Imagem: Era uma vez no oeste. Divulgação. |
Hoje, a maioria
da população mundial vive em cidades. Cidades grandes, médias ou pequenas.
Cidades históricas, clássicas, modernas ou planejadas. Cidades universitárias,
cidades mais ou menos ricas, cidades-dormitório, turísticas, cidades de
veraneio. Não importa, sempre cidades.
Quando o homem
descobriu a agricultura e deixou de ser caçador/coletor, as primeiras
aglomerações urbanas começaram a se formar ao longo dos vales de rios, como o
Nilo e o Indo (Harappa, Mohenjo-Dharo, Nínive, Ur, Tebas). Polis é a
cidade dos gregos, a comunidade organizada, formada pelos cidadãos (no grego “politikos”),
ou seja, pelos homens nascidos no solo da cidade, homens livres e iguais que
exerciam a civilidade, cuidando de sua cidade e do bem comum; civitas
(origem de civil, cidade, cidadão e civilizado) é a tradução latina para polis.
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Vamos, então,
fazer um exercício de imaginação e visualizar uma cidade imaginária... onde
moradores – nem todos, claro – agem estranhamente.
Sabe aquela
cidade em que todos reclamam de tudo e criticam o que podem e o que não podem?
O que veem e o que não veem? O que sabem e o que não sabem? O que sentem e o
que não sentem? Criticam os políticos, os eleitores, os administradores, os empregados, os vizinhos, os
amigos, a família, os chefes, os diferentes? Criticam os
motoristas, os ciclistas, os meios de transporte, a natureza, as árvores, o
frio, o calor... Com certeza, devem ter muitos problemas de saúde...
Sabe aquela cidade cujas ruas estão sujas, as praças
descuidadas, as lixeiras arrancadas, os abrigos de ônibus destruídos, os bancos
quebrados? Aquelas cidades onde ninguém parece se dar conta de que o espaço das
ruas, praças e parques, o mobiliário urbano, os monumentos, todos são bens
públicos e, portanto, responsabilidade de todos e de cada um? Onde terrenos baldios sem
fechamento se acumulam nos bairros (quando não acumulam lixo), com o mato
avançando sobre as calçadas apesar da lei que obriga proprietários a murarem
seus terrenos e cuidarem de suas calçadas?
Sabe aquela cidade em que, em qualquer
estabelecimento, nas casas comerciais, consultórios médicos e até em salas de
espera de hospitais, todos parecem hipnotizados pela TV, por programas que
falam o que querem, como querem e de quem querem, sem se importar com quem
ouve, com a verdade ou o contraditório? Sem se importar com o bem comum? Sem se
importar em divulgar mensagens de civilidade e ética? Aquela cidade onde a
maioria parece desconhecer a dimensão histórica, o pensamento crítico e o
discernimento sobre o que vê e ouve?
Sabe aquela cidade onde, de modo geral, se percebe a
falta de civilidade no trânsito, no convívio com os espaços públicos e mesmo
privados? Onde cada um constrói o que quer e na altura que quer, desrespeitando
as leis e ignorando o projeto originalmente aprovado? Onde normas de boa
vizinhança e ordenamento urbano como leis urbanísticas, leis de trânsito,
placas de sinalização, tempo e vagas de estacionamento são solenemente
ignoradas e parecem ter sido feitas para meia dúzia de ingênuos e não para
beneficiar a cidade, a convivência humana, como um todo?
Onde a gentileza parece apenas um
termo esquecido no dicionário, onde motoristas (de automóveis particulares,
ônibus e táxi) e motociclistas não se respeitam? Onde ciclistas, pedestres de
todas as idades e faixas de segurança são continuamente desrespeitados e correm
riscos cotidianos?
Sabe aquela cidade em que no estacionamento rotativo,
criado para que mais pessoas pudessem estacionar no espaço público, o motorista
nunca encontra uma vaga? Ou se encontra (a vaga especial, por exemplo), percebe
que está ocupada irregularmente, com carros mal estacionados utilizando o
espaço de dois ou três veículos?
Sabe aquela cidade onde os parques, praças e ruas
estão salpicadas por copos plásticos, saquinhos, papéis de bala, pontas de
cigarros (para não dizer coisas maiores)? Aquelas cidades em que usuários de
carros particulares ou ônibus têm o desplante de jogar lixo pela janela de seus
veículos. Ou aquelas cidades em que moradores cortam árvores porque – dizem –
sujam a calçada.... Ou porque - dizem - que as árvores são todas iguais, ou que não deixam alguns
metros quadrados de grama em seus terrenos e impermeabilizam 100% do lote?
