terça-feira, 24 de novembro de 2020

Ecos Humanos | Vida Sustentável

Continuo temperando a prática profissional com a rica vida online, pontuada por aulas, seminários, palestras,  peças teatrais, feiras literárias e festivais. Continuo me cuidando para cuidar dos outros. Esse cuidado é essencial e inevitável, ainda mais com a segunda onda da Covid-19, que chegou antes mesmo do final da primeira.  
 
Realizado anualmente no Rio de Janeiro, desde 2015, o Festival de Vida Sustentável-Livmundi é um movimento em prol da sustentabilidade que ocupa inúmeros espaços da cidade, reunindo milhares de pessoas para encontros, conversas, discussões, oficinas, feiras de livros e de alimentos para que, em conjunto, seja mais fácil despertar e buscar “o melhor de cada um de nós como indivíduos, cidadãos e habitantes do planeta” (1). Um evento pautado nos modelos de economia criativa, solidária e sustentável, conscientizando o cidadão para buscar uma vida mais natural, simples e plena.

A edição de 2020, realizada nos dias 3 a 9 de outubro, foi a primeira da qual pude participar, já que o evento foi inteiramente virtual. Com certeza, participarei das próximas edições. Diversidade, riqueza e seriedade foram as marcas do festival: palestras, mesas redondas, discussões e oficinas com convidados da melhor qualidade: cientistas, psiquiatras, psicólogos, antropólogos, ambientalistas, nutricionistas, médicos, biólogos, advogados, administradores, economistas, sociólogos, lideranças da sociedade civil, professores de yoga e de tai chi chuan, em atividades que contaram com o valioso trabalho dos mediadores e dos interpretes de Libras, garantindo imediata inclusão na prática. 

Em resumo, a tônica do evento foi apelar para uma urgente mudança de paradigmas se não quisermos sucumbir como sociedade e raça humana. Na noite de abertura, por exemplo, o tema foi O futuro que não tem bordas, que reuniu, nada mais nada menos, do que duas personalidades conhecidas e respeitadas no mundo: Noam Chomsky e Pepe Mujica.   

Noam Chomsky (1928) é linguista, historiador, filósofo e pensador, ativista engajado em questões ambientais e na reformulação dos sistemas político e econômico, em especial nos EUA. Ele destacou a prática do capitalismo financeiro de não só fomentar a acumulação de poucos em detrimento de muitos, mas também sua capacidade de desinformar a sociedade, criando consumidores acríticos, autômatos e dependentes. Destacou que as massas são manipuladas pela ausência de educação e informação, salientando que é preciso mudar a mentalidade dos indivíduos para que eles se tornem mais solidários e empáticos. Afirma que a grande chave para essa mudança de paradigma é a educação, o cultivo do pensamento crítico e a formação de cidadãos mais solidários e menos consumistas.  Finalizou alertando que seremos destruídos se, nos próximos 10-20 anos, não cuidarmos dos recursos do planeta para criar uma sociedade mais justa e cooperativa, controlada pelo interesse da maioria das pessoas.

Por outro lado, Pepe Mujica (José Alberto Mujica Cordano), (1935), agricultor, ex-presidente uruguaio entre 2010-2015 e ex-senador que, há pouco abdicou dessa função, criticou o tempo gasto pelas sociedades modernas para acumular e consumir cada vez mais, o que rouba das pessoas o tempo dedicado à liberdade e aos afetos. Deu exemplos práticos dessa simplicidade quando, na presidência, rejeitou os benefícios do cargo e preferiu viver com simplicidade, doando 90% dos seus ganhos. Mujica salientou ainda que o capitalismo criou uma massa acrítica de consumidores/compradores compulsivos, mas não de cidadãos, reforçando que aprender a viver com sobriedade e simplicidade, sem aderir à loucura capitalista, é um ato quase revolucionário. Frisou que somos a sociedade do desperdício, com parâmetros de obsolescência programada para que os objetos tenham curta duração e tenham que ser repostos o tempo todo.  Finalizou lembrando que vê um fio de esperança na prática da simplicidade e na geração futura...

