sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Ecos Linguísticos | A riqueza das línguas

 Quem me conhece sabe que adoro línguas e, em especial, a nossa língua portuguesa por sua sonoridade, variedade e riqueza, pelos diversos registros da língua escrita e sotaques da língua falada, ou língua das ruas. Sim, porque ninguém diz atenciosamente ou perscrutar entre familiares e amigos, certo? Ou diz? Quem diz deve estar doente do pé...

Gosto também de observar as transformações das línguas, a mudança eventual dos vocábulos de moda. Desde quando eu era jovem o termo “legal” já teve inúmeros sinônimos e nem me atrevo a listá-los aqui.... Afinal, qualquer língua viva se transforma. O latim, por exemplo, transformou-se ao longo do tempo e acabou originando várias outras línguas. É impossível congelar as línguas e esperar que não mudem. Mudam, naturalmente. 

Regras também mudam, não tão rapidamente, é evidente, mas mudam. Por isso, é bom pensar bem antes de apontar o dedinho a alguém porque escreveu assim ou assado. Pode ter sido um lapso (que todos nós estamos sujeitos a cometer), pode ter sido uma distração, pode ter sido um hábito regional, pode ter sido um deslize mesmo. De qualquer forma, atire a primeira pedra quem nunca cometeu o menor lapso...

Fico, então, encantada ao pesquisar a origem, o uso, as justaposições, os neologismos, as construções derivadas. Guimarães Rosa, em especial, me induziu a essa prática, com a riqueza de sua linguagem. Antes dele, Monteiro Lobato, quando comecei a viajar pelo mundo nas páginas daqueles deliciosos livros que contam as peripécias dos personagens do sítio do Pica-Pau Amarelo. Aliás, a incorporação de novas palavras ao nosso vocabulário se faz no cotidiano, com muita leitura e aplicação prática do novo termo aprendido. Lembram-se da minha postagem na qual comparo aprendizado e vitamina C? Não? Então, leiam aqui!   
Pois bem, sempre que percebo nas minhas leituras algum termo não tão comum, mesmo sabendo seu significado, deixo a pressa de lado, vou ao dicionário e pesquiso. Outro dia me deparei com 'valhacouto'.  Você sabe o que significa, não é mesmo? Ótimo! Pelo contexto é fácil compreender o que quer dizer, mas mesmo assim, acho que vale a pena abrir um dicionário, pesquisar a origem, as diversas acepções e funções sintáticas, e praticar usando-o na formação de novas sentenças e exemplos práticos. Pronto, o 'novo' termo já foi incorporado ao seu vocabulário. No caso em questão, os dicionários Aulete, Houaiss e Aurélio confirmaram meu entendimento:
Valhacouto: (va.lha.cou.to) - sm.  
1. Refúgio, esconderijo: "...não era mais do que um sertão desconhecido, considerado como o valhacouto onde imperava o banditismo..." (Cecília Meireles, Questão de educação);
2. Amparo, proteção que se presta a outrem;
3. Fig. Disfarce, encobrimento de intenções ou defeitos. 

Ah! A propósito, a frase aparecia em um texto de análise política de autoria do jornalista Luis Nassif (ver aqui), por sinal, bastante atual: [...]“A esperança de uma social-democracia moderna tornou-se um valhacouto do que pior e mais rancoroso a política brasileira exibiu nos últimos anos. ” 
Sim, é claro, há muitos outros termos não usuais. Eu bem poderia ter buscado pengó, sápido ou descoco, encontrados em outros textos, mas vou ficar no valhacouto. Deixo os últimos para o leitor pesquisar.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Ecos Literários | Mário, Oneyda e Valquíria


