Sempre vejo com tristeza e desconforto algumas ditas “soluções” arquitetônicas de espaços públicos, semipúblicos ou privados. Há muitos artigos e pesquisas (e não é de hoje) sobre a tal “arquitetura hostil”. Convenhamos, uma forma disfarçada e distraída (?) de preconceito e racismo, manifestada em decisões de projeto e concretizada no mobiliário urbano, em obras públicas e particulares, aqui e no exterior. Afinal, preconceito não é privilégio de nenhum país e o próprio nome (arquitetura hostil) já é a antítese da noção de arquitetura, vinculada que é, desde sua essência, ao conceito de abrigo, acolhimento.
Recentemente, li um artigo em que padre Júlio Lancellotti denuncia a tal "arquitetura antipobres". Coordenador da Pastoral do Povo de Rua da arquidiocese da capital paulista, Padre Júlio é um cristão que sabe do que fala, porque pratica o Evangelho à risca, buscando justiça social, solidarizando-se, auxiliando e defendendo a população de rua, os excluídos e invisíveis da região central de São Paulo.
No entanto, o tema – polêmico para alguns, "sem noção” para outros - é fundamental para todos, ao menos para chacoalhar opiniões cristalizadas – e não é novo, tampouco só nosso. O escritor britânico George Orwell, autor do clássico 1984, retratou a situação vivida pelos moradores de rua em seu romance “Na Pior em Paris e Londres”, lançado em 1933.
Há cidades que, com seus espaços, edifícios e mobiliário urbano, nos acolhem, alegram, nos deixam caminhar, sentar, tomar sol, encontrar amigos, usufruir de seus parques, largos, seu desenho urbano e sua arquitetura, ou seja, exercer nossa urbanidade. Essas cidades têm espaços públicos, semipúblicos e até privados que respeitam os cidadãos e funcionam como sala de estar coletiva. Nessas "salas urbanas", o indivíduo pode sentar-se, conversar, ler, falar ao telefone ou descansar por instantes antes de seguir sua jornada. Não há quem não ame uma cidade assim. Outras, com suas “soluções” criam dificuldades e impedem o uso de seus espaços. Dito de outra forma, rechaçam e excluem parcelas da população alegando diferenças de classe social, etnia, posição política, credo. Não importa o motivo e não há eufemismos para o termo. Exclusão é exclusão.
Ora, o tipo de ocupação de um território define a qualidade da moradia e dos serviços e equipamentos ali instalados. A população mais pobre, sempre excluída, acabou empurrada para as periferias e, portanto, ficando sem moradia, espaços públicos e serviços de qualidade. O fato é que, quase sub-repticiamente, com seus edifícios suntuosos (excludentes e opressores) ou humanos (agradáveis, convidativos, simples), com sua arquitetura (imponente e ostensiva ou gentil e atrativa) e com seus espaços (abertos e inclusivos ou fechados e excludentes), a cidade vai formando e naturalizando nossos comportamentos.
Distraidamente, vamos vivendo, entrando e saindo de bairros, edifícios, apartamentos, casas, escolas, centros comerciais, indústrias, hospitais e não percebemos que esse modo de pensar, há tempos, nos foi imposto pela forma de construir, ou pior ainda, "porque sempre foi assim". Distraidamente, vivemos e internalizamos esses modelos; aprendemos e nos adaptamos à ideia de separação passada de geração em geração, aos preconceitos e convenções explorados na moda, no cinema, na TV, nos noticiários e aplicados aos edifícios, espaços, entradas, saguões, portas e elevadores diferenciados – “sociais” e “de serviço”. Sim, é preciso diferenciar esses espaços para mudanças, transporte de carga, lixo, animais e obras, não para pessoas.
Com o tempo, normalizamos e banalizamos essa forma de exclusão não só nos ambientes domésticos (tema para outro post), mas também na escala da cidade, valorizando os espaços privados de "lazer seguro" (como os “shopping malls”) em detrimento da convivência urbana das ruas comerciais, dos espaços públicos abertos, dos parques e praças, locais do encontro por excelência. Achamos normal a proliferação de imensos condomínios fechados, com muros cada vez mais altos, vendidos como locais "seguros", mas que, no fundo, por medo da cidade, dão às costas e excluem não só a cidade, mas também os demais cidadãos.
Os que criam (ou solicitam) tais "soluções" esquecem-se do problema maior e mais profundo: a falta de amplas e adequadas políticas públicas de moradia, assistência, educação, saúde, mobilidade, segurança etc. De qualquer forma, o tema traz em si um chamado urgente à reflexão crítica de toda a sociedade, mas sobretudo dos arquitetos e demais profissionais que têm o poder de conformar os espaços públicos e privados de nossas cidades.
Referências
https://revistaforum.com.br/blogs/urbanidades/o-desenho-do-racismo/
https://revistaforum.com.br/noticias/espacos-de-exclusao/
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59898188
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/03/31/vai-a-camara-texto-que-proibe-arquitetura-hostil-a-populacao-de-rua-em-espaco-publico
É incrível como Admirável mundo novo consegue estar presente ,retratando estes absurdos. Assim como nosso grande Chico Buarque aí citado em sua Construção, a maior obra dele,a meu ver.
ResponderExcluirParabéns, Anita! Continuo aprendendo muito com vc.
Querida Ione, a arte imita a vida, né? Os artistas têm esse poder, qualquer que seja sua arte, de nos mostrar a crueza da nossa ação e do nosso comportamento. Despertar é mais do que preciso, é urgente e inexorável. Beijo grande e obrigada.
ExcluirExcelente, Anita! Vendo as buscas por um mundo mais igualitário, solidário, humano e sem preconceitos, acreditamos que caminhamos para um futuro melhor. No entanto, nossa forma de viver e morar consolida cada vez mais a desigualdade, a exclusão, o individualismo e um enorme preconceito! Perdendo o sentimento de unidade, criamos a ilusão de que o problema do outro não é meu, ignorando a interdependência que existe entre todos os seres para que a vida seja possível nas cidades e em nosso planeta.
ResponderExcluirExcelente, Anita! Vendo as buscas por um mundo mais igualitário, solidário, humano e sem preconceitos, acreditamos que caminhamos para um futuro melhor. No entanto, nossa forma de viver e morar consolida cada vez mais a desigualdade, a exclusão, o individualismo e um enorme preconceito! Perdendo o sentimento de unidade, criamos a ilusão de que o problema do outro não é meu, ignorando a interdependência que existe entre todos os seres para que a vida seja possível nas cidades e em nosso planeta.
ResponderExcluirExato, Teresa, somos todos interdependentes e responsáveis por tudo o que está aí, em maior ou menor grau. Obrigada por estar aqui. Beijos
ResponderExcluirConcordo com vc Anita. Sempre que vejo estas "proibições", para mim preconceituosas tbm fico triste. Mais uma vez quem será mais evoluído o animal bicho ou o animal humano? Maria Inez Carvalho
ResponderExcluirSim, Anita, a exclusão dói.
ResponderExcluirO feio que os preconceituosos impõem cada vez mais aos nossos espaços toma o lugar daquilo que você mostra, no texto, "agradáveis, convidativos, simples"...
Chego eu até à piada de mau gosto, que num ato falho, tinha escrito "covidativos", sem querer. Mas corrigi a tempo. Ufa!
Soube que uma líder de associação do bairro de Pinheiros, SP capital, se manifestou, indicando a terrível substituição das antigas, lindas e gostosas casas por prédios enormes. Isso me entristece muito. E o pior: estamos impotentes.
É primordial aquilo que você alerta, no final desse texto: necessidade de "adequadas políticas públicas".
Muito bom Anitinha! Você nos ensinando e nos alertando sobre a triste realidade em que o Brasil é até mesmo o mundo vive.O padre Júlio Lancelloti é um exemplo de amor ao próximo.
ResponderExcluirParabéns Anita! Excelente
ResponderExcluirOlá, Adalberto! Adalberto Retto Junior é professor da Faculdade de Arquitetura, da Unesp-Bauru, enviou o comentário, mas não assinou... É um batalhador contumaz por por um desenho urbano que crie cidades inclusivas, democráticas e justas. Uma honra contar com seu apoio. Abraços e obrigada.
Excluir