segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Ecos Literários | 100 anos de Clarice Lispector

Como aquela famosa xícara do aparador de Drummond, alguns livros me olham da estante. Toda vez que passo por ali, eles me olham, como se quisessem ser reabertos, revisitados, relidos. Um deles é um livro de capa dura branca e meio amarelada pelo tempo: Água Viva, o denso e fragmentado poema em forma de prosa de Clarice Lispector (1920-1977), lançado em 1973. Outro é de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Os dois grandes nomes da literatura brasileira comemorariam 100 anos, em 2020, se estivessem vivos. O post de hoje é sobre Clarice Lispector. Em meio às comemorações, uma série de podcasts, biografias, ensaios e relançamentos como os três livros escritos antes que a autora completasse 30 anos: Perto do coração selvagem (1943), O lustre (1946) e A cidade sitiada (1949), pela Editora Rocco.

Chaya Pinkhasovna Lispector, nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira como Clarice Lispector, era jornalista, tradutora e autora de romances, contos, ensaios, crônicas e poucos poucos livros infantis. Declarava-se brasileira e pernambucana, já que chegou aqui com apenas 2 meses de idade, vinda com os pais da Ucrânia, em função da perseguição a judeus. Morou em Alagoas, Recife e no Rio de Janeiro. Considerada uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX, por meio da escrita, Clarice buscava se entender, deixando fluir, com intuição e sensibilidade, suas inquietações existenciais através de cenas cotidianas e dramas psicológicos em uma narrativa singular, onde a Clarice autora podia ser também, narradora e personagem. É fácil verificar que um texto nasce, se alimenta e dá prosseguimento a outro. Foi comparada a vários autores mundiais do porte de Kafka, Joyce, Woolf, Nabokov e Sartre, entre outros. Nunca deixou de criticar, ainda que de forma cifrada, a sociedade brasileira e seus dramas sociais.

O gosto pela escrita, como forma de lembrar, pensar, entender e ressignificar se fez sentir desde criança e a acompanhou por toda vida. Seu primeiro livro, completado aos 24 anos, Perto do Coração Selvagem (1943), foi aclamado pela crítica e premiado. O título vem de uma frase de The Portrait of the Artist as a Young Man, de James Joyce: - “He was unheