segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Ecos Humanos | O viver e o morrer

Meu pai. Horto Florestal-SP. Foto:Anita Di Marco  
Duas faces da mesma moeda, pois tudo o que nasce morre. Só não sabemos quando e, talvez por isso, evitamos tocar no assunto. Mas é a maior certeza da vida.  
Há exatos 16 anos, numa terça-feira, meu pai partia desta vida. Assim, quando pensei em escrever este post, do nada, um adjetivo me veio à mente: tétrico! Mas outra frase logo surgiu e tomou seu lugar: “Uma única faísca de luz espanta as trevas e a escuridão”. 
Sim! O conhecimento é a luz de que precisamos. Com o avançar do nosso tempo de vida, é inevitável refletir mais sobre o momento da partida. Inevitável e natural, já que temos menos tempo a percorrer do que o já percorrido. 
 
Sobre o tema, algumas músicas, verdadeiros poemas cantados, sempre me emocionam; são canções que falam de saudade, do tempo perdido e da consciência da finitude da vida. A primeira é Epitáfio (do grego epitafius, ou "sobre o túmulo"), cantada pelos Titãs e composta, em 2002, por Sérgio Britto (1959), um dos fundadores do grupo. A canção fala da vida, da passagem e da perda de tempo, e de como vivemos de forma mecânica, sem estarmos presentes em cada momento. Fala do acaso, do imprevisto, do fortuito. Porém, como  na mensagem que escrevi à família por ocasião da morte de meu pai, o que vai nos proteger é a consciência de agir e  fazer nosso melhor, sabendo que existem surpresas na vida, sim, mas que temos que enfrentá-las. Por isso, a frase do início deste post - “Uma única faísca de luz espanta as trevas e a escuridão”, ou seja, nada supera a luz da sabedoria e do conhecimento. Se soubermos que somos luz, que o Eu superior de cada um é pura luz, não teremos o que temer; só a agradecer o convívio, a permanência e o aprendizado na grande escola terrestre. 
 
Obra do artista Bansky
Outra música que me emociona é Naquela Mesa, escrita em 1972 pelo compositor e jornalista Sérgio Bittencourt (1941-1979), em homenagem a seu pai, o também músico Jacob do Bandolim. Foi imortalizada por Nelson Gonçalves, que coloca a alma quando canta e diz: “Naquela mesa está faltando ele e a saudade dele está doendo em mim”...      
A saudade também é inevitável, mas em vez de causar dor, que seja uma saudade de boas lembranças, uma saudade que sabe que a energia amorosa que ligou esses seres vai permanecer, como diz uma frase de Saint-Exupéry, em O Pequeno Príncipe: "Aqueles que passam por nós não vão sós e não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós".   

Mas não são só canções; os poemas, a literatura e muitos livros de psicologia e de autoajuda também abordam o tema da partida e do luto, sob diferentes ângulos. Sem desmerecer nenhum outro, cito quatro deles que chegaram às minhas mãos meio por acaso. O último não foi por acaso. É o relato de uma grande amiga que, por sua perda, talvez tenha sofrido a mais pungente das dores:  

Lutos (Summus, 2024). O livro, uma coletânea recém-lançada pelas psicólogas Márcia Noleto e Mariana Magalhães, reúne dezoito depoimentos sobre como respeitar e entender a diversidade dos tipos de luto –  perda de pessoas queridas e  da família, luto de imigrantes, luto materno, paterno ou neonatal, luto político, luto por um país, pela violência, por doenças, pela covid-19, por suicídio etc.  

  Notas sobre o luto é da autoria da nigeriana Chimamanda Ngozi Adiche (1977), uma das maiores vozes da literatura contemporânea. Nele, a autora aborda, mas não só, a sofrida morte repentina de seu pai, durante a pandemia de covid-19. Um pai sempre presente e muito amado, sobrevivente da Guerra de Biafra e que teve, depois, uma longa carreira de professor. O livro aborda a dor envolvendo essa perda, mas também outros sentimentos, muitas vezes controversos, que se alternam como raiva, solidão, memória, resiliência e esperança.

