quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Ecos Culturais | Manias & idiossincrasias

Idiossincrasia: forma extravagante ou  incomum, excêntrica, esquisita de um indivíduo se portar na sociedade; modo de agir fora dos padrões normais e esperados, ou seja, conduta comportamental atípica.

Bom, é de conhecimento público que, em geral, milionários, excêntricos e artistas – das artes plásticas (pintura e escultura), do ramo musical (músicos, compositores e intérpretes) ou das artes cênicas (teatro, cinema ou TV) – podem ser temperamentais, estranhos, esnobes e manter ativas suas muitas idiossincrasias. Nós, meros mortais, até podemos ter algumas manias, é claro, mas quase sempre bem menos estranhas. Enfim...


Divulgação
Durante um dos muitos workshops de tradução, conduzidos pela tradutora literária Alison Entrekin, estávamos trabalhando em um poema da premiada australiana Sarah Holland-Batt e nos deparamos com o termo em inglês vantablack. Alguns de nós já tinham lido algo a respeito, mas a maioria desconhecia o termo. Bem, vantablack é um tipo de tinta, ou melhor, um revestimento inicialmente (agora também em spray), muito, muito preto, feito de nanotubos de carbono. 
 
Inventado em 2014 por pesquisadores britânicos e produzido pela empresa inglesa Surrey NanoSystems, o produto foi considerado como o preto mais preto já produzido em laboratório, capaz de absorver 99,96% da luz visível ao olho humano. Ou seja, é considerado o material mais escuro do mundo. Seria como se você olhasse para um buraco sem fundo, completamente escuro. Provavelmente, você já deve ter visto imagens retratando algo que parece uma sombra ou um buraco no chão ou na parede... 
 
Pelo seu alto custo, a princípio, o produto deveria ser usado apenas para pesquisas acadêmicas, mas bem que poderia ser usado por artistas, escultores, performers, arquitetos, não? Poderia, mas não foi bem isso que ocorreu. Um desses seres que colecionam idiossincrasias, o milionário indo-britânico Anish Kapoor (1954), resolveu comprar os direitos de uso da substância em 2016. Ou seja, se alguém quisesse usar aquele revestimento teria que pagar, e muito, ao detentor desses direitos.
 
Cloud Gate (Shutterstock)
Kapoor é um artista que tem obras pelo mundo todo, como a Cloud Gate, em Chicago, feita em 2004, escultura inoxidável de aço de 110 toneladas, e a Torre ArcelorMittal Orbit, feita em Londres, por ocasião dos jogos olímpicos de 2012 (foto à direita). Definitivamente, quando visitei a cidade, não foi a minha obra de arte favorita, embora não passasse despercebida no lado leste de Londres, com seus 115m de altura de metal vermelho.  

Ocorre que a compra dos direitos de uso do vantablack incomodou a comunidade artística, em especial, o também britânico Stuart Semple (1980). Ele começou a pesquisar e criar o rosa mais rosa possível, o azul mais azul e assim por diante, vendendo essas paletas de cores a preços módicos a quem quer que seja, exceto Anish Kapoor. Semple criou ainda um preto bem preto, aprimorando sua fórmula várias vezes, até deixá-lo bem perto do vantablack existente.    

 

Mas a história não parou por aí. A partir da primeira jogada de Kapoor, várias reportagens discutiram essa atitude do artista com réplicas e tréplicas. Semple, ao menos, foi mais criativo. 

 

Ora, eu me pergunto. Isso pode acontecer? Legalmente talvez possa, mas moralmente é muito feio, não? Idiossincrasias à parte, na arte, na vida, nos museus e palcos da vida há espaço para todos (ou deveria haver). E, assim, o próprio poema que estávamos traduzindo ganhou novas nuances. Será que poderíamos usar a tradução ou ela também estará proibida? Vida que segue.

Referências

https://www.chicago.gov/city/en/depts/dca/supp_info/chicago_s_publicartcloudgateinmillenniumpark.html

https://www.format.com/magazine/features/art/anish-kapoor-stuart-semple-vantablack-blackest-black 

https://www.tudocelular.com/tech/noticias/n90821/vantablack-o-material-mais-escuro-do-mundo.html

https://tmjuntos.com.br/comunicacao/stuart-semple-x-anish-kapoor-a-maior-treta-do-mundo-da-arte-que-voce-pode-comprar/

http://stuartsemple.com/ | https://www.instagram.com/stuartgt/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Anish_Kapoor

https://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1552949-5602,00-OLIMPIADAS+DE+LONDRES+TERAO+TORRE+ASSINADA+POR+ANISH+KAPOOR.html

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Ecos Urbanos | Parquinhos: risco ou estímulo?

Todos nós sabemos da importância dos espaços e parquinhos infantis para nossas crianças. A história nos mostra que nem sempre foi assim, mas o fato é que sempre foram necessários e o são até hoje, ainda mais em tempos de crianças coladas às redes sociais e aos celulares. Pesquisas recentes indicaram que que muitas dessas crianças acabam tendo uma perda na sua capacidade de comunicação oral e escrita, de criatividade, de conhecimento de seus limites, de gestão de riscos e, sobretudo, de autoestima, autoconfiança, autonomia e resiliência. 

Parquinho na Alemanha. Fonte Wiki
A natureza nos propicia terra, pedra, vento, areia, barro, água, madeira, plantas, cascas de árvore, folhas, grama, mil texturas diferentes que permitem à criança identificar  sentir, perceber nuances, cores, odores e sabores... As cidades nos trazem asfalto, cimento, concreto, alvenaria, pedra e também, em menor quantidade, grama, terra, madeira.... O ideal, portanto, é juntar os dois universos e os parquinhos infantis são uma parte essencial desse elo de ligação e, ainda que muitos deles não estejam com a manutenção em dia, é importante que os pais aproveitem e reivindiquem esses espaços, seguros, mas também desafiadores. Nada substitui a natureza no desenvolvimento de habilidades motoras das nossas crianças.

A amiga e tradutora Joana Arari sugeriu um post sobre esse tema, a partir de um artigo que leu no The Guardian. O artigo destacava a ansiedade gerada nos pais, não nas crianças, por parques infantis nos arredores de Berlim, Alemanha, que  têm equipamentos e brinquedos muito altos, chegando a até dez metros do chão. O artigo destaca que, a princípio, esse tipo de equipamento estimula mais as crianças do que a chamada “santíssima trindade” dos parquinhos: balanço, escorregador e gangorra, aparentemente em declínio.

Os tais parquinhos “perigosos” juntaram equipamentos com corda, arame, plataformas, escadas, redes e tubos. Destacado na reportagem, o Triitopia foi construído em 2018 e segue uma tendência, mais ou menos recente (uma década), defendida por vários profissionais, pedagogos e educadores, não só na Alemanha: a de que esses espaços ajudam a preparar as crianças para o risco e, ao mesmo tempo, as capacitam para avaliarem, enfrentá-los e superá-los. Argumentam que é preciso deixar os filhos  ter contato com essas possibilidades se quisermos que  estejam preparados para a vida, a começar pelo sagrado ato do brincar. É brincando e se desafiando que as crianças poderão desenvolver seu lado motor e cognitivo; se a criança for insegura, ela pode demorar mais tempo para se arriscar, mas não vai desistir, apenas vai ficar mais atenta e cuidadosa em suas movimentações. Nessas tentativas, a criança poderá falhar nove vezes até subir em um brinquedo, mas na décima, ela vai conseguir e isso fará toda a diferença na sua autoestima, autonomia e resiliência. 

Em outras palavras, dizem os estudiosos que desafiar-se a entrar em contato com riscos, calculados e bem projetados, aumenta a resiliência, a coragem, a autonomia e a autoestima dos pequenos. Dizem ainda que uma perna quebrada, um joelho ralado ou um braço machucado fazem parte dessas investidas infantis para domar os tais “locais mais perigosos”. Será?

Quando minhas crianças eram pequenas, eles brincavam em parquinhos públicos e eu sempre estava por perto, com um olho no livro (que nunca conseguia ler) e outro nas crianças. Como em geral, mães são superprotetoras, o pulo do gato vai acontecer quando essa responsabilidade de levar os filhos para brincar for entregue e assumido aos papais.

Imagem: Archdaily
Os artigos listados nas referências também trazem a linha histórica dos parquinhos (aqui). Estranho pensar que “naqueles” equipamentos, o risco era menor. Aliás, muitos estudiosos dizem, inclusive, que a distância entre os parquinhos de aventura e os tradicionais estão desaparecendo cada vez mais. O importante, em qualquer caso, é que as empresas que projetam e constroem esses equipamentos se responsabilizem pela sua qualidade e segurança, e os gestores públicos, pela manutenção dos equipamentos e dos parquinhos. 

Enfim, lembrando o que o pediatra carioca Daniel Becker (ferrenho defensor do controle constante, proibição ou uso moderado das telas para crianças e adolescentes, a depender da idade) sempre diz, a natureza tem todos os remédios... Então, a ver o que o futuro reserva para nós, pais, avós e para nossos pequenos descendentes.

Referências

 

 https://www.theguardian.com/world/2021/oct/24/why-germany-is-building-risk-into-its-playgrounds?CMP=Share_AndroidApp_Other

https://www.dw.com/pt-br/por-que-a-alemanha-est%C3%A1-elevando-o-perigo-de-seus-parquinhos/video-70642595 

https://g1.globo.com/educacao/noticia/2024/09/07/os-playgrounds-alemaes-sao-construidos-para-serem-perigosos.ghtml

https://porvir.org/na-alemanha-parquinhos-apresentam-o-risco-as-criancas/

https://www.archdaily.com.br/br/990386/conquistando-espacos-publicos-a-historia-dos-parquinhos-e-playgrounds

https://www.instagram.com/reel/DBtzfz2izqp/?igsh=MWh6c2xnM2plZDRleQ%3D%3D

https://www.terra.com.br/noticias/educacao/por-que-os-playgrounds-na-alemanha-sao-feitos-de-madeira-e-aco,8688cffbe60158add153f636d9eb45efq9rglep6.html

https://www.selanca.com.br/melhores-parques-em-berlim/

https://www.instagram.com/reel/DEC7HeKJPyE/?igsh=ODdvOTF6N2QzODkx  

https://www.fronteiras.com/

https://cataventura.com.br/competencias-de-risco-entenda-o-que-sao-e-quais-os-beneficios-para-as-criancas/

https://cataventura.com.br/competencias-de-risco-entenda-o-que-sao-e-quais-os-beneficios-para-as-criancas/

https://www.fronteiras.com/leia/exibir/jonathan-haidt-ao-superprotegermos-nossos-filhos-estamos-cultivando-transtornos-mentais-entre-adolescentes