segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Ecos Urbanos | Terra sem lei

Imagem: Era uma vez no oeste. Divulgação.


Hoje, a maioria da população mundial vive em cidades. Cidades grandes, médias ou pequenas. Cidades históricas, clássicas, modernas ou planejadas. Cidades universitárias, cidades mais ou menos ricas, cidades-dormitório, turísticas, cidades de veraneio. Não importa, sempre cidades.

Quando o homem descobriu a agricultura e deixou de ser caçador/coletor, as primeiras aglomerações urbanas começaram a se formar ao longo dos vales de rios, como o Nilo e o Indo (Harappa, Mohenjo-Dharo, Nínive, Ur, Tebas). Polis é a cidade dos gregos, a comunidade organizada, formada pelos cidadãos (no grego “politikos”), ou seja, pelos homens nascidos no solo da cidade, homens livres e iguais que exerciam a civilidade, cuidando de sua cidade e do bem comum; civitas (origem de civil, cidade, cidadão e civilizado) é a tradução latina para polis.
Imagem: https://br.pinterest.com/pin/189221621818078147/

Vamos, então, fazer um exercício de imaginação e visualizar uma cidade imaginária... onde moradores – nem todos, claro – agem estranhamente.
Sabe aquela cidade em que todos reclamam de tudo e criticam o que podem e o que não podem? O que veem e o que não veem? O que sabem e o que não sabem? O que sentem e o que não sentem? Criticam os políticos, os eleitores, os administradores, os empregados, os vizinhos, os amigos, a família, os chefes, os diferentes? Criticam os motoristas, os ciclistas, os meios de transporte, a natureza, as árvores, o frio, o calor... Com certeza, devem ter muitos problemas de saúde...


Sabe aquela cidade cujas ruas estão sujas, as praças descuidadas, as lixeiras arrancadas, os abrigos de ônibus destruídos, os bancos quebrados? Aquelas cidades onde ninguém parece se dar conta de que o espaço das ruas, praças e parques, o mobiliário urbano, os monumentos, todos são bens públicos e, portanto, responsabilidade de todos e de cada um?  Onde terrenos baldios sem fechamento se acumulam nos bairros (quando não acumulam lixo), com o mato avançando sobre as calçadas apesar da lei que obriga proprietários a murarem seus terrenos e cuidarem de suas calçadas?
 
 Sabe aquela cidade em que, em qualquer estabelecimento, nas casas comerciais, consultórios médicos e até em salas de espera de hospitais, todos parecem hipnotizados pela TV, por programas que falam o que querem, como querem e de quem querem, sem se importar com quem ouve, com a verdade ou o contraditório? Sem se importar com o bem comum? Sem se importar em divulgar mensagens de civilidade e ética? Aquela cidade onde a maioria parece desconhecer a dimensão histórica, o pensamento crítico e o discernimento sobre o que vê e ouve? 

Sabe aquela cidade onde, de modo geral, se percebe a falta de civilidade no trânsito, no convívio com os espaços públicos e mesmo privados? Onde cada um constrói o que quer e na altura que quer, desrespeitando as leis e ignorando o projeto originalmente aprovado? Onde normas de boa vizinhança e ordenamento urbano como leis urbanísticas, leis de trânsito, placas de sinalização, tempo e vagas de estacionamento são solenemente ignoradas e parecem ter sido feitas para meia dúzia de ingênuos e não para beneficiar a cidade, a convivência humana, como um todo?

Onde a gentileza parece apenas um termo esquecido no dicionário, onde motoristas (de automóveis particulares, ônibus e táxi) e motociclistas não se respeitam? Onde ciclistas, pedestres de todas as idades e faixas de segurança são continuamente desrespeitados e correm riscos cotidianos? 

Sabe aquela cidade em que no estacionamento rotativo, criado para que mais pessoas pudessem estacionar no espaço público, o motorista nunca encontra uma vaga? Ou se encontra (a vaga especial, por exemplo), percebe que está ocupada irregularmente, com carros mal estacionados utilizando o espaço de dois ou três veículos?
 http://www.pensamentoverde.com.br
Sabe aquela cidade onde os parques, praças e ruas estão salpicadas por copos plásticos, saquinhos, papéis de bala, pontas de cigarros (para não dizer coisas maiores)? Aquelas cidades em que usuários de carros particulares ou ônibus têm o desplante de jogar lixo pela janela de seus veículos. Ou aquelas cidades em que moradores cortam árvores porque – dizem – sujam a calçada.... Ou porque - dizem - que as árvores são todas iguais, ou que não deixam alguns metros quadrados de grama em seus terrenos e impermeabilizam 100% do lote?

