Retomamos aqui o post anterior
(aqui) a respeito de atividades que valorizam e divulgam a literatura indígena.
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Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF |
Um fato inédito, mas não divulgado com o devido destaque pela grande mídia, foi
a tradução feita em 2023 da Constituição Federal de 1988 para o nheengatu. A iniciativa foi do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) junto com o Supremo Tribunal Federal (STF), em particular da
ministra Rosa Weber. O lançamento do livro foi em São Gabriel
da Cachoeira (AM), na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). Merece destaque uma das falas da ministra Rosa Weber, na ocasião:
— “Levamos 523 anos para chegar a este
momento, que considero histórico; a tradução é um gesto de valorização e
respeito à cultura e à língua indígenas, ajudando a construir juntos um Brasil verdadeiramente inclusivo,
onde todas as vozes e línguas sejam ouvidas, onde todas as culturas sejam
valorizadas e respeitadas, onde todos reconheçam o indispensável papel dos
povos indígenas para a preservação do equilíbrio ambiental do planeta e, assim,
da vida e do futuro de todos nós, pois somos todos Brasil”.
A
tradução foi feita por doze lideranças indígenas bilíngues,
todos professores e falantes nativos da região do Alto Rio Negro e Médio Tapajós,
como os tradutores Dadá Baniwa e Lucas Yard Marubo, além de três consultores
ligados ao mundo jurídico e de uma equipe do Tribunal Jurídico do Amazonas que
deu o apoio necessário à execução da tarefa.
Em
junho de 2024, a Fundação Biblioteca Nacional
realizou seu
Seminário de Tradução, o segundo da série regular, com o tema “Literaturas e culturas indígenas em tradução”. Transmitido ao vivo pelo
YouTube da FBN, o seminário
reuniu o representante do
povo Marubo do Vale do Javari, Lucas Ycard Marubo, os professores e
pesquisadores Jamille Pinheiro Dias (Universidade de Londres) e José Guilherme
dos Santos Fernandes (Universidade Federal do Pará), com a mediação da
tradutora e pesquisadora Andréia Guerini (Universidade Federal de Santa
Catarina-UFSC).
Lucas Ycard
Marubo localizou o Vale do Javari, na
fronteira com o Peru, como o segundo maior território indígena do Brasil e
falou da divulgação da literatura indígena, salientando que essa
primeira tradução para o nheengatu da CF foi um marco histórico, 35 anos depois
da promulgação da nossa Carta Magna. Destacou a importância da tarefa,
realizada em tempo recorde (três meses), o que representa um incentivo para
outras traduções. Falando dos
gigantescos desafios para a tarefa, o tradutor indígena destacou as diferenças
linguísticas e culturais entre os vários povos, já que, conforme o censo de
2010, existem 305 etnias e apenas 274 idiomas vivos no país.
Segundo Marubo, é
a língua, com sua estrutura e fala, que perpetua e molda a identidade de um
grupo, suas diferentes concepções de tempo e
espaço, formas de se organizar e perceber o mundo. Exemplificou o concepção de
termos como Estado, direitos individuais, propriedade privada, fronteiras, formas de casamento, punição e compensação
etc., conceitos que podem ser divergentes para cada povo ou até mesmo não
existir. Assim, para ele, a tradução da CF transpôs esses conceitos, com
uma visão sensível das leis e trabalhando os textos para se adequarem à visão
de mundo desses povos que têm identidades, concepções de mundo e sistemas
jurídicos próprios. Lembrou ainda que, nos processos coloniais, sempre
violentos e nocivos, a primeira atitude é extinguir a língua falada, a
principal prova da existência de um povo. Também aqui, ao longo desse processo,
muitas línguas foram extintas e alguns povos originários perderam sua
identidade. Hoje, felizmente, há uma série de tentativas de resgate e perpetuação da
identidade desses povos, como a a inestimável tradução da CF para o nheengatu.
A tradutora Jamille Pinheiro Dias, professora da Universidade de Londres, em sua trajetória como pesquisadora, reuniu etnologia aos
estudos linguísticos e de tradução. Destacou os complexos desafios éticos e
estéticos de cada língua, das artes verbais indígenas e como se deve trabalhar
tal complexidade, descentralizando o verbal e considerando o extralinguístico
(cantos, rituais, danças, narrativas cosmogônicas, grafismos, gestualidade etc.).
Assim, é possível adotar-se uma abordagem multimodal e interssemiótica mais
ampla para, ao menos, mitigar a mutilação de sentido dessas práticas.
Lembrou que
tradução também é ativismo, que nenhuma linguagem é neutra e, logo, nenhuma tradução é politicamente neutra. É preciso partir da
conscientização de que nossas escolhas, inclusive sintáticas e semânticas,
são políticas e o que escolhemos traduzir e como traduzimos
têm impacto na visibilidade (ou não) de determinados discursos narrativos e
podem contribuir (ou não) para perpetuar ou subverter discursos autoritários, racistas,
anti-indígenas etc. Um exemplo é a tradução de A vida não é útil, livro de Ailton
Krenak no qual ele denuncia a campanha mentirosa que diz que o “agro é pop”, veiculada por uma grande
emissora de TV.
O professor José Guilherme dos Santos Fernandes, da
Universidade Federal do Pará, encerrou o evento reafirmando a magnitude da
tradução da Constituição para o nheengatu e a necessidade de traduzir obras indígenas para o português e vice-versa. Encerrou sua fala, destacando o papel da linguagem na representação da identidade de um povo e a importância da tradução como ativismo.
Referências
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/07/constituicao-nheengatu-web.pdf
https://www.cnj.jus.br/ao-lancar-primeira-constituicao-em-lingua-indigena-presidente-do-stf-e-do-cnj-destaca-momento-historico-para-o-brasil/
https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Lanc807amentoCFemNheengatuFinal.pdf
https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-07/constituicao-brasileira-e-traduzida-pela-1a-vez-para-lingua-indigena
https://www.youtube.com/watch?v=aVhfb4exDJA
https://revistainfoco.com.br/2024/06/21/biblioteca-nacional-realiza-2o-seminario-de-traducao-nesta-terca-feira-25/