Modernidade líquida, aporofobia, mixofobia, só para citar alguns termos novos, estranhos, excludentes e chocantes. Sinal dos tempos? Se por um lado, constatamos a dinâmica da língua portuguesa, como das demais línguas, com a possibilidade de substituir modos de dizer, expressões e termos, e também de criar e inserir outros, por outro lado é assustador ver a frequência com que vêm surgindo e o significado de alguns deles.
Modernidade líquida. Termo usado por Zygmunt Bauman (1925-2017), sociólogo e professor polonês para referir-se à perda de valores e conceitos mais duradouros e sólidos como os de coletividade, comunidade e solidariedade. Diz ele que a lógica gerada pelo capitalismo desenfreado e globalizado, nesses tempos estranhos de modernidade líquida, faz predominar o individualismo e o consumo. As relações pessoais, as esferas da vida social, portanto, como os líquidos, tornam-se mais frágeis, fugazes, voláteis. Com a onipresença das redes sociais e a velocidade das informações, nem sempre verdadeiras, o novo conceito é chocante e assustador, mas tristemente verdadeiro.
O sociólogo Zigmunt Bauman. |
Aporofobia. O termo criado pela premiada escritora e filósofa espanhola Adela Cortina (1947) designa uma fobia contra o pobre, fobia essa que leva o indivíduo a rechaçar pessoas, raças e etnias diferentes das suas e que, em geral, têm menos recursos. O termo ganhou destaque ao ser usado pelo Padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, referindo-se à ação da sociedade e de órgãos públicos de afastar os “pobres” com artifícios, mecanismos e “desenhos” que inibem comportamentos e a própria presença dos “indesejáveis”. Aqui mesmo, no blog Anita Plural, já falei do termo em duas postagens tratando do tema “arquitetura hostil” (aqui e aqui). Mas, a aporofobia também pode ser percebida em outras áreas além da arquitetura e do urbanismo, como na educação, na saúde pública, no judiciário etc. Basta prestar atenção e unir os pontos.
Mixofobia é outro termo assustador – medo de se misturar. O arquiteto Adalberto Retto Junior (1964), professor da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC) da Unesp-Bauru, em seu artigo Da redescoberta da urbanidade às paisagens de marginalização mergulha mais a fundo no lamentável conceito de aporofobia e também cita Bauman e a mixofobia.
“Em outras palavras, essa reação particular toma forma em nossas cidades daquilo que Bauman (2007) define como mixofobia urbana: o medo real de se misturar com os outros, ou seja, com aquela pluralidade de "tipos humanos" e de "estilos de vida" que, apesar de todas as “precauções”, encontram-se na vida normal da cidade”.
Tais termos e os conceitos que carregam têm a tendência de construir guetos, ilhas separadas de similaridades e, portanto, reforçar os preconceitos e a desigualdade e, em seu extremo, fortalecer violência e discursos de ódio. Portanto, mais do que necessário, é urgente desconstruir tais conceitos com atitudes diárias, porque como a língua, os conceitos, sistemas econômicos e políticos também mudam. Nada contra, desde que essa mudança seja para melhor, no sentido de acrescentar dignidade ao ser humano, com termos mais elaborados, inclusivos, solidários e universais. Senão, como raça humana, estaremos apenas mudando, mas para pior.
Referências
https://diplomatique.org.br/da-redescoberta-da-urbanidade-as-paisagens-de-marginalizacao/
https://anitadimarco.blogspot.com/2022/02/ecos-urbanos-arquitetura-hostil-1.html
https://anitadimarco.blogspot.com/2022/02/ecos-urbanos-arquitetura-hostil-2.html
https://www.institutoclaro.org.br/cidadania/nossas-novidades/reportagens/o-que-e-aporofobia-e-como-combate-la/
Creio que tais termos foram criados exatamente para designar uma sociedade em que as relações são simulacros afetivos e, portanto, tal qual a água assumem a forma do recepiente e se evapora...Uma sociedade que odeia as diferenças, estejam elas na cor da pele, na sexualidade, na fé ou no poder econômico. Uma sociedade de deuses perfeitos que só enxerga a imperfeição própria, nos outros. Uma sociedade tambor , que só produz algum som porquê é oca, vazia de valores encarnados. Estamos mesmo convivendo com o cáos. Lembrando F. Pessoa: " Arre! Estou farto de semideuses! Onde há gente no mundo?"
ResponderExcluirParabéns, Anita pela feliz ideia de de utilizar os neologismos como sintoma de uma sociedade não solidária, entupida de antidepressivos, voltada exclusivamente para si, que pisoteia os desiguais.
Amei o seu texto convite à reflexão.
Cada vez melhor, Anita. O que será preciso para reverter essas fobias? Boa parte delas vem de uma tentativa de justificar uma situação de privilégios e vantagens herdadas.
ResponderExcluirÉ um glossário triste, ne? Esperamos verbetes que remetam a tempos com menos preconceito e mais esperança em uma sociedade que aceita sua própria pluralidade e se revolte com as desigualdades entre os seus membros! Beijos!
ResponderExcluirDaniel B Ortega
Genial, tanto o texto, a abordagem, quanto a atualidade desses intelectuais que estão atentos à linguagem de um panorama mundial em mudanças.
ResponderExcluirInfelizmente, a aporofobia sempre existiu.
O interesse no estudo da linguagem em constante evolução nos traz , como num jato que desemboca ininterruptamente, a veracidade necessária dos termos, dos significados gerados pelas situações. A História traduzida pela linguagem.
Adorei seu texto, Anita!
Estava com saudade dos seus textos. Fico um tempo bom em reflexão…
ResponderExcluirbjs
Marly