Ou aquelas cidades que ainda acreditam que altura
dos edifícios é sinal de progresso e, sem se importar com a largura das vias, a
sobrecarga da infraestrutura ou a vizinhança, querem construir edifícios
desnecessariamente altos? Edifícios que irão bloquear o sol de tantos, que irão
criar um espigão no meio de zonas residenciais? Prédios menores, de cinco, seis ou até oito
andares, não seriam suficientes, mais adequados e não criariam melhores bairros, com altura mais harmônica e agradável?
Sabe aquela cidade onde alguns moradores ouvem
música alta quando e onde querem, param onde e como bem entendem, jogam suas
coisas como e onde querem, constroem o que querem, falam com os demais como se
fossem inferiores ou inimigos, desrespeitam o outro e o povo... Enfim, cidades onde existem pessoas que só
pensam em buscar uma forma de driblar leis e normas de civilidade? Ou em
defender seus próprios interesses ou “direitos”, mas sem jamais pensar em seus
deveres? Pessoas que nem se lembram ou sequer sabem que seu direito acaba onde
começa o do outro?
Pois é!
Nessa cidade imaginária, alguns passageiros de
trens, metrô ou ônibus, se acomodam nos bancos reservados e fingem dormir
quando um idoso, uma mulher grávida ou com uma criança no colo entra – Ué,
mas os bancos não estão reservados para usuários especiais? – Não é
regra? A resposta é um estrondoso “sim” para as duas perguntas. Mas regras
são para poucos tolos, ao que parece...
Nessa cidade imaginária, todos os cidadãos ficam
prejudicados pela visão estreita de alguns, pelo egoísmo de outros, pela
acomodação de outros tantos, pelo desrespeito de uma minoria barulhenta e autoritária com os demais. Um cidadão comum e consciente, como tantos outros,
precisa estacionar seu carro nas tais zonas azuis, mas não encontra vaga,
porque alguns acreditam que vagas existem apenas para atendê-los; outros
estacionam mal, ocupando um espaço bem maior do que aquele que, de fato,
necessitariam. Nosso cidadão decide estacionar mais longe e caminhar algumas
quadras a mais. Sem problemas, mas, ao longo do trajeto, percebe que, dos
carros estacionados, pouquíssimos têm o bilhete obrigatório de estacionamento
rotativo. Perplexo, ele se pergunta: – Ué, mas aqui não é zona azul? O
motorista não é obrigado a comprar o cartão, preenchê-lo e sair no horário
marcado?
Duvidando de sua visão, ele olha de novo para a
placa de sinalização. Sim, não há engano. É o que mostra a placa, mas parece
que poucos se dão conta disso. Aquele que estacionou sem cartão, em vaga
errada, ou de forma torta deve ter achado que a área era livre, como numa terra
de ninguém, de quem chegasse primeiro e tomasse posse.... O tempo? Deveria ser
de uma ou duas horas, não? Como assim? Os carros estão estacionados há quase 4
horas, quando não ficam o dia todo.
Nessa cidade imaginária, quando os carros,
simplesmente, não estacionam sobre as faixas – ditas – de segurança, como dizia minha avó é uma
peleja tentar atravessar a rua, ainda que na faixa de pedestres. Uma luta e um
perigo, porque poucos carros param ou sequer diminuem para o pedestre passar.
Muitas vezes, chega a ser necessário fazer o sinal de ‘PARE’ com a mão. – Ué,
mas os pedestres não têm prioridade nas faixas? Claro, mas.... Dar passagem para outros carros? Claro que não! Muitas vezes, motoristas aceleram para não dar passagem a alguém em situação difícil ou alguém que quer simplesmente cruzar uma rua a pé, ou fazer conversão quando num veículo...Seria tão mais simples e gentil apenas tirar um pouco o pé do acelerador... Ou dar preferência aos ônibus: afinal eles levam 40 passageiros!
Nessa cidade imaginária, nosso cidadão consciente
também vê carros, sem as respectivas placas de identificação, parados nas tais
vagas especiais. Inquieto e perplexo, mais uma vez, ele pergunta a seus botões:
– Mas as vagas não são destinadas a idosos e deficientes físicos? Sim,
claro que são, mas.... Nosso consciente cidadão, um pouco desanimado, pensa: “pobre cidade, com tantos idosos e deficientes. A população economicamente ativa
deve ser mínima...”
