quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Ecos Urbanos | Arquitetura Hostil (2)

Igreja. Campinas. Foto: Ag. Notícias das Favelas

Retomando o tema “arquitetura hostil”, publicado aqui. Cansamos de ver essas “estratégias projetuais” para espantar os indesejados ou aporofobia (aversão aos pobres), mas nos acomodamos. Parece ser mais fácil se indignar quando essas atitudes de hostilidade ou preconceito ocorrem lá fora, com obstáculos ao nosso ir e vir nos espaços públicos ou com atitudes de segregação em escala urbana como houve (ou há), por exemplo, nos Estados Unidos, na África do Sul, na Inglaterra, ou aqui mesmo, mas longe das nossas vistas. A distância parece sempre suavizar, na nossa consciência, o ocorrido. Difícil é reagir quando a coisa acontece no nosso universo imediato. É tomar consciência e olhar esses comportamentos mais de perto e se indignar com a desumanização das nossas cidades. Difícil é romper a barreira do nosso comportamento “distraído”, superar o hábito e os chamados espaços “exclusivos” para projetar espaços de inclusão. 

Difícil parece ser pensar em um desenho urbano seguro para todos, na subdivisão do território com responsabilidade e propor (no caso do investidor) ou exigir (no caso do poder público) projetos de loteamentos mais responsáveis, mais humanos, com desenho urbano adequado, com ruas traçadas de acordo com as curvas de nível, sem remoção da cobertura vegetal, com lotes dignos para áreas verdes e institucionais (não em pirambeiras), em terrenos aptos a receber bons equipamentos e serviços. Responsabilidade para que os futuros moradores e/ou usuários tenham segurança ao construir e ao utilizar esses espaços. Claro, não se pode controlar tudo, como as intempéries, por exemplo, mas pode-se controlar a nossa ação à luz da ética. Se cada um fizer sua parte...

Em um de seus muitos artigos, o arquiteto mineiro Fernando Luiz Lara, professor do Departamento de Arquitetura da Universidade do Texas, em Austin, questiona a tal da exclusividade e alerta os colegas arquitetos "que projetam a cidade e esses espaços de exclusão":

A exclusividade só existe porque alguém é excluído. Exclusividade e exclusão são dois lados da mesma moeda. Se todos fossem incluídos não haveria exclusividade, nem no condomínio, nem na moda, nem no restaurante. (1)

Em função de denúncias, o senador Fabiano Contarato (1966), na época na Rede-ES e, hoje, no PT, propôs o projeto de lei PL 488/2021 (ver tramitação ), chamada Lei Padre Júlio Lancelotti, que "veda o emprego de técnicas de arquitetura hostil, destinadas a afastar pessoas em situação de rua e outros segmentos da população, em espaços livres de uso público". Aprovado no Senado, o projeto aguarda aprovação na Câmara dos Deputados.      

Essa "distração", essa banalização (do mal) como dizia a filósofa alemã Hannah Arendt, é o que mantém a roda girando e girando; é o que mantém o status quo de uma parcela da população que sempre grita quando alguém propõe algo diferente, coletivo, inclusivo, com regras para o benefício comum. Somos um povo plural, multirracial e multiétnico. É preciso exercer e aproveitar essa rica diversidade, em favor de todos, em todos os campos e em toda sua extensão. Será impossível pensar e criar uma sociedade mais igualitária, mais humana e uma cidade mais justa, mais democrática, acolhedora e segura para todos, se continuarmos sustentando os mesmos modelos e recusando-nos a pensar e a romper padrões simplesmente porque "sempre foi assim"!

Referências

(1) https://revistaforum.com.br/blogs/urbanidades/o-desenho-do-racismo/

https://revistaforum.com.br/noticias/espacos-de-exclusao/

https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/02/03/O-que-%C3%A9-arquitetura-hostil.-E-quais-suas-implica%C3%A7%C3%B5es-no-Brasil

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59898188

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/03/31/vai-a-camara-texto-que-proibe-arquitetura-hostil-a-populacao-de-rua-em-espaco-publico 

https://www.archdaily.com.br/br/973752/arquitetura-hostil-quando-as-cidades-nao-sao-para-todos?utm_medium=email&utm_source=ArchDaily%20Brasil&kth=539,924 

3 comentários:

  1. Adorei seu texto. Aquele parágrafo, o que menciona os traçados das curvas de nível; a cobertura vegetal... o cuidado; a formação profissional; a aplicação disso no mundo - tão bonito, tudo isso. E tão possível.
    Você alerta algo que me incomoda, por ser bastante grave: o fato de exclusão, ou qualquer acontecimento ruim ser amenizado só porque está distante. E isso distante, tanto no espaço, quanto no tempo. Isso não deveria impedir as pessoas de se preocuparem. O mal está lá e é preciso que todos se deem conta.
    Eu não sabia dessa proposta da Lei Pe Júlio Lancelotti. Vamos ver se aprovam.
    Anita, você coloriu o último parágrafo com ideias de aproveitamento - e não negação - da multicultura e diversidade.
    Grande abraço

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    1. Pois é , Valquíria. Tragédias como as de Petrópolis, Nova Friburgo, São Paulo, Bahia, Rio não nos deixam esquecer, né? São recorrentes... Ocupar fundos de vale, construir além de uma declividade máxima, aprovar o que vier, ou fechar os olhos para loteamentos irregulares, o lixo em todo lugar.... Tantas coisas que nem sei quando iremos resolver ou só menos mitigar tudo isso... Obrigada, querida. Abraços

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  2. Bonito texto Anitinha! Todos deveriam ter casa digna para morar.A proposta do Padre Júlio Lancelloti, tomara que seja aprovada logo.Esse nosso Brasil precisa olhar o próximo com mais Amor.

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