Ou aquelas cidades que ainda acreditam que altura dos edifícios é sinal de progresso e, sem se importar com a largura das vias, a sobrecarga da infraestrutura ou a vizinhança, querem construir edifícios desnecessariamente altos? Edifícios que irão bloquear o sol de tantos, que irão criar um espigão no meio de zonas residenciais? Prédios menores, de cinco, seis ou até oito andares, não seriam suficientes, mais adequados e não criariam melhores bairros, com altura mais harmônica e agradável? 

Sabe aquela cidade onde alguns moradores ouvem música alta quando e onde querem, param onde e como bem entendem, jogam suas coisas como e onde querem, constroem o que querem, falam com os demais como se fossem inferiores ou inimigos, desrespeitam o outro e o povo... Enfim, cidades onde existem pessoas que só pensam em buscar uma forma de driblar leis e normas de civilidade? Ou em defender seus próprios interesses ou “direitos”, mas sem jamais pensar em seus deveres? Pessoas que nem se lembram ou sequer sabem que seu direito acaba onde começa o do outro? 

Pois é!
Nessa cidade imaginária, alguns passageiros de trens, metrô ou ônibus, se acomodam nos bancos reservados e fingem dormir quando um idoso, uma mulher grávida ou com uma criança no colo entra – Ué, mas os bancos não estão reservados para usuários especiais? – Não é regra? A resposta é um estrondoso “sim” para as duas perguntas. Mas regras são para poucos tolos, ao que parece...



Nessa cidade imaginária, todos os cidadãos ficam prejudicados pela visão estreita de alguns, pelo egoísmo de outros, pela acomodação de outros tantos, pelo desrespeito de uma minoria barulhenta e autoritária com os demais. Um cidadão comum e consciente, como tantos outros, precisa estacionar seu carro nas tais zonas azuis, mas não encontra vaga, porque alguns acreditam que vagas existem apenas para atendê-los; outros estacionam mal, ocupando um espaço bem maior do que aquele que, de fato, necessitariam. Nosso cidadão decide estacionar mais longe e caminhar algumas quadras a mais. Sem problemas, mas, ao longo do trajeto, percebe que, dos carros estacionados, pouquíssimos têm o bilhete obrigatório de estacionamento rotativo. Perplexo, ele se pergunta: – Ué, mas aqui não é zona azul? O motorista não é obrigado a comprar o cartão, preenchê-lo e sair no horário marcado? 

 Duvidando de sua visão, ele olha de novo para a placa de sinalização. Sim, não há engano. É o que mostra a placa, mas parece que poucos se dão conta disso. Aquele que estacionou sem cartão, em vaga errada, ou de forma torta deve ter achado que a área era livre, como numa terra de ninguém, de quem chegasse primeiro e tomasse posse.... O tempo? Deveria ser de uma ou duas horas, não? Como assim? Os carros estão estacionados há quase 4 horas, quando não ficam o dia todo.

Nessa cidade imaginária, quando os carros, simplesmente, não estacionam sobre as faixas – ditas – de segurança, como dizia minha avó é uma peleja tentar atravessar a rua, ainda que na faixa de pedestres. Uma luta e um perigo, porque poucos carros param ou sequer diminuem para o pedestre passar. Muitas vezes, chega a ser necessário fazer o sinal de ‘PARE’ com a mão. – Ué, mas os pedestres não têm prioridade nas faixas? Claro, mas.... Dar passagem para outros carros? Claro que não! Muitas vezes, motoristas aceleram para não dar passagem a alguém em situação difícil ou alguém que quer simplesmente cruzar uma rua a pé, ou fazer conversão quando num veículo...Seria tão mais simples e gentil apenas tirar um pouco o pé do acelerador... Ou dar preferência aos ônibus: afinal eles levam 40 passageiros!

Nessa cidade imaginária, nosso cidadão consciente também vê carros, sem as respectivas placas de identificação, parados nas tais vagas especiais. Inquieto e perplexo, mais uma vez, ele pergunta a seus botões: – Mas as vagas não são destinadas a idosos e deficientes físicos? Sim, claro que são, mas.... Nosso consciente cidadão, um pouco desanimado, pensa: “pobre cidade, com tantos idosos e deficientes. A população economicamente ativa deve ser mínima...”