Nessa cidade imaginária, caminhar - que deveria ser uma atividade prazerosa e cotidiana - é quase perigosa. Calçadas esburacadas, inclinadas, com desníveis e cheias de obstáculos
(postes, cestos para lixo, placas etc.), quando não avançam com rampas absurdas
sobre o leito da via. Torcer o pé é bastante comum. Caminhar com carrinho de
bebê ou carrinho de feira, quase uma prova de obstáculos. Onde está - e quem faz, quem cuida, quem mantém -
a cidade gentil e acolhedora, agradável e segura que todos têm prazer em
visitar e cuidar?
Nessa triste, desconfortável, abandonada e injusta
cidade imaginária não há fiscalização do poder público. Cada um faz o que quer,
como quer, onde quer e quando quer. É uma terra sem lei. O mais triste, porém,
é ver que não existe fiscalização ética do próprio cidadão, seja ele quem for, de que classe social, poder aquisitivo ou função. Não há um
autogoverno. Há apenas o interesse individual que parece prevalecer em todas as
situações; o outro parece não importar ou sequer existir.
Atônito com tanto desrespeito, com tantas coisas
fora dos eixos, com tanta gente pregando uma coisa, mas agindo de forma incoerente, nosso
cidadão acaba perguntando a seus botões: – Será que os que jogam lixo nas
ruas também jogam lixo dentro de suas casas? Será que não se incomodam quando os
outros agem da forma como agem? Será que acreditam que só eles têm pressa, só
eles têm direitos, só eles sabem das coisas etc... Será que pensam que estão
sozinhos nas ruas, nos parques e que a cidade, a natureza, o mundo e o universo
estão a seu único e exclusivo serviço, como se tudo existisse para atender aos
seus desejos?
O tal cidadão sente-se como um personagem dos contos do mineiro Murilo Rubião: A Cidade, O Edifício, A Fila, O Convidado, nos quais todos agem como se vivessem em um grande universo fantástico, paralelo, onde o entendido é o contrário do que foi dito, onde a certeza não existe, onde o absurdo é usual, onde a lógica foi soterrada, onde a dúvida é o que impera e o resultado, no leitor – cidadão – é uma sensação de incômodo, de estranheza constante e de não pertencimento.
O tal cidadão sente-se como um personagem dos contos do mineiro Murilo Rubião: A Cidade, O Edifício, A Fila, O Convidado, nos quais todos agem como se vivessem em um grande universo fantástico, paralelo, onde o entendido é o contrário do que foi dito, onde a certeza não existe, onde o absurdo é usual, onde a lógica foi soterrada, onde a dúvida é o que impera e o resultado, no leitor – cidadão – é uma sensação de incômodo, de estranheza constante e de não pertencimento.
Imagem: https://blogdobg.com.br/falsificar-assinatura-vender-voto-furar-fila-e-roubar-tv-a-cabo-veja-pequenas-corrupcoes-do-dia-a-dia/ |
Afinal, como querer um país justo, próspero,
civilizado, seguro com um povo educado, desenvolvido, saudável, feliz e com
qualidade de vida quando agimos assim em nosso cotidiano, preenchendo-o com pequenas
corrupções, pequenas contravenções costumeiras sem levar em conta o outro? Quando banalizamos as más atitudes e esquecemos o
bem agir? Como almejar desenvolvimento pleno e integral sem considerar que
todos devem ter os mesmos direitos e oportunidades? De receber bons serviços,
de ter acesso a um espaço público bem cuidado, à uma cidade agradável, à
justiça, a respeito e gentileza?
– Ninguém gosta de fila, mas se há fila, devo
esperar a minha vez, como todos, pensa o atônito
cidadão. Ninguém gosta de um lugar sujo, então, devo guardar o lixo no
bolso, ou na mão, até achar uma lata de lixo. Ninguém gosta de ser ignorado ou
tratado com hostilidade e desrespeito. Ninguém gosta de ser tratado como invisível.
Então, por que não agir como gostaríamos que agissem
conosco? Colocar-se no lugar do outro não é utopia. É a mais imperativa
necessidade no mundo atual. Isso fará toda a diferença. É só começar, já dizia
um velho ditado. Aquilo que o dever nos manda fazer devemos fazer também quando
estamos sozinhos, sem que ninguém nos cobre essa ação.
Que ninguém se iluda. Ou mudamos nosso modo de agir
e crescemos todos juntos, com ética, como povo e como nação, garantindo
respeito, justiça, direitos e qualidade de vida a todos, ou fracassamos todos
nós, como país, como sociedade e como indivíduos.
Sobre a autora: Anita Di Marco
é tradutora, articulista e arquiteta (FAU USP, 1976) com especialização em
Patrimônio Histórico (Iccrom-Roma).
Publicado originalmente no portal Vitruvius com o título 'A cidade imaginária de cada um'. Ver aqui .
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