quinta-feira, 2 de junho de 2022

Ecos Arquitetônicos | Casa própria, racismo e "quartinhos"

Muito já se escreveu sobre o espaço doméstico, sua história e importância na vida do cidadão, sua transformação ao longo do tempo. Desde o primeiro abrigo nas cavernas às tendas; das palafitas às casas flutuantes; das casas de terra e palha às moradias atuais; das celas monásticas às mansões e edifícios; das favelas e loteamentos irregulares aos conjuntos e condomínios fechados. Talvez, a moradia seja o produto mais desejado no mundo inteiro. Sim, porque morar é preciso, é verdade. Comprar, não necessariamente. Moradia, mais que produto, é direito social constitucional e deve ser visto como serviço. 

O sonho da casa própria, talvez, seja valorizado demais por aqui. Talvez por não existir a garantia de um emprego com salário suficiente para proporcionar uma vida digna em imóvel alugado. Talvez pela falta de políticas públicas habitacionais e de controle do aluguel. Vivi em São Paulo, metade da minha vida. Lá conheci casais que moravam, há anos, nos mesmos imóveis alugados. Todos europeus; os moradores, não os imóveis. O mesmo acontecia (acontece?) na Itália. Lembro-me de que, em Roma, nos início dos anos de 1980, eu me espantava ao ver famílias morando anos a fio em imóveis alugados. Um aluguel justo, possível e que cabia no orçamento familiar, tranquilamente. A inflação na época era quase nula, os imóveis para compra eram sempre caríssimos e não existia, como meta de vida, o sonho da casa própria. A família permanecia anos ali, vivendo com dignidade - zona central, serviços, lazer, cultura, sem excesso de espaço ou de área construída. Quando foi que isso mudou?  

Mas duvido que, quando alguém sonha com uma casa (cedida, alugada ou comprada), sonhe apenas com um teto. Habitar envolve muito mais que isso: inclui espaço adequado e digno, boa relação com os vizinhos e com o entorno (dotado de equipamentos, áreas verdes e serviços públicos). Inclui, sobretudo, desenvolver uma sensação de  pertencimento. 

Por isso, é tão importante discutir nosso déficit habitacional e novas formas de acesso à moradia (que não apenas a compra da casa própria) como políticas de aluguel (controle, incentivo a aluguel social e auxílio aluguel) e integração entre habitação e patrimônio histórico, por exemplo. Além disso, é preciso divulgar os benefícios  de cidades mais adensadas (nem por isso menos agradáveis), porque o fato é que todos querem e merecem morar com dignidade, com o trabalho e outros serviços nas imediações. Mas,  como já disse na série de três posts sobre Moradia para Idosos, estamos acostumados com essa situação. Esse é o problema, o costume. Pois que nos desacostumemos, por uma questão de empatia e dignidade. Empatia, colocar-se no lugar do outro, parece meio fora de moda, eu sei, mas é o que nos resta para sobrevivermos como sociedade humana. Porque o olhar acostumado (ou distraído, como dizia Walter Benjamin) só perpetua a atitude preconceituosa de segregação, exclusão e toda violência daí advinda. As recentes e tristes notícias envolvendo, sobretudo, mulheres e crianças nos lembram disso a todo momento. 

Muitas de nossas casas, por exemplo, ainda guardam características que lembram os tempos da escravidão. Mudaram os arranjos espaciais, as dimensões, a  decoração, os materiais, mas o modelo de segregação ainda se repete, quase mecanicamente. Em geral, quase todas dispõem de um espaço destinado ao trabalhador doméstico. Alguns são verdadeiros cubículos: sem espaço, sem ventilação, sem iluminação suficiente. Não conseguem dar o descanso devido a esse trabalhador e, nesse caso, não podem ser chamados de quarto que, por definição, é um local local privativo de refazimento e repouso. 

O documentário Aqui não entra luz (2021), da cineasta Karoline Maia, mostra a relação entre o tal quartinho de empregada e a senzala. Para produzi-lo, a cineasta, ela própria filha de empregada, entrevistou domésticas dos estados que mais receberam escravizados: São Paulo, Maranhão, Bahia, Minas Gerais e Rio. É realidade crua na veia, escancarando preconceito e o racismo.

