terça-feira, 25 de maio de 2021

Ecos Urbanos | Jardins de Chuva

Além de um corpo técnico competente, interessado e disposto a atuar de forma eficaz para pensar e aplicar soluções para os problemas urbanos e de suas populações, já mencionei aqui a importância que curiosidade e discernimento têm para os gestores públicos. Afinal, como hoje mais de 80% da população brasileira vivem em cidades, é fundamental criar ambientes agradáveis para todos, o que inclui não só construir novas unidades habitacionais (sempre em déficit), mas também melhorar as já existentes, urbanizar locais mal estruturados, prestar assistência técnica à autoconstrução, providenciar mais e melhores serviços de saúde e educação, espaços públicos, segurança etc. Ou seja, nada além do que se espera de bons gestores públicos e bons profissionais. Bons no sentido mais amplo do termo.  


Mas hoje vou falar de uma prática de desenho  urbano e permacultura, algo bastante simples que pode solucionar vários problemas ao mesmo tempo. São os chamados jardins de chuva, adotados em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Nova York, Sidney entre outras. Fáceis de fazer, são práticas que melhoram o desenho, o aspecto e a saúde das cidades. São canteiros um pouco abaixo do nível da calçada, irrigados com água de chuva e, portanto, economizam água, pois dispensam as regas. Através de aberturas no meio fio, captam a água de chuva, diminuem a enxurrada na região, deixam o solo urbano  mais permeável, alimentam o lençol freático, aumentam a umidade do ar pela transpiração das plantas e melhoram o microclima: em regiões secas, ajudam a trazer o verde e a umidade de volta e, em locais úmidos, a reduzir enchentes. A paisagem urbana fica mais agradável, mais leve, mais verde e com mais pássaros.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Com muitos exemplos, a ideia pode ser adotada por qualquer prefeitura em rotatórias, calçadas, esquinas, canteiros centrais, parques, estacionamentos etc. Basta observar o caminho das águas da chuva e criar jardins em seu percurso ou direcioná-las para encher poços no chão.

 

Eu gostaria de pedir que todo novo fazendeiro comece desta forma. Tome conta do solo e da água e, por favor, parem de cortar árvores! Plante quantas árvores conseguir, para que seu solo sobreviva.”   Zephaniah Phiri Masek

 

A origem dos jardins de chuva remonta ao africano Zephaniah Phiri Maseko (1927-2015), “o homem que plantava chuva”. Sua técnica bem-sucedida foi aprimorada e aplicada em vários lugares. Abaixo, o vídeo 1 (16 min.), The Rainwater Harvester, publicado em julho de 2013, está em inglês sem legenda, mas é de fácil entendimento. Mostra a experiência de Phiri Maseko ao lidar com o solo semiárido do Zimbábue e sua descoberta de como “plantar chuva” (rainwater harvesting - RWH), fazendo com que a água se fixasse no solo através de mudanças de inclinação no terreno, construção de fossos, poços, caminhos e plantio de várias espécies de plantas que absorvem a água (uma técnica chamada esponja viva). Maseko direcionava a água só com a ação da gravidade. Assim, ele recuperou o verde em sua área, ajudou os vizinhos a fazerem o mesmo, divulgou sua técnica para o mundo através da ONG Zvishavane Water Project e recebeu homenagem especial da National Geographic pelo seu trabalho criativo de ação local proteção ao meio ambiente. 

 

O vídeo 2 (17 min.), Plantando a chuva para obter abundância, publicado em 06 março de 2017 pela TED Talks, mostra o permacultor Brad Lancaster contando como conheceu o trabalho de Maseko. Através dessa técnica, transformou completamente um bairro em Tucson, região semiárida do Arizona, nos Estados Unidos. A prática modificou não só a paisagem, mas o uso da rua e a convivência entre os moradores, diminuindo os índices locais de violência. Hoje a criação de jardins de chuva na abertura de vias é lei em Tucson. 


 

Leaves are called leaves because we are supposed to leave them! - Brad Lancaster

 

Uma frase bem criativa em inglês, mas sem essa graça quando traduzida. No contexto, poderia ser entendida assim: Deixe as folhas serem folhas, elas viram adubo!  

