Na última
semana de agosto de 2018, foi realizado em Varginha o VIII Festival de Arte e Cultura do CEFET (Unidade Varginha-MG), cujo tema
era Arte e Tecnologia. O evento contou com a participação da Academia
Varginhense de Letras, Artes e Ciências (AVLAC) em inúmeras atividades, envolvendo alunos e a própria comunidade.
Em uma bela e
profícua parceria que gerou muitas ideias, diversidade, riqueza de opiniões e
propostas, o evento conseguiu fazer uma celebração da arte e da
cultura na vida estudantil, como deveria ocorrer no cotidiano das escolas, em
geral, porque, afinal, a vida não pode ser segmentada por assuntos
estanques porque, no fundo, nada está desconectado. A formação de um estudante
deve ser ampla, abrangente e inclusiva para permitir o desenvolvimento do pensamento crítico, tão em falta em nosso mundo.
A parceria da
AVLAC se concretizou, por exemplo, na bela exposição de abertura, com fotos
trabalhadas digitalmente, oficinas de literatura e plastimodelismo, no roteiro
de monólogo de
Oneyda Alvarenga, criado especialmente por um acadêmico para ser encenado por uma aluna do CEFET, no concurso de curtas-metragens, na nova montagem da
exposição sobre Oneyda Alvarenga e na participação em um sarau literário.
Nesta última
atividade, coube a mim falar um pouco do último livro da pesquisadora e também
acadêmica, Valquíria Maroti Carozze. O livro é Mário, o modernista a caráter,
de cujo lançamento já falei mais de uma vez aqui no blog. A seguir, um
breve relato dessa fala.
A autora:
Valquíria
Maroti Carozze, escritora e
pesquisadora, com formação em Biblioteconomia e Documentação (Comunicação e
Artes / ECA-USP);
2012 - Mestre em
Filosofia em Culturas e Identidades Brasileiras pelo IEB-USP, com a dissertação
“A menina boba e a Discoteca”, adaptada em livro.
2014 – Lança “Oneyda
Alvarenga: da poesia ao mosaico das audições” (São Paulo: Alameda, 2014), um
trabalho único, denso e de referência sobre a vida e obra de Oneyda Alvarenga, essencial
para a história da cultura, da música e do folclore musical no Brasil e,
também, para a história de Varginha.
2015 – Lança o
mesmo livro em Varginha-MG, com a palestra “Perfis de Oneyda Alvarenga aluna de
Mário de Andrade: musicóloga, diretora da Discoteca Pública Municipal de São
Paulo”.
Os personagens:
• Oneyda
Alvarenga, filha de Varginha, aluna discípula e colaboradora de Mário de Andrade na pesquisa e documentação da nossa tradição musical; é
também tema da exposição intitulada “Oneyda Alvarenga & Eu”.
• Mário de
Andrade, o grande intelectual modernista, crítico de arte e musicólogo, pioneiro
na identificação, documentação e valorização de nossa cultura musical. Ao ser empossado
Diretor do então Departamento de Cultura de São Paulo, logo nomeou Sérgio
Milliet para a direção da Biblioteca Pública Municipal e Oneyda para Discoteca.
A Discoteca, com mais de 80 anos, funciona hoje no Centro Cultural São Paulo –
CCSP e leva o nome de Oneyda Alvarenga.
"Mário de Andrade,
o modernista a caráter”. Lisboa/São Paulo: Chiado, 2016.
Só não admira e respeita a obra de Mário de Andrade quem ainda não a
conhece.
- Valquíria
Maroti Carozze
A frase acima
foi dita no lançamento do livro pela sua autora e grande conhecedora da obra do mestre modernista
Mário de Andrade, Valquíria Maroti
Carozze. No livro, o criador (Mário de Andrade) e sua criatura
(Macunaíma) se encontram em papéis trocados: a criatura é o "autor
fantasioso" do livro e resolve dar o troco, contando com suas palavras
(que, na verdade, são as usadas pelo autor modernista) a biografia de seu
criador, que ele chama de “pai”.
Na medida do
possível, o livro aproveita a estrutura dos capítulos do livro “Macunaíma, o
herói sem nenhum caráter”, de Mário de Andrade, em 1928. A obra de Valquíria,
portanto, é familiar a quem conhece e serve para quem quer relembrar ou
conhecer a história de Macunaíma.
Logo, no
início, em um interessante Prefácio Desinteresantíssimo, o
autor-criatura (Macunaíma) justifica-se e diz, sem pejo, valer-se de trechos
roubados do próprio original. Explica a língua usada na escrita do livro, ao
dizer que copiou o “português-sem lei” da fala dos brasileiros.
Na verdade, o
livro é um mosaico de paráfrases agradáveis, alusões claras e referências nada
sutis à obra e à vida de Mário de Andrade; é recheado com muitas, muitas notas
explicativas (~150) sobre os textos “macunaimicamente surrupiados dos autores
originais”.
Sua leitura é
divertida e interessante, mas exige atenção, para não perder as sutilezas e nem
deixar passar, em uma leitura rápida, as inúmeras situações análogas vividas
tanto pelo modernista quanto pela sua criatura. Ao longo de
todo o livro, o autor-criatura utiliza termos mais informais e expressões que mostram
as delícias e riquezas da nossa língua
portuguesa. Alguns poucos exemplos:
- “rico e
mais pobre de Jó e de marré-marré-de-si”; ao falar de Osvald de Andrade;
- desopapo e
catiripapo; esbandalhação, sarapantado, tiririca e salafrice;
- piá,
sapituca e deuzolivre;
- chente e
estranja;
- neologismos
óbvios como raivar, caipirar, tristura;
- horror dos
horrorosos horrores.
Para falar
dos amigos de seu pai, o autor-criatura utiliza os mesmos apelidos carinhosos
do autor-criador:
- Cascudinho,
referindo-se a Luiz da Câmara Cascudo
- Manu, para
Manuel Bandeira
- Anitoca,
queri-querida para Anita Malfatti
- A cunhã, a
mocica que vinha lá do fim do mundo, das áreas do rio Verde, ao citar Oneyda
Alvarenga.
Para falar de Tarsila do Amaral, pintora e amiga do modernista, a criatura compara seu famoso Abaporu (infelizmente, hoje, no acervo do Malba, Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires), à sua própria obra intitulada Abalector, quadro do autor-pintor-criatura retratando Mário de Andrade, dizendo que Abalector punha o Abaporu de Tarsila no chinelo...
Fala da Bahia
e de Candomblé, do Modernismo, da brasilidade, do Zé Bentinho (referindo-se a
José Bento Ferraz, ex-aluno e secretário de Mário de Andrade). Fala de Manu
(Manuel Bandeira, de Paulo Duarte, de Ataulfo, da Manuela (máquina de escrever
de Mário de Andrade), do piano, das cortinas, do quarto do pai-autor e de
muitas outras coisas ligadas ao modernista, à Paulicéia e à casa da Rua Lopes
Chaves.
O
autor-criatura narra ainda os sentimentos de seu criador, por ocasião do
surgimento do Departamento de Cultura, mas também de sua agonia ao perceber que
o órgão estava sendo desmantelado e de sua incredulidade, quando via que “até
os estranjas nos copiavam as ideias supimpas”.
O livro
lembra ainda os esforços necessários para iniciar a missão folclórica que
completa 85 anos em 2018 e sobre o pedido dos americanos para utilizar as
gravações feitas durante a missão. (Bastante
atual tudo isso, não é mesmo?)
Finaliza
falando da morte de Mário de Andrade. Chora por ter ficado sem pai e diz que o
criador virou estrela, herói modernista “a chorar pela terra sem leitura e sem
música, a espiar lá do céu quem lê nestes desertos de são Jerônimo”. Diz que
não lê porque dá muito trabalho e acrescenta que teria muito mais a contar
sobre o modernista, mas termina com o fatídico e conhecidíssimo... Ai, que
preguiça!
- - -
Mário de
Andrade era muito grande, por isso a frase inicial de Valquíria, “Só não admira
e respeita a obra de Mário de Andrade quem ainda não a conhece”. Sem
dúvida, esta obra de Valquíria é um vivo apelo para conhecê-lo. Mas se o
modernista foi grande, Valquíria Carozze também se fez grande ao escrever este
livro, resgatando a obra e o pensamento do modernista nesta obra que demonstra
um admirável, profundo e apaixonado conhecimento do universo andradiano.
É um
livro que merece ser lido com carinho e atenção; com pausas para reflexões. É um
livro a ser saboreado, aos poucos, como convém a toda boa literatura.
Concluo com
uma observação, talvez exagerada para alguns, mas verdadeira para mim: se
Oneyda Alvarenga foi tema da dissertação de mestrado de Valquíria e gerou um
livro, Mário, o modernista a caráter, bem podia ser um livro a gerar uma tese
de doutorado!