segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Ecos Literários | Ouvir e escutar


Na tradição ocidental, falar é bastante estimulado, inclusive com uma série de cursos que preparam o indivíduo para se expressar melhor. No entanto, escutar é bem menos estimulado. Manter o silêncio, então, nem se fala. Por outro lado, a tradição oriental busca, desde cedo, cultivar o silêncio e o escutar, que é diferente de ouvir. Escutar pressupõe bem mais que perceber sons pelo sentido da audição. Significa estar atento ao que se ouve e acolher o que o outro lhe diz. É interromper qualquer atividade - o celular, a leitura, a televisão - e olhar nos olhos do outro para escutá-lo por inteiro. É abrir-se para o que o outro tem a dizer, fale ele com os lábios, as mãos ou o olhar. Escutar/ser escutado é algo tão importante na vida que eu me abstenho de falar sobre o tema. Trago aqui um texto ímpar, profundo, que nos fala à alma e nos leva a refletir sobre como ouvimos e escutamos, de fato. O texto é de um autor querido que me acompanha há anos e cujos livros, a exemplo da xícara de Drummond, me olham lá da estante, ao lado de outros tantos autores que também sabiam escutar, que me ensinam e me acompanham desde que os conheci. O autor do texto abaixo é o mineiro Rubem Alves (Boa Esperança,1933—Campinas-SP, 2014).  
 ...
Escutatória 
Sempre vejo anunciados cursos de oratória.  Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar... Ninguém quer aprender a ouvir.
Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. 
Diz Alberto Caeiro que... Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma. Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.
Parafraseio o Alberto Caeiro: não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito.  
É preciso também que haja silêncio dentro da alma.
Daí a dificuldade:   A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor...  Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração... E precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade. No fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios: Reunidos os participantes, ninguém fala.   Há um longo, longo silêncio.
Vejam a semelhança...  Os pianistas, por exemplo, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio...
Abrindo vazios de silêncio... expulsando todas as ideias estranhas. Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala.
Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio.
Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos.  Pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos.  
 É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir... São duas as possibilidades:
- Primeira: Fiquei em silêncio só por delicadeza.  Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.
- Segunda: Ouvi o que você falou. Mas, isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.
Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.
 O longo silêncio quer dizer: Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.  E, assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos.
E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.
Eu comecei a ouvir.
Fernando Pessoa conhecia a experiência...
E, se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras... No lugar onde não há palavras.
A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa.
No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos.
Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia...
Que de tão linda nos faz chorar.
Para mim, Deus é isto: A beleza que se ouve no silêncio.
Daí a importância de saber ouvir os outros: A beleza mora lá também.
Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.

Referência:

9 comentários:

  1. Que beleza! Saber ouvir o outro é escuta lo com a alma.No silêncio se escuta o que há de mais puro.Parabéns Anitinha!!

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    1. Querida Bebel, descobri que era você pelo "Anitinha"! Um beijo, querida, saudades

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  2. Reflexão profunda e necessária. Ótimos textos!

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  3. Incrível sabedoria. Muito útil para os dias de hoje...

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    1. Olá, José Mário, sempre foi e sempre será, né? abraços

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  4. Grande Rubem Alves! Esse senhor é, sem sombra de dúvidas, uma das minhas maiores fontes de inspiração pra escrever. Eu o amo profundamente!

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    1. Não é? Ele é maravilhoso! Obrigada, Isaías, pela presença. Grande abraço

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  5. Anita, sábias palavras. Agradeço à você por mais um texto que, na verdade, é um presente.

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    1. Oi, Silvia, eu é que agradeço por você estar sempre presente, beijo grande

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