Referências:

SP: https://ciclovivo.com.br/mao-na-massa/permacultura/jardins-de-chuva-estao-surgindo-pela-cidade-de-sao-paulo/

Tucson: https://ciclovivo.com.br/arq-urb/urbanismo/como-os-jardins-de-chuva-transformaram-um-bairro-no-deserto-do-arizona/

Zimbabue: https://ciclovivo.com.br/mao-na-massa/permacultura/o-homem-que-aprendeu-a-plantar-chuva-e-quis-ensinar-para-o-mundo/

Imagens do livro: Rainwater Harvesting for Drylands and Beyond | https://www.harvestingrainwater.com/ 

terça-feira, 18 de maio de 2021

Ecos Humanos | Bordando a Teia da Vida

Nunca tive muito jeito para trabalhos manuais. Já tentei de tudo - aquarela, crochê, macramê, tricô e até costura. Quando conseguia, fazia tudo em dobro – uma peça para mim, outra para minha irmã: dois vestidos (costura), 2 bolsas (macramê), dois cachecóis (tricô) e dois tapetinhos (crochê). Ah, gostei de fazer fotografias (na época dos laboratórios e das viragens) e gostei de trabalhar com mosaico (olhem a herança italiana falando): bandejas  caixinhas, mas nunca passei disso. Desisti. Minhas mãos não foram feitas para isso. Ah, sim, também bordei um pouco, mas só ponto-cruz, nada muito avançado. Até criança faz isso, não é? Era o que eu pensava até descobrir grupos de bordadeiras pelo mundo afora. Mas, com o tempo, descobri que gosto mesmo é de escrever. Sou da arte, sim, das fotos, da cultura, da história, mas sobretudo da pena, do teclado, da letra. Por isso vou lhes contar uma linda história, uma história que tem a ver com bordados.

Descobri um grupo de bordadeiras por meio da arquiteta Maria Alice Rosmaninho, querida amiga da época da FAU-USP e mãe do Luba, motivo principal de sua entrada no grupo. Em 2001, Maria Alice chorava (chorei com ela) a perda do então filho único, quando Ronan, amigo de Luba, pediu à sua mãe Rioko, bordadeira, que a convidasse para o grupo de bordados. Começava ali uma cena que se repete há 20 anos: reuniões semanais para ler, ouvir, tecer e contar histórias, através de bordados. Teia de Aranha é o nome do grupo e não por acaso: junta o sentido de trabalho manual da aranha e arte da sustentação.

 

Eu olho para trás e vejo muito mais que 20 anos, me vejo sentada em volta de uma fogueira, ouvindo alguém contar, contar histórias das mais variadas.” – Maria Alice

O bordado foi a fagulha para a criação de uma bela teia e uma sólida amizade. Rioko convidou algumas mulheres para bordar um painel que serviria de cenário para um evento cultural em Lisboa – Elisa Almeida e Dora Guimarães iriam narrar trechos de Grande Sertão: Veredas. As mulheres toparam e nunca mais pararam. Juntaram-se (juntam-se) e inspiravam-se (inspiram-se) na literatura de grandes nomes como Guimarães Rosa, Mia Couto e Euclides da Cunha, no contar histórias; criavam (criam) e bordavam (bordam) bandeiras, painéis, bordados afetivos, cenários para eventos culturais em vários lugares, como em Cordisburgo no sertão de Minas, em outros sertões e cidades do país, além de oferecer oficinas e estimular a formação de outros grupos de bordadeiras. Afinal, a roda, a conversa, a troca entre mulheres é ancestral e um poderoso símbolo arquetípico. Aqui, fica registrada a memória dessas bordadeiras. 

Em 2021, o Teia de Aranha comemora 20 anos de existência. Durante todo o ano serão feitas algumas transmissões ao vivo, pelo youTube, com temas específicos, sempre ligados aos bordados e à literatura. A primeira aconteceu em abril, com o depoimento das nove integrantes: Rioco Kayano, Maria Cristina Ferreira, Érika D'Almeida, Edmara Rodrigues, Maria Alice Rosmaninho, Nívea Scarpinella, Tia Anna da Silva, Elizabeth Ziani e Cláudia Soares. Os depoimentos são tocantes e me fizeram chorar em vários momentos, o que – convenhamos – não é muito difícil. Todas falam de como a trama da vida foi reunindo e fortalecendo o grupo, a partir desses encontros semanais de convivência, aprendizado e resistência. Na prática, elas leem, discutem e decidem o que bordar, a cor, o ponto, mas acima de tudo, praticam e aperfeiçoam a arte da troca, da escuta, unindo o pensar, o fazer, o sentir, o respeitar o tempo e o jeito do outro. Criaram uma imensa teia de fios, laços, afetos e convivência; um grupo coeso de apoio, cumplicidade, confiança, amorosidade e alegria.