Na última semana de agosto de 2018, foi realizado em Varginha o VIII Festival de Arte e Cultura do CEFET (Unidade Varginha-MG), cujo tema era Arte e Tecnologia. O evento contou com a participação da Academia Varginhense de Letras, Artes e Ciências (AVLAC) em inúmeras atividades, envolvendo alunos e a própria comunidade.
Em uma bela e profícua parceria que gerou muitas ideias, diversidade, riqueza de opiniões e propostas, o evento conseguiu fazer uma celebração da arte e da cultura na vida estudantil, como deveria ocorrer no cotidiano das escolas, em geral, porque, afinal, a vida não pode ser segmentada por assuntos estanques porque, no fundo, nada está desconectado. A formação de um estudante deve ser ampla, abrangente e inclusiva para permitir o desenvolvimento do pensamento crítico, tão em falta em nosso mundo.
A parceria da AVLAC se concretizou, por exemplo, na bela exposição de abertura, com fotos trabalhadas digitalmente, oficinas de literatura e plastimodelismo, no roteiro de monólogo de Oneyda Alvarenga, criado especialmente por um acadêmico para ser encenado por uma aluna do CEFET,  no concurso de curtas-metragens, na nova montagem da exposição sobre Oneyda Alvarenga e na participação em um sarau literário.
Nesta última atividade, coube a mim falar um pouco do último livro da pesquisadora e também acadêmica, Valquíria Maroti Carozze. O livro é Mário, o modernista a caráter, de cujo lançamento já falei mais de uma vez aqui no blog.  A seguir, um breve relato dessa fala. 

A autora:
Valquíria Maroti Carozze, escritora e pesquisadora, com formação em Biblioteconomia e Documentação (Comunicação e Artes / ECA-USP);
2012 - Mestre em Filosofia em Culturas e Identidades Brasileiras pelo IEB-USP, com a dissertação “A menina boba e a Discoteca, adaptada em livro.
2014 – Lança “Oneyda Alvarenga: da poesia ao mosaico das audições” (São Paulo: Alameda, 2014), um trabalho único, denso e de referência sobre a vida e obra de Oneyda Alvarenga, essencial para a história da cultura, da música e do folclore musical no Brasil e, também, para a história de Varginha.
2015 – Lança o mesmo livro em Varginha-MG, com a palestra “Perfis de Oneyda Alvarenga aluna de Mário de Andrade: musicóloga, diretora da Discoteca Pública Municipal de São Paulo”.
Os personagens:
• Oneyda Alvarenga, filha de Varginha, aluna discípula e colaboradora de Mário de Andrade na pesquisa e documentação da nossa tradição musical; é também tema da exposição intitulada “Oneyda Alvarenga & Eu”.
• Mário de Andrade, o grande intelectual modernista, crítico de arte e musicólogo, pioneiro na identificação, documentação e valorização de nossa cultura musical. Ao ser empossado Diretor do então Departamento de Cultura de São Paulo, logo nomeou Sérgio Milliet para a direção da Biblioteca Pública Municipal e Oneyda para Discoteca. A Discoteca, com mais de 80 anos, funciona hoje no Centro Cultural São Paulo – CCSP e leva o nome de Oneyda Alvarenga. 

 
"Mário de Andrade, o modernista a caráter”. Lisboa/São Paulo: Chiado, 2016.

 Só não admira e respeita a obra de Mário de Andrade quem ainda não a conhece.
- Valquíria Maroti Carozze