Nessa cidade imaginária, caminhar - que deveria ser uma atividade prazerosa e cotidiana - é quase perigosa. Calçadas esburacadas, inclinadas, com desníveis e cheias de obstáculos (postes, cestos para lixo, placas etc.), quando não avançam com rampas absurdas sobre o leito da via. Torcer o pé é bastante comum. Caminhar com carrinho de bebê ou carrinho de feira, quase uma prova de obstáculos. Onde está - e quem faz, quem cuida, quem mantém - a cidade gentil e acolhedora, agradável e segura que todos têm prazer em visitar e cuidar?
 Nessa triste, desconfortável, abandonada e injusta cidade imaginária não há fiscalização do poder público. Cada um faz o que quer, como quer, onde quer e quando quer. É uma terra sem lei. O mais triste, porém, é ver que não existe fiscalização ética do próprio cidadão, seja ele quem for, de que classe social, poder aquisitivo ou função. Não há um autogoverno. Há apenas o interesse individual que parece prevalecer em todas as situações; o outro parece não importar ou sequer existir.

Atônito com tanto desrespeito, com tantas coisas fora dos eixos, com tanta gente pregando uma coisa, mas agindo de forma incoerente, nosso cidadão acaba perguntando a seus botões: – Será que os que jogam lixo nas ruas também jogam lixo dentro de suas casas? Será que não se incomodam quando os outros agem da forma como agem? Será que acreditam que só eles têm pressa, só eles têm direitos, só eles sabem das coisas etc... Será que pensam que estão sozinhos nas ruas, nos parques e que a cidade, a natureza, o mundo e o universo estão a seu único e exclusivo serviço, como se tudo existisse para atender aos seus desejos? 

O tal cidadão sente-se como um personagem dos contos do mineiro Murilo Rubião: A Cidade, O Edifício, A Fila, O Convidado, nos quais todos agem como se vivessem em um grande universo fantástico, paralelo, onde o entendido é o contrário do que foi dito, onde a certeza não existe, onde o absurdo é usual, onde a lógica foi soterrada, onde a dúvida é o que impera e o resultado, no leitor – cidadão – é uma sensação de incômodo, de estranheza constante e de não pertencimento.
Imagem: https://blogdobg.com.br/falsificar-assinatura-vender-voto-furar-fila-e-roubar-tv-a-cabo-veja-pequenas-corrupcoes-do-dia-a-dia/

Afinal, como querer um país justo, próspero, civilizado, seguro com um povo educado, desenvolvido, saudável, feliz e com qualidade de vida quando agimos assim em nosso cotidiano, preenchendo-o com pequenas corrupções, pequenas contravenções costumeiras sem levar em conta o outro? Quando banalizamos as más atitudes e esquecemos o bem agir? Como almejar desenvolvimento pleno e integral sem considerar que todos devem ter os mesmos direitos e oportunidades? De receber bons serviços, de ter acesso a um espaço público bem cuidado, à uma cidade agradável, à justiça, a respeito e gentileza? 
 – Ninguém gosta de fila, mas se há fila, devo esperar a minha vez, como todos, pensa o atônito cidadão. Ninguém gosta de um lugar sujo, então, devo guardar o lixo no bolso, ou na mão, até achar uma lata de lixo. Ninguém gosta de ser ignorado ou tratado com hostilidade e desrespeito. Ninguém gosta de ser tratado como invisível.

Então, por que não agir como gostaríamos que agissem conosco? Colocar-se no lugar do outro não é utopia. É a mais imperativa necessidade no mundo atual. Isso fará toda a diferença. É só começar, já dizia um velho ditado. Aquilo que o dever nos manda fazer devemos fazer também quando estamos sozinhos, sem que ninguém nos cobre essa ação.
Que ninguém se iluda. Ou mudamos nosso modo de agir e crescemos todos juntos, com ética, como povo e como nação, garantindo respeito, justiça, direitos e qualidade de vida a todos, ou fracassamos todos nós, como país, como sociedade e como indivíduos.

Sobre a autora: Anita Di Marco é tradutora, articulista e arquiteta (FAU USP, 1976) com especialização em Patrimônio Histórico (Iccrom-Roma).

Publicado originalmente no portal Vitruvius com o título 'A cidade imaginária de cada um'. Ver aqui  . 

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