— Outro livro bastante atual é A morte é um dia que vale a pena viver, da geriatra e gerontóloga Ana Claudia Quintana Arantes. Criadora da Casa do Cuidar, especialista e referência em cuidados paliativos, a autora aborda a perda sob um novo ângulo: o da valorização de cada momento da vida e da aceitação com naturalidade do fim de uma caminhada bem vivida. Conclama todos a tomarem consciência da sacralidade da vida, do processo natural da partida e de como é importante (para todos) procurar aceitar de forma tranquila essa passagem, sendo uma presença serena, firme e de apoio para quem parte. É uma ode ao bem viver e ao bem morrer.

A maior das perdas, livro da educadora e professora de Educação Física Ione Maria Ramos de Paiva, mostra os questionamentos de uma mãe que perdeu o filho único em trágico acidente. Além de confessar que o objetivo primeiro era fazer uma catarse com a escrita do livro, buscando entendimento e consolo em diversas áreas, da astrologia à meditação, passando pelo Espiritismo e pelos estudos de Rosa Cruz, a autora confessa que, de alguma forma, pretendia ajudar outros pais que também perderam seus filhos. Este é o relato sofrido de uma livre pensadora, que trilhou os caminhos de diversas crenças espirituais sem encontrar nenhum consolo, exceto a elucidação oferecida pela tão esperada prova da continuidade da vida após a morte.

Na hora da partida, quando chegar nossa vez ou de alguém próximo, que saibamos enfrentar esse momento único com consciência, lucidez, serenidade, aceitação e gratidão.

Referências

ARANTES,  Ana Cláudia Quintana. A morte é um dia que vale a pena viver. (Sextante, 2019).

ADICHE Ngozi, Chimamanda. Notas sobre o luto. (Companhia das Letras, 2021).

NOLETO, Márcia e MAGALHÃES, Mariana. Lutos (summus, 2024)

PAIVA, Ione Maria Ramos. A maior das perdas. Rio de Janeiro: Barra Livros.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Ecos Tradutórios | Tradução da CF para o nheengatu (2/2)

Retomamos aqui o post anterior (aqui) a respeito de atividades que valorizam e divulgam a literatura indígena.

Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
Um fato inédito, mas não divulgado com o devido destaque pela grande mídia, foi a tradução feita em 2023 da Constituição Federal de 1988 para o nheengatu. A iniciativa foi do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) junto com o Supremo Tribunal Federal (STF), em particular da ministra Rosa Weber. O lançamento do livro foi em São Gabriel da Cachoeira (AM), na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). Merece destaque uma das falas da ministra Rosa Weber, na ocasião: 

— “Levamos 523 anos para chegar a este momento, que considero histórico; a tradução é um gesto de valorização e respeito à cultura e à língua indígenas, ajudando a construir  juntos um Brasil verdadeiramente inclusivo, onde todas as vozes e línguas sejam ouvidas, onde todas as culturas sejam valorizadas e respeitadas, onde todos reconheçam o indispensável papel dos povos indígenas para a preservação do equilíbrio ambiental do planeta e, assim, da vida e do futuro de todos nós, pois somos todos Brasil”.   

A tradução foi feita por doze lideranças indígenas bilíngues, todos professores e falantes nativos da região do Alto Rio Negro e Médio Tapajós, como os tradutores Dadá Baniwa e Lucas Yard Marubo, além de três consultores ligados ao mundo jurídico e de uma equipe do Tribunal Jurídico do Amazonas que deu o apoio necessário à execução da tarefa.

Em junho de 2024, a Fundação Biblioteca Nacional realizou seu Seminário de Tradução, o segundo da série regular, com o tema “Literaturas e culturas indígenas em tradução”. Transmitido ao vivo pelo YouTube da FBN, o seminário reuniu o representante do povo Marubo do Vale do Javari, Lucas Ycard Marubo, os professores e pesquisadores Jamille Pinheiro Dias (Universidade de Londres) e José Guilherme dos Santos Fernandes (Universidade Federal do Pará), com a mediação da tradutora e pesquisadora Andréia Guerini (Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC).