 A frase acima foi dita no lançamento do livro pela sua autora e grande conhecedora da obra do mestre modernista Mário de Andrade, Valquíria Maroti Carozze. No livro, o criador (Mário de Andrade) e sua criatura (Macunaíma) se encontram em papéis trocados: a criatura é o "autor fantasioso" do livro e resolve dar o troco, contando com suas palavras (que, na verdade, são as usadas pelo autor modernista) a biografia de seu criador, que ele chama de “pai”.
Na medida do possível, o livro aproveita a estrutura dos capítulos do livro “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, de Mário de Andrade, em 1928. A obra de Valquíria, portanto, é familiar a quem conhece e serve para quem quer relembrar ou conhecer a história de Macunaíma.
Logo, no início, em um interessante Prefácio Desinteresantíssimo, o autor-criatura (Macunaíma) justifica-se e diz, sem pejo, valer-se de trechos roubados do próprio original. Explica a língua usada na escrita do livro, ao dizer que copiou o “português-sem lei” da fala dos brasileiros.
Na verdade, o livro é um mosaico de paráfrases agradáveis, alusões claras e referências nada sutis à obra e à vida de Mário de Andrade; é recheado com muitas, muitas notas explicativas (~150) sobre os textos “macunaimicamente surrupiados dos autores originais”.
Sua leitura é divertida e interessante, mas exige atenção, para não perder as sutilezas e nem deixar passar, em uma leitura rápida, as inúmeras situações análogas vividas tanto pelo modernista quanto pela sua criatura. Ao longo de todo o livro, o autor-criatura utiliza termos mais informais e expressões que mostram as delícias e riquezas da  nossa língua portuguesa. Alguns poucos exemplos:  
- “rico e mais pobre de Jó e de marré-marré-de-si”; ao falar de Osvald de Andrade;
- desopapo e catiripapo; esbandalhação, sarapantado, tiririca e salafrice;
- piá, sapituca e deuzolivre;  
- chente e estranja;
- neologismos óbvios como raivar, caipirar, tristura;
- horror dos horrorosos horrores.   
 Para falar dos amigos de seu pai, o autor-criatura utiliza os mesmos apelidos carinhosos do autor-criador:  
- Cascudinho, referindo-se a Luiz da Câmara Cascudo
- Manu, para Manuel Bandeira
- Anitoca, queri-querida para Anita Malfatti
- A cunhã, a mocica que vinha lá do fim do mundo, das áreas do rio Verde, ao citar Oneyda Alvarenga.
Para falar de Tarsila do Amaral, pintora e amiga do modernista, a criatura compara seu famoso Abaporu (infelizmente, hoje, no acervo do Malba, Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires), à sua própria obra intitulada Abalector, quadro do autor-pintor-criatura retratando Mário de Andrade, dizendo que Abalector punha o Abaporu de Tarsila no chinelo...

Fala da Bahia e de Candomblé, do Modernismo, da brasilidade, do Zé Bentinho (referindo-se a José Bento Ferraz, ex-aluno e secretário de Mário de Andrade). Fala de Manu (Manuel Bandeira, de Paulo Duarte, de Ataulfo, da Manuela (máquina de escrever de Mário de Andrade), do piano, das cortinas, do quarto do pai-autor e de muitas outras coisas ligadas ao modernista, à Paulicéia e à casa da Rua Lopes Chaves. 
O autor-criatura narra ainda os sentimentos de seu criador, por ocasião do surgimento do Departamento de Cultura, mas também de sua agonia ao perceber que o órgão estava sendo desmantelado e de sua incredulidade, quando via que “até os estranjas nos copiavam as ideias supimpas”.

 O livro lembra ainda os esforços necessários para iniciar a missão folclórica que completa 85 anos em 2018 e sobre o pedido dos americanos para utilizar as gravações feitas durante a missão. (Bastante atual tudo isso, não é mesmo?)
 Finaliza falando da morte de Mário de Andrade. Chora por ter ficado sem pai e diz que o criador virou estrela, herói modernista “a chorar pela terra sem leitura e sem música, a espiar lá do céu quem lê nestes desertos de são Jerônimo”. Diz que não lê porque dá muito trabalho e acrescenta que teria muito mais a contar sobre o modernista, mas termina com o fatídico e conhecidíssimo... Ai, que preguiça!
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Mário de Andrade era muito grande, por isso a frase inicial de Valquíria, “Só não admira e respeita a obra de Mário de Andrade quem ainda não a conhece”. Sem dúvida, esta obra de Valquíria é um vivo apelo para conhecê-lo. Mas se o modernista foi grande, Valquíria Carozze também se fez grande ao escrever este livro, resgatando a obra e o pensamento do modernista nesta obra que demonstra um admirável, profundo e apaixonado conhecimento do universo andradiano. 
É um livro que merece ser lido com carinho e atenção; com pausas para reflexões. É um livro a ser saboreado, aos poucos, como convém a toda boa literatura.
Concluo com uma observação, talvez exagerada para alguns, mas verdadeira para mim: se Oneyda Alvarenga foi tema da dissertação de mestrado de Valquíria e gerou um livro, Mário, o modernista a caráter, bem podia ser um livro a gerar uma tese de doutorado!