Juntas, ao longo de duas décadas, essas aranhas choraram e riram, se descobriram, se reconheceram, se solidarizaram, buscando soluções coletivas. Elas construíam e se desconstruíam, bordavam e remendavam seus corações, machucados por dores e tropeços da vida. Através desses encontros, a arte manual do bordado, tão antiga e presente na vida de nossas avós e ancestrais, era resgatada e se transformava, naquela roda, em ponto de apoio real para o encontro e a troca.   

 
A partir da transmissão do Grupo Teia de Aranha: da prosa ao bordado, reuni algumas falas do depoimento dessas mulheres admiráveis e fortes:

No princípio era a ideia e a ideia se fez ação – a ideia era fazer um encontro, um vínculo de afeto entre as pessoas.... Peguei carona com um mensageiro numa cauda de cometa para ver uma estrada bem bonita. O mensageiro se chama Ronan e esse cometa se chama Rioko”. – Maria Cristina

... “Se fosse possível sair fora do corpo e observar aquelas mulheres ali na casa da Maria Alice, que semanalmente, nesses quase 20 anos, nos recebe (e onde a gente se sente indescritivelmente abraçada), [veríamos que], na verdade, essas mulheres estão falando de si, acolhendo umas às outras e se expondo...numa interação fundamental; é aí que elas se alimentam”. – Érika

A vida não é um novelo, é um emaranhado de fios, de coisas complicadas, vínculos interrompidos, abolidos, transformados, memórias e esse esteio - que é o grupo - nos fortalece em todos os momentos”.     Edmara

 “Comemorar é lembrar junto, parar, olhar para trás e ver o que foi vivido conjuntamente, com coragem e delicadeza [...] Ouve-se alguém chorando, forte, forte, como não havia chorado ainda e choraria por 20 anos seguidos. Era eu.  É o que vejo, quando olho para trás. Depois disso, vejo a construção da teia, do grupo, do apoio...[...] As dores são minhas, mas enfrentadas por todos os membros do grupo. Vejo a solidariedade” [...].” – Maria Alice

“Bordar é como uma meditação em movimento, que me sustentou em vários períodos, porque foi compartilhado por outras. [...] A vida é um emaranhado de fios e bordando, vamos tecendo os fios infindáveis dessa grande mandala que é a própria vida.” – Rioko

“Quando falei que não sabia bordar, Rioko me disse – 'Bordar não é saber fazer os pontos, é colocar a linha na agulha, a agulha no pano e, então, você vai soltando, deixando fluir o que sente'... Comecei e não parei mais. Nessa teia estão todas as nossas alegrias e todas as nossas tristezas... Essa teia se sustenta e nos sustenta”. – Nívea

“Sempre fui alegre, mas quando encontrei esse grupo, encontrei ainda mais alegria para viver[...] Bordar é a coisa mais importante para mim, principalmente quando estamos todas juntas”.   – Tia Anna (89 anos)  

“No início, fui convocada a bordar a canoa de Riobaldo e Diadorim... entrei nessa canoa e aqui estou. O que aprendi em especial, nesses 20 anos, é a respeitar o tempo do outro, a escuta, a fala, o como falar...Levo isso comigo na vida, na profissão e minha vivência é sempre estruturada na Literatura, no bordado e na memória. [...] Bordar é compartilhar silêncios; é resistir.” – Beth Ziani

“Elas me ensinaram que a vida dói sim, dói muito, mas nesses momentos de dor, devemos fazer como as aranhas - tecer suas teias, ter coragem de ser radicalmente vivas... e isso a gente consegue através do encontro.” – Cláudia Soares

Para encerrar, Tia Anna, a mais velha do grupo, cantou lindamente a alegre vinheta do Teia de Aranha:  Uma andorinha só não faz verão... Verão que uma andorinha SÓ não faz verão...  A música foi composta por Tia Dita (já falecida), irmã de tia Anna.

 
Vinheta: Andorinha, no CD: No Raias da Aurora

Em tempos de individualismo, de materialismo e consumismo exacerbado  esse grupo emociona e inspira, mergulha no território do sentir e do acolher. Mulheres admiráveis, que resistem, dão e recebem afeto e amor em torno da arte do bordado. Talvez, nesse mundo tão louco, tão fútil e globalizado, algumas dessas antigas tradições, como o bordado, ainda possam ser repensadas e recuperadas.  Parabéns e vida longa ao grupo Teia de Aranha!

 Referências

http://grupoteiadearanha.blogspot.com/  

https://www.youtube.com/channel/UCnMRPfQuxy_hqoWwy2FH6bw 

https://www.youtube.com/watch?v=UrPfOsxxdgA