  “Acho que a política da cooperação, da solidariedade, da sobriedade, do menor consumo, da simplicidade e do cuidado com o meio ambiente é o que garante que apliquemos nossa liberdade no que queremos, não naquilo que o capitalismo nos impõe. ”  

  “Esta é uma linda causa para os jovens, uma vez que a gente vive porque nasce; mas depois de nascer, pode-se dar uma causa ao milagre de ter nascido e lutar pela sobrevivência da espécie.... É uma forma de agradecer ao milagre da vida. ” 

(Pepe Mujica, no Festival de Vida Sustentável do LIVMUNDI, 03 out.2020)  

Referências
(1)https://www.livmundi.com/o-que-e/
https://super.abril.com.br/cultura/dentro-da-cabeca-de-noam-chomsky/
https://www.hypeness.com.br/2015/03/o-legado-de-pepe-mujica/

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Ecos Literários | Batalhas de Poesias

As Batalhas de Poesias, ou Poetry Slams, são eventos literários e culturais das periferias urbanas. A primeira delas nasceu em Chicago, em 1986, na mesma época do hip-hop e acabou se espalhando pelo mundo. Tomando emprestado o nome das finais dos torneios de baseball e bridge, Mark Kelly Smith, poeta e operário da construção civil de Chicago, criou o movimento Uptown Poetry Slam organizando noites regadas a poesia, em vez de música. 
O movimento parece ter preenchido um enorme vácuo de canais de expressão, criando uma maneira emblemática de difundir e cobrar consciência sobre os temas abordados. Aliás, como na literatura, a poesia faz aflorar diferentes temas e emoções: palavras, rimas e performances falam de dor, alegria, humor, revolta, racismo, violência, homofobia, preconceito, dramas cotidianos, feminismo, ativismo cultural, resistência e denúncia. Segundo os poetas e organizadores, a inspiração é multifacetada – história, literatura, música, dança e realidades vividas. Numa palavra, a vida cotidiana.

Em no máximo três minutos, os poetas competidores/slammers recitam, leem, declamam e interpretam seus poemas. Nessas batalhas, o único som é a voz do poeta ou a vibração da plateia. Nada de música. Nada de percussão, violão, sanfona, teclado, gaita ou flauta. Só a voz que quer expor seu desabafo, revolta ou convocação. Os jurados, todos voluntários ou escolhidos pouco antes das batalhas, analisam e dão notas à poesia falada, à interpretação e à performance do poeta.

Os primeiros grupos criados no Brasil foram o ZAP (Zona Autônoma da Palavra), criado em 2008 por Roberta Estrela D’Alva, atriz, poetisa e apresentadora do programa Manos e Minas, na TV Cultura, e o Slam da Guilhermina (2012), realizado em uma praça pública, ao lado da estação Guilhermina-Esperança, na zona Leste da capital paulista. Só na cidade de São Paulo já existem mais de 50 grupos. Em outras capitais, como Brasília, Rio de Janeiro, Recife, João Pessoa, Curitiba, Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte contam-se inúmeros coletivos, além daqueles em cidades menores. No nosso Nordeste, como não poderia deixar de ser, as batalhas ganharam mais liberdade e tons mais regionalistas, com a inserção, por exemplo, do improviso, das emboladas e do rap.

A edição 2018 da Festa Literária das Periferias-FLUP (sim, ignoradas por muitos, as periferias também têm criação, arte, cultura e organização), evento que acontece, desde 2012, em territórios excluídos dos programas literários do Rio de Janeiro, sempre apresenta algumas dessas batalhas nacionais e até internacionais. A seguir, três vídeos dão uma amostra da relevância desses eventos. Não há mais volta. A periferia quer se fazer ouvir. Vida longa à conscientização e às batalhas poéticas.  

1-Receba a delicadeza | Tawane Theodoro|Final. Vídeo da Slam da Guilhermina 2018, publicado em 01/nov/2018. Tawane Theodoro, campeã do ano. Produção: Colapso. Cinegrafistas: André Nicácio, Christian Harrison, Fernando Santos, Leonardo Souza, Rui Alves.
2-Batalha de Poesia/ Semi final do SLAM "DONATELLA". Publicado pela Grito filmes, em 02 de abril de 2017. Filmagem: Kevin Barbosa.  
 
3-
IWPS Finals 2014. A campeã individual Porsha O. (Porsha Olayiwola) "Angry Black Woman", em Phoenix Arizona, em 2014. Publicado por  Poetry Slam Inc em 18 fev. 2015. É de chorar.

