranhão, Bahia, Minas Gerais e Rio. É realidade crua na veia, escancarando preconceito e o racismo.
Então, que tal repensar nossos espaços de moradia, os já prontos e aqueles a serem construídos, ou seja, em projeto? Afinal, o lar deveria ser responsabilidade de todos os que ali moram. É preciso assumir a organização e a manutenção da própria casa, e ensinar a cada membro da família a organizar, cuidar, limpar, lavar, passar, cozinhar. Gostamos tanto de viajar, elogiamos tanto cidades do exterior, seus espaços e práticas, e, no entanto, não abrimos mão de nossos costumes, muitas vezes carregados de preconceito... Lá, como regra geral, o trabalho de cuidar da casa é compartilhado. Desde cedo, cada morador tem uma função para tudo funcionar a contento – cozinhar, arrumar a cozinha, tirar o lixo, pôr a mesa, arrumar as camas, tirar o pó, cuidar do jardim.... Não importa o quê. O importante é colaborar e dividir as tarefas da casa. Que tal começar? Sem machismos, sem achismos, sem medo. E se não conseguirmos fazer todo o serviço, vale pedir ajuda e contratar alguém, é claro. Mas ao menos todos colaboram, as tarefas não recaem sobre uma só pessoa só da família (em geral, a mãe) e, principalmente, cada um aprende a dimensionar e valorizar aquele indivíduo que nos ajuda a manter a casa funcionando.
Referências
https://imobireport.com.br/racismo-estrutural-na-arquitetura-das-cidades-ao-quartinho-da-empregada/
https://revistaforum.com.br/blogs/urbanidades/o-desenho-do-racismo/
https://revistaforum.com.br/noticias/espacos-de-exclusao/
https://www.youtube.com/watch?v=frZQRB5SYKY
https://istoe.com.br/aqui-nao-entra-luz-a-senzala-moderna/
https://www.itaucultural.org.br/rumos-2017-2018-aqui-nao-entra-luz
Muito boa esta reflexão, Anita. Parabéns!
ResponderExcluirÓtimo Anitinha! Como seria muito bom se todos tivessem moradia digna.
ResponderExcluirAnita, finalmente reencontro tempo para ler seus textos. E vou maratonar os anteriores.
ResponderExcluirQuanta informação você traz, as celas monásticas, as favelas, tudo! Ainda hoje, soube que, em Ibitinga, minha cidade natal, foi destruída a casa de uma tia-avó centenária, há pouco falecida. Um jovem ibitinguense, formado em Arquitetura, felizmente a tinha entrevistado, porque estudou as obras de um arquiteto da cidade. Ainda bem que há esse grupo de pessoas que estão atentas à destruição do centro da cidade. Mas estamos sempre perdendo, porque só podemos lamentar... e isso, do centro comercial e destruição do patrimônio, Anita, me traz sempre aquele texto sensacional que você traduziu e nos deu a análise.
Esse documentário, "Aqui não entra luz", deve ser forte. Me lembrou o livro da Clarisse Lispector, A paixão segundo GH. E também um filme nacional, do qual não me lembro o título agora, sobre o espaço da empregada. Disse a crítica que alemães que assistiram o filme ficaram chocados.
Parabéns, sempre, pelos seus textos! Abraços.
Oi, Valquíria, bom tê-la de volta com seus comentários e reflexões. Sim, nós carecemos de cultura e educação em todos os aspectos. E o filme a que você se refere é "Que horas ela volta", com Regina Casé. É isso aí, temos um longo caminho pela frente...é chocante como tudo parece normalizado na nossa sociedade. Lembro-me de pessoa me disse, há uns 8 anos, que não tinha mais prazer em viajar “porque aeroporto estava parecendo rodoviária”, você acredita? Tristes tempos esses nossos. Grande abraço
ExcluirNossa, o que pensa essa gente? Bom... um dia, todos entraremos na Eternidade. E verão que tudo o que era válido, vai deixar de ser. Abs
ResponderExcluir“Que Horas ela volta”, triste realidade… vou assistir “Aqui não entra Luz”. Obrigada pelo texto 😉 marly
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