 Lucas Ycard Marubo localizou o Vale do Javari, na fronteira com o Peru, como o segundo maior território indígena do Brasil e falou da divulgação da literatura indígena, salientando que essa primeira tradução para o nheengatu da CF foi um marco histórico, 35 anos depois da promulgação da nossa Carta Magna. Destacou a importância da tarefa, realizada em tempo recorde (três meses), o que representa um incentivo para outras traduções. Falando dos gigantescos desafios para a tarefa, o tradutor indígena destacou as diferenças linguísticas e culturais entre os vários povos, já que, conforme o censo de 2010, existem 305 etnias e apenas 274 idiomas vivos no país. 

Segundo Marubo, é a língua, com sua estrutura e fala, que perpetua e molda a identidade de um grupo, suas diferentes concepções de tempo e espaço, formas de se organizar e perceber o mundo. Exemplificou o concepção de termos como Estado, direitos individuais, propriedade privada, fronteiras, formas de casamento, punição e compensação etc., conceitos que podem ser divergentes para cada povo ou até mesmo não existir. Assim, para ele, a tradução da CF transpôs esses conceitos, com uma visão sensível das leis e trabalhando os textos para se adequarem à visão de mundo desses povos que têm identidades, concepções de mundo e sistemas jurídicos próprios. Lembrou ainda que, nos processos coloniais, sempre violentos e nocivos, a primeira atitude é extinguir a língua falada, a principal prova da existência de um povo. Também aqui, ao longo desse processo, muitas línguas foram extintas e alguns povos originários perderam sua identidade. Hoje, felizmente, há uma série de tentativas de resgate e perpetuação da identidade desses povos, como a a inestimável tradução da CF para o nheengatu.

A tradutora Jamille Pinheiro Dias, professora da Universidade de Londres, em sua trajetória como pesquisadora, reuniu etnologia aos estudos linguísticos e de tradução. Destacou os complexos desafios éticos e estéticos de cada língua, das artes verbais indígenas e como se deve trabalhar tal complexidade, descentralizando o verbal e considerando o extralinguístico (cantos, rituais, danças, narrativas cosmogônicas, grafismos, gestualidade etc.). Assim, é possível adotar-se uma abordagem multimodal e interssemiótica mais ampla para, ao menos, mitigar a mutilação de sentido dessas práticas.     

Lembrou que tradução também é ativismo, que nenhuma linguagem é neutra e, logo, nenhuma tradução é politicamente neutra. É preciso partir da conscientização de que nossas escolhas, inclusive sintáticas e semânticas, são políticas e o que escolhemos traduzir e como traduzimos têm impacto na visibilidade (ou não) de determinados discursos narrativos e podem contribuir (ou não) para perpetuar ou subverter discursos autoritários, racistas, anti-indígenas etc. Um exemplo é a tradução de A vida não é útil, livro de Ailton Krenak no qual ele denuncia a campanha mentirosa que diz que o “agro é pop”, veiculada por uma grande emissora de TV. 

O professor José Guilherme dos Santos Fernandes, da Universidade Federal do Pará, encerrou o evento reafirmando a magnitude da tradução da Constituição para o nheengatu e a necessidade de traduzir obras indígenas para o português e vice-versa. Encerrou sua fala, destacando o papel da linguagem na representação da identidade de um povo e a importância da tradução como ativismo. 

Referências

https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/07/constituicao-nheengatu-web.pdf  

https://www.cnj.jus.br/ao-lancar-primeira-constituicao-em-lingua-indigena-presidente-do-stf-e-do-cnj-destaca-momento-historico-para-o-brasil/  

https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Lanc807amentoCFemNheengatuFinal.pdf  

https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-07/constituicao-brasileira-e-traduzida-pela-1a-vez-para-lingua-indigena  

https://www.youtube.com/watch?v=aVhfb4exDJA

https://revistainfoco.com.br/2024/06/21/biblioteca-nacional-realiza-2o-seminario-de-traducao-nesta-terca-feira-25/