 

Referências

https://www.brasildefato.com.br/2017/09/05/conheca-o-slam-a-batalha-de-poesias-que-tomou-as-ruas-das-cidades
https://journals.openedition.org/pontourbe/2836
https://ponte.org/zap-slam-a-primeira-batalha-de-poesia-do-brasil/

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Ecos Imateriais | Yoga & Política

Yoga é uma filosofia e um caminho de vida, uma forma de ser e estar no mundo, de forma ativa, interessada e coerente. Pressupõe, antes de qualquer coisa, seguir os preceitos éticos (yamas-niyamas) de não violência, verdade, honestidade, desapego, contentamento, autoconhecimento, persistência, entrega, entre outros. E mais, é sempre bom lembrar que se yoga é um caminho, os conceitos éticos são o mapa do caminho. 

Por outro lado, Política (com P maiúsculo), segundo o Aulete é a "arte e ciência da organização e administração de um Estado, uma sociedade, uma instituição" e, lembrando Aristóteles, somos seres políticos, no sentido de exercer nossa cidadania na pólis, na comunidade. Assim, não só podemos como devemos agir no lugar onde moramos com nossos exemplos e trabalho para transformar os ambientes físicos, mentais e emocionais. Agir a partir do que aprendemos, ou seja, aplicar a teoria.  

Mais do que levantar bandeiras, nosso agir escancara o que defendemos. Então, como aceitar tanto preconceito e desrespeito, tanta discriminação, injustiça, violência, fome e falsidade ao nosso redor?  Se a nossa prática religiosa ou de yoga (asanas, pranayamas, bandhas, tratakas e meditações) não nos torna melhores indivíduos, se não nos faz agir com ética buscando justiça social, direitos e melhor qualidade de vida para todos, se não nos ensina a olhar e acolher o outro, estamos negando e reduzindo drasticamente o yoga, como ciência e filosofia. Melhor, então, nem chamar de yoga, porque yoga é uma filosofia que quer aprimorar, equilibrar, incluir e acolher cada indivíduo como parte do todo.

O próprio Bhagavad Gita ensina o yoga ao narrar uma guerra. Sim, pode ser uma alegoria, é verdade, uma guerra contra as próprias imperfeições. No Gita, aconselhado por Krishna, o Príncipe Arjuna, no início relutante, acaba entendendo que deve lutar para restaurar o equilíbrio do seu povo, em busca de um mundo mais justo. Ou seja, a paz é resultado de uma busca ativa que não se encolhe, mas enfrenta e supera o conflito, através da ação. Com certeza, a paz a ser atingida não é a das catacumbas.

Yoga é exatamente a integração da dualidade na unidade. Somos tudo isso, somos luz e sombra, bem e mal, força e fraqueza. O importante é buscar o equilíbrio, diante de cada escolha e, na dúvida, perguntar-se: o que faria o Mestre? Porque, se ficarmos neutros em situações de injustiça, mentira e opressão estaremos concordando com tal situação, frase que escancara uma verdade absoluta e inegável, dita "n" vezes pelo arcebispo Desmond Tutu da África do Sul. 

Assim, é preciso repensar qual a nossa intenção por trás da prática de qualquer religião ou do yoga. Aliás, não se trata de  religião ou de fuga da realidade. Trata-se de religiosidade vivida, de espiritualidade. Trata-se de aplicar o conhecimento para buscar consciência, sabedoria, discernimento e coragem no nosso interior, para saber como lidar com as situações do dia a dia, opondo-se aos privilégios, preconceitos, injustiças, violência e exclusão, buscando o bem de todos, tendo por base os conceitos éticos já citados. Isso é vida plena, é yoga, é ser inteiro e coerente com o caminho escolhido. Aliás, durante toda sua vida e ação política, Gandhi afirmava que não compreende espiritualidade aquele que separa espiritualidade de política.