Então, que tal repensar nossos espaços de moradia, os já prontos e aqueles  a serem construídos, ou seja, em projeto? Afinal, o lar deveria ser  responsabilidade de todos os que ali moram. É preciso assumir a organização e a manutenção da própria casa, e ensinar a cada membro da família a organizar, cuidar, limpar, lavar, passar, cozinhar. Gostamos tanto de viajar, elogiamos tanto cidades do exterior, seus espaços e práticas, e, no entanto, não abrimos mão de nossos costumes, muitas vezes carregados de preconceito... Lá, como regra geral, o trabalho de cuidar da casa é compartilhado. Desde cedo, cada morador tem uma função para tudo funcionar a contento – cozinhar, arrumar a cozinha, tirar o lixo, pôr a mesa, arrumar as camas, tirar o pó, cuidar do jardim.... Não importa o quê. O importante é colaborar e dividir as tarefas da casa. Que tal começar? Sem machismos, sem achismos, sem medo. E se não conseguirmos fazer todo o serviço, vale pedir ajuda e contratar alguém, é claro. Mas ao menos todos colaboram, as tarefas não recaem sobre uma só pessoa só da família (em geral, a mãe) e, principalmente, cada um aprende a dimensionar e valorizar aquele indivíduo que nos ajuda a manter a casa funcionando.

Referências 

https://imobireport.com.br/racismo-estrutural-na-arquitetura-das-cidades-ao-quartinho-da-empregada/

https://revistaforum.com.br/blogs/urbanidades/o-desenho-do-racismo/

https://revistaforum.com.br/noticias/espacos-de-exclusao/    

https://www.youtube.com/watch?v=frZQRB5SYKY

https://istoe.com.br/aqui-nao-entra-luz-a-senzala-moderna/ 

https://www.itaucultural.org.br/rumos-2017-2018-aqui-nao-entra-luz

6 comentários:

  1. Muito boa esta reflexão, Anita. Parabéns!

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  2. Ótimo Anitinha! Como seria muito bom se todos tivessem moradia digna.

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  3. Anita, finalmente reencontro tempo para ler seus textos. E vou maratonar os anteriores.
    Quanta informação você traz, as celas monásticas, as favelas, tudo! Ainda hoje, soube que, em Ibitinga, minha cidade natal, foi destruída a casa de uma tia-avó centenária, há pouco falecida. Um jovem ibitinguense, formado em Arquitetura, felizmente a tinha entrevistado, porque estudou as obras de um arquiteto da cidade. Ainda bem que há esse grupo de pessoas que estão atentas à destruição do centro da cidade. Mas estamos sempre perdendo, porque só podemos lamentar... e isso, do centro comercial e destruição do patrimônio, Anita, me traz sempre aquele texto sensacional que você traduziu e nos deu a análise.
    Esse documentário, "Aqui não entra luz", deve ser forte. Me lembrou o livro da Clarisse Lispector, A paixão segundo GH. E também um filme nacional, do qual não me lembro o título agora, sobre o espaço da empregada. Disse a crítica que alemães que assistiram o filme ficaram chocados.
    Parabéns, sempre, pelos seus textos! Abraços.

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    1. Oi, Valquíria, bom tê-la de volta com seus comentários e reflexões. Sim, nós carecemos de cultura e educação em todos os aspectos. E o filme a que você se refere é "Que horas ela volta", com Regina Casé. É isso aí, temos um longo caminho pela frente...é chocante como tudo parece normalizado na nossa sociedade. Lembro-me de pessoa me disse, há uns 8 anos, que não tinha mais prazer em viajar “porque aeroporto estava parecendo rodoviária”, você acredita? Tristes tempos esses nossos. Grande abraço

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  4. Nossa, o que pensa essa gente? Bom... um dia, todos entraremos na Eternidade. E verão que tudo o que era válido, vai deixar de ser. Abs

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  5. “Que Horas ela volta”, triste realidade… vou assistir “Aqui não entra Luz”. Obrigada pelo texto 😉 marly

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