Retomamos aqui o post anterior (aqui) a respeito de atividades que valorizam e divulgam a literatura indígena.
Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF |
— “Levamos 523 anos para chegar a este momento, que considero histórico; a tradução é um gesto de valorização e respeito à cultura e à língua indígenas, ajudando a construir juntos um Brasil verdadeiramente inclusivo, onde todas as vozes e línguas sejam ouvidas, onde todas as culturas sejam valorizadas e respeitadas, onde todos reconheçam o indispensável papel dos povos indígenas para a preservação do equilíbrio ambiental do planeta e, assim, da vida e do futuro de todos nós, pois somos todos Brasil”.
A tradução foi feita por doze lideranças indígenas bilíngues, todos professores e falantes nativos da região do Alto Rio Negro e Médio Tapajós, como os tradutores Dadá Baniwa e Lucas Yard Marubo, além de três consultores ligados ao mundo jurídico e de uma equipe do Tribunal Jurídico do Amazonas que deu o apoio necessário à execução da tarefa.
Em junho de 2024, a Fundação Biblioteca Nacional realizou seu Seminário de Tradução, o segundo da série regular, com o tema “Literaturas e culturas indígenas em tradução”. Transmitido ao vivo pelo YouTube da FBN, o seminário reuniu o representante do povo Marubo do Vale do Javari, Lucas Ycard Marubo, os professores e pesquisadores Jamille Pinheiro Dias (Universidade de Londres) e José Guilherme dos Santos Fernandes (Universidade Federal do Pará), com a mediação da tradutora e pesquisadora Andréia Guerini (Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC).
Lucas Ycard Marubo localizou o Vale do Javari, na fronteira com o Peru, como o segundo maior território indígena do Brasil e falou da divulgação da literatura indígena, salientando que essa primeira tradução para o nheengatu da CF foi um marco histórico, 35 anos depois da promulgação da nossa Carta Magna. Destacou a importância da tarefa, realizada em tempo recorde (três meses), o que representa um incentivo para outras traduções. Falando dos gigantescos desafios para a tarefa, o tradutor indígena destacou as diferenças linguísticas e culturais entre os vários povos, já que, conforme o censo de 2010, existem 305 etnias e apenas 274 idiomas vivos no país.
Segundo Marubo, é a língua, com sua estrutura e fala, que perpetua e molda a identidade de um grupo, suas diferentes concepções de tempo e espaço, formas de se organizar e perceber o mundo. Exemplificou o concepção de termos como Estado, direitos individuais, propriedade privada, fronteiras, formas de casamento, punição e compensação etc., conceitos que podem ser divergentes para cada povo ou até mesmo não existir. Assim, para ele, a tradução da CF transpôs esses conceitos, com uma visão sensível das leis e trabalhando os textos para se adequarem à visão de mundo desses povos que têm identidades, concepções de mundo e sistemas jurídicos próprios. Lembrou ainda que, nos processos coloniais, sempre violentos e nocivos, a primeira atitude é extinguir a língua falada, a principal prova da existência de um povo. Também aqui, ao longo desse processo, muitas línguas foram extintas e alguns povos originários perderam sua identidade. Hoje, felizmente, há uma série de tentativas de resgate e perpetuação da identidade desses povos, como a a inestimável tradução da CF para o nheengatu.
A tradutora Jamille Pinheiro Dias, professora da Universidade de Londres, em sua trajetória como pesquisadora, reuniu etnologia aos estudos linguísticos e de tradução. Destacou os complexos desafios éticos e estéticos de cada língua, das artes verbais indígenas e como se deve trabalhar tal complexidade, descentralizando o verbal e considerando o extralinguístico (cantos, rituais, danças, narrativas cosmogônicas, grafismos, gestualidade etc.). Assim, é possível adotar-se uma abordagem multimodal e interssemiótica mais ampla para, ao menos, mitigar a mutilação de sentido dessas práticas.
Lembrou que tradução também é ativismo, que nenhuma linguagem é neutra e, logo, nenhuma tradução é politicamente neutra. É preciso partir da conscientização de que nossas escolhas, inclusive sintáticas e semânticas, são políticas e o que escolhemos traduzir e como traduzimos têm impacto na visibilidade (ou não) de determinados discursos narrativos e podem contribuir (ou não) para perpetuar ou subverter discursos autoritários, racistas, anti-indígenas etc. Um exemplo é a tradução de A vida não é útil, livro de Ailton Krenak no qual ele denuncia a campanha mentirosa que diz que o “agro é pop”, veiculada por uma grande emissora de TV.
O professor José Guilherme dos Santos Fernandes, da Universidade Federal do Pará, encerrou o evento reafirmando a magnitude da tradução da Constituição para o nheengatu e a necessidade de traduzir obras indígenas para o português e vice-versa. Encerrou sua fala, destacando o papel da linguagem na representação da identidade de um povo e a importância da tradução como ativismo.
Referências
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/07/constituicao-nheengatu-web.pdf
https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Lanc807amentoCFemNheengatuFinal.pdf
Empatia é o nome deste governo.
ResponderExcluirAysú.
Bjs ,amiga.
Obrigada, Ione. Pelo "amiga", sei que é você. Bjs
ExcluirMaravilhoso. Muito . Muito esclarecedor.
ResponderExcluir🏹
ResponderExcluirJ. Campos
ResponderExcluirHai ragione Anita ,un popolo o una etnia o una nazione si identifica con L’ origine della sua lingua ,che racchiude le sue origini e tradizioni.Un abbraccio ♥️ 👋 Tonino
ResponderExcluirGrazie, caro mio... Tanti saluti!
ExcluirMuito interessante o blog, reunindo a opinião desses especialistas todos e sobre essa iniciativa tão importante. Valeu!
ResponderExcluirMaravilhoso texto. Nunca poderia imaginar que as C.F. poderia ser traduzida dentro do próprio país.
ResponderExcluirComo sempre, impecável! Parabéns, Anita. Paz, luz e bem.
ResponderExcluirVanilda Cambuí-MG
Obrigada, Vanilda. A gente atua, há tempos, né? Abração.
ExcluirQue beleza! Alegria desta realização e de você nos compartilhar isto.Bebel
ResponderExcluir