Concluindo, é essencial aliar teoria à prática. Não tem sentido fazer posturas acrobáticas, viver no templo, na casa religiosa ou recitar trechos de livros sagrados se não nos transformarmos. É crucial perceber nosso papel no mundo, sobretudo quando seguimos uma filosofia ou uma religião que prega amor, compaixão e solidariedade. Se todos agissem de acordo com tais ensinamentos, o mundo seria outro, porque todas pregam o bem e a fraternidade. Só agindo dessa forma e colocando-nos no lugar do outro, no dia a dia, é que iremos nos nutrir e nos curar, como humanidade. Logo, ações e atitudes conscientes e de cidadania visando ao bem comum são o fruto de uma compreensão profunda e integrada de yoga, porque têm a ver com altos ideais de justiça, respeito e fraternidade. Ao que se saiba, Francisco de Assis nunca praticou yoga como nós, mas levou, de forma profunda, uma vida de não violência, entrega, contentamento, pureza e desapego. Afinal, como diz uma certa Dolores, devemos ser como rapadura: doces, mas firmes. 

Referências: 

https://www.yogajournal.com/lifestyle/do-politics-belong-in-yoga

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Ecos Literários | Precisamos falar sobre assédio!

Durante esses tempos de Covid-19, em que muitas pessoas puderam trabalhar de casa (sou uma delas e agradeço por isso), no final de agosto assisti a um evento para lá de especial: a Festa Literária de São Sebastião – FLISS-2020, promovida pelo Instituto Mpumalanga, com o apoio da Unicef. São Sebastião é uma deliciosa cidade praiana, no Litoral Norte de São Paulo. É onde se pega a balsa para a Ilha de São Sebastião, conhecida como Ilha Bela. Fui algumas vezes a São Sebastião. Lembro-me da cidade, de seu simpático centro histórico e de locais bastante agradáveis. Mas há anos não passo por ali e fiquei bastante surpresa pela qualidade da FLISS, que revelou uma cidade culturalmente rica, socialmente engajada e ativa. 
 
Este ano,  em função da pandemia, o evento foi virtual e uma dádiva para quem conseguiu assistir às muitas atrações. Com extensa programação, a FLISS 2020 teve diversas atividades, algumas gratuitas e algumas pagas, sendo a renda revertida para famílias da cidade impactadas pela Covid-19. Assim, foi possível assistir a entrevistas, encontros com autores, música, lançamento de livros, contadores de histórias de vários países, debates literários,  oficinas e por aí vai.  

Em uma das atividades, Chá com Livros, a jornalista Ana David entrevistava autores que lançavam seus livros na própria FLISS. Um deles foi Não me Toca, seu Boboca!, de autoria de Andrea Taubman, ilustrado por Thais Linhares e lançado pela editora Aletria, de Belo Horizonte. O tema – a questão do abuso e da violência contra a criança - sempre foi, mas vem se tornando cada vez mais fundamental, pelo aumento da violência infantil e doméstica. Agora, durante a pandemia, é assustador verificar o aumento do número de casos de violência.

Segundo a autora, o livro nasceu depois que ela trabalhou como voluntária em um abrigo temporário para crianças vítimas de maus-tratos, abuso sexual inclusive. Como mãe, Andrea diz que se sentiu aflita ao perceber o medo no olhar daquelas crianças. Foi o pontapé inicial para buscar um meio de abordar o tema em seus livros. A história da Ritoca, então, criou um diálogo sobre esse tema tão sofrido, esclarecendo e alertando as crianças para que não permitam tal situação. A autora usa uma linguagem infantil e lúdica, mas não perde o foco e o propósito do livro. Como os personagens são animais, a leitura é sutil, divertida e gentil, mas ensina às crianças como reagir diante de gestos inadequados de outras pessoas que, muitas vezes, encontram-se dentro da própria família.

A publicação já recebeu o Prêmio Neide Castanha de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, iniciativa do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Deveria ser leitura obrigatória para pais, filhos e professores.

Sinopse: Ritoca conta uma história, meio difícil de entender, muito difícil de falar. O encontro com um tio gentil e sorridente acaba se tornando um pesadelo, do qual Ritoca e seus amigos, felizmente, conseguem escapar. “Se for de um jeito suspeito, ninguém deve tocar na gente!”, ela logo reconhece.  

Para quem quiser assistir às atividades da Fliss 2020, inclusive o papo com a autora e outras discussões sobre o tema, o evento está disponível no youTube do Instituto Mpumalanga.

Referência

https://www.youtube.com/playlist?list=PLTrsqO-u0u7gARM2p3G-Jq-jz8fqq96HS
https://leiturinha.com.br/blog/nao-me-toca-seu-boboca-autora-do-livro-fala-sobre-abuso-infantil/