quinta-feira, 2 de abril de 2020

Ecos Literários | Quarentena


Em tempos desafiadores, não nos cabe tentar adivinhar, prever ou antecipar o futuro; tampouco nos cabe lamentar o passado...devemos, sim, aprender com ele. Em tempos desafiadores só nos cabe (como sempre) fazer o nosso  melhor, em todas as situações, por nós e pelo outro, pelos tantos outros, sinônimos de coletivo. 
Em tempos desafiadores, segue um poema sentido e verdadeiro, de  Telma Borges, professora da UFMG. Conheci Telma, em Belo Horizonte, no final de 2019, quando participávamos da Oficina de Tradução sobre Grande Sertão: Veredas, obra-prima de Guimarães Rosa. Promovida pelo Itaú Cultural, a oficina foi conduzida por outra querida, a tradutora Alison Entrekin. O grupo era forte e, embora nosso contato tenha sido muito reduzido, os escritos e a postura de Telma mostram quem ela é e o que defende. O poema foi publicado em seu FB, em 21 de março de 2020 e, por mim, bem poderia ser denominado Anônimos, como ilustra o quadro Operários (1933), de Tarsila do Amaral, retratando os primórdios da industrialização de São Paulo.    

Operários. Tarsila do Amaral. https://www.culturagenial.com/quadro-operarios-de-tarsila-do-amaral/
 Quarentena

Nestes dias em que posso me proteger
Entre livros, músicas e filmes
Entre álcoois, máscaras, chás e afeto,

O gari cuida de mim
O motoboy cuida de mim
A enfermeira cuida de mim
O doutor cuida de mim
A caixa de supermercado cuida de mim
O atendente da farmácia cuida de mim
Os agentes de telecomunicação cuidam de mim
Os vigilantes cuidam de mim
Os vizinhos cuidam de mim
Até a polícia cuida de mim

Mas...
Quem cuida dessa gente anônima
Que me permite ler Drummond, assistir Almodóvar, ouvir Chico
Ler Conceição, Hatoum e Gersão?

Essa gente que me protege está lá fora
Ele também
E eu, que ouço o canto de uma revoada de pássaros,
Zumbido de carros,
Ladrar de cães
E a gargalhada de uma criança que ecoa pela torre,
Silenciosa,
O que posso fazer pra que essa gente que cuida de mim
Receba minha prece agradecida
pela vida que se prolonga no recolhimento do meu segundo andar?

Telma Borges

Referências e imagem:
https://www.culturagenial.com/quadro-operarios-de-tarsila-do-amaral/

9 comentários:

  1. Adorei o poema!!!
    Eu sempre penso isso;
    Quem cuida dessas pessoas????

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    1. Pois é, Neusinha! Quem cuida dela? O poema diz tudo, é? Que o mundo saia dessa muito melhor, mais solidário, menos individualista, mais amoroso. Beijos

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  2. Excelentes seu texto e o poema da Telma Borges.

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  3. Gratidão eterna a essas pessoas e que, abençoadas sejam.

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    1. Não é, Sueli? Os que podem ficar em casa são privilegiados. Que a gente tenha consciência disso e faça a nossa parte, cada vez mais e melhor. Um beijo e obrigada por participar...

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  4. Maravilhoso Anita seu texto e o poema tão apropriado ao momento.a pintura emoldura tudo e da um sentido de completude e sentido. ♥️♥️♥️

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    1. Obrigada, meu bem. O poema realmente é lindo demais, profundo e verdadeiro. Mas você não deixou seu nome. Assim, não posso agradecer sabendo quem é. De qualquer forma, brigada por estar aqui. Abraços

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