quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Ecos Urbanos | O habitar

O tema da moradia, do lar ou do teto, existe desde que o ser humano apareceu na Terra. A busca por abrigo sempre foi constante e questão de sobrevivência. É um direito básico do indivíduo para uma vida digna. Um dos muitos direitos presentes na Declaração dos Direitos do Homem, mas... A questão habitacional é um tema espinhoso, mas necessário e espero que este post sirva para fazer as pessoas refletirem. Se considerarmos só o nosso país, o déficit habitacional já é gritante e vergonhoso, sobretudo agora, com os efeitos da pandemia de Covid 19. Se, no final de 2018, cerca de 33 milhões de brasileiros não tinham onde morar, segundo dados do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos, certamente, agora o número subiu, assim como a desigualdade social. É só olhar ao redor.

O problema se agrava há tempos, sobretudo nas grandes cidades, com a grande quantidade de cortiços, favelas, barracos, barracas e pessoas debaixo de viadutos, nas ruas ou em locais sem a menor segurança, como áreas irregulares e de risco na beira de córregos, sem nenhuma condição de habitabilidade. Esses redutos jamais poderiam ser chamados de “casas”, criando questões sociais ainda mais devastadoras para a vida já já sofrida dessas populações. Mas habitação nunca foi só teto. É preciso pensar nos serviços que envolvem o morar, além da infraestrutura básica (fornecimento de água, saneamento e iluminação): postos de saúde, escolas, praças, áreas verdes e de lazer, transporte, segurança etc. 

Do alto da segurança de nossas moradas, protegidas e bem situadas, não é possível encarar como normal essa situação brutal em que vivem milhões de pessoas, só no Brasil. Muito menos dizer, cinicamente, que elas “quiseram” construir sua casa naqueles locais. Tal discurso é cruel, mostra desconhecimento da real situação e uma recusa em ver a raiz do problema: a falta de políticas públicas habitacionais eficazes. Este, sim, é um dado real a ser encarado e enfrentado pela sociedade como um todo e pelos governos, aliás é um problema de Estado, não de partidos.

Desde criança, ouço falar de siglas e termos como BNH, Pró-Moradia, Cohab, Pró-Morar, financiamento, Caixa, cooperativas, construtoras, juros, casa própria... Há muito tempo não sou mais criança e o tema continua em voga. Há alguns anos houve um discreto avanço no sentido de entender a habitação também como serviço, propiciando outras formas de acesso à moradia como locação social e programas específicos para atender à diversidade em termos de renda e faixa etária, por exemplo. Isso não deve ser encarado como luxo. Casas adaptadas para idosos ou para deficientes são comuns em países que respeitam seus cidadãos. É doloroso perceber, no entanto, como tudo ainda caminha a passo de tartaruga. 

Os últimos grandes programas de Estado foram o PAC Moradia e o Minha Casa Minha Vida (MCMV), ambos nas gestões do ex-presidente Lula e da ex-presidenta Dilma Roussef. Apesar das críticas de especialistas quanto à indefinição de critérios para seleção do público-alvo e escolha dos projetos, a iniciativa foi fundamental porque deu uma contribuição inegável no setor das políticas públicas habitacionais, com a construção de um número significativo de unidades habitacionais financiadas em longo prazo, pela Caixa Econômica Federal, de acordo com a renda das classes mais desfavorecidas. 

Contudo, em algum momento, o programa se transformou em um programa de mercado, ou seja, empreiteiros tomaram a iniciativa, forçaram a ocupação de áreas antes rurais e acabaram por gerar uma grande valorização da terra, o que só fez aumentar o déficit habitacional, em função do aumento dos alugueis, fruto dessa valorização. Em outras palavras, o mercado e a classe média acabaram lucrando com o programa e de forma bastante discutível, quando um sem número de proprietários de lotes construíam moradias para o público-alvo do MCMV. Vendiam as casas, tinham lucro, mas economizavam nos materiais e na qualidade final do produto. Com o tempo, aconteceu o esperado: logo depois do “habite-se”, os imóveis começaram a apresentar problemas como trincas, rachaduras, infiltração, umidade ascendente, entre outros. Foi triste ver um programa, que poderia ter favorecido milhões, acabar por garantir o lucro de poucos em detrimento de muitos.

Outra crítica ao MCMV é que ele poderia ter-se beneficiado dos inúmeros pesquisadores, arquitetos e urbanistas do setor e, assim,  prever uma implantação melhor, projetos mais humanizados, soluções mais racionais e sustentáveis. As próprias prefeituras, por outro lado, nem sempre cumpriram sua contrapartida de levar infraestrutura aos locais das construções. Afinal quem quer casa precisa de infraestrutura básica e serviços próximos. De qualquer forma, o programa teve um papel forte e relevante. Tanto é que, no momento, tenta-se batizar o mesmo programa com outro nome, inclusive casas prontas serão entregues sob o novo nome. Fácil, não?   

Além disso, a indústria da construção é outro tema central: aposta-se menos na racionalização e mais na mão de obra, que é muito barata no nosso país e o sistema mais replicado para habitação social é a alvenaria armada. No mais, trata-se também de buscar materiais sustentáveis, racionalizar a obra e minimizar o trabalho humano. Autogestão é outro tema importante e que ocorre quando a própria população interessada faz a gestão da obra, acompanha e decide sobre os recursos ali aplicados. Com essas condições, em geral, conseguem-se melhores projetos, maiores áreas das unidades habitacionais e custos mais adequados.

Duas outras grandes questões colocam-se também: a localização e a função social da propriedade, já prevista na constituição de 1988. Por exemplo, há mecanismos do Estatuto da Cidade que preveem a notificação para áreas subutilizadas, mas poucas prefeituras usam esse recurso. No caso do MCMV, com núcleos isolados e transformados em guetos, em muitos casos, também geraram um controle do poder paralelo, mas essa é outra questão e fica como sementinha, para pensar. 

Outro aspecto refere-se ao padrão brasileiro de moradia. Nossa tradição é de casas térreas, em loteamentos espalhados pelas cidades, o que aumenta o custo de infraestrutura e tem impacto no preço final do imóvel. Ou seja, o indivíduo constrói mais longe, leva mais tempo para chegar ao centro da cidade, ao local de trabalho e gasta mais com o transporte. Não há lógica nesse esquema. A alternativa óbvia seria mudar o paradigma: construir menos casas unifamiliares e adensar as regiões já consolidadas, ou seja, onde já existe infraestrutura. Em suma, menos casas isoladas e mais prédios de apartamentos (5-6 andares), com aproveitamento do miolo das quadras para área de lazer. Basta olhar outras cidades do mundo. O exemplo acima é de Barcelona. 

O objetivo maior de qualquer programa habitacional é garantir qualidade de vida, mas com custo baixo, quantidade e rapidez na construção. A quem interessa essa demora na solução do problema da moradia mais eficiente, adequada e digna para todos, uma moradia vista como serviço e não como depósito de gente? Quando entenderão que no mundo estamos todos juntos e se um ganha todos ganham, se um perde, todos perdem?  

Referências

O texto contou com o aporte de dados da arquiteta Lizete Rubano, doutora pela FAU-USP e professora na Universidade Mackenzie.
http://www.usp.br/agen/repgs/2004/pags/124.htm
https://www.archdaily.com.br/br/939395/a-importancia-do-espaco-domestico-em-tempos-de-covid-19 

Imagens:
Conjunto habitacional com residências unifamiliares e  predinhos Minha Casa, Minha Vida.
Barcelona: https://habitatgecollectiu.wordpress.com/2013/01/15/buscando-los-mejores-patios-de-manzanas-residenciales/

4 comentários:

  1. Anitinha!nosso país está em falta com as famílias mais carentes.O que falta é governante que enxergue o outro com Amora e devido respeito que eles merecem.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, Bebel, exatamente....não são todos, é verdade, mas a grande maioria só consegue pensar no seu próprio umbigo. Muito triste. Esquecem a função de ser governo, representantes do povo... beijos...

      Excluir
  2. Infelizmente acontece o que vc explicou tão bem. Existe tantos prédios abandonados nas grandes cidades. Não seria melhor o governo comprar esses prédios, reformar e colocar esse pessoal lá?

    ResponderExcluir
  3. Oi, Maria Lúcia. Isso tbm já foi tentado, mas muitos proprietários aumentam o valor de compra ou de aluguel para esperar valorização da área. Em outros lugares, os governos não se interessam; em outros, os imóveis são longe do local de trabalho dessas populações, enfim "n"situações, muitas variáveis, mas acredito que falte empenho também, sem dúvida . Obrigada por comentar, bjs

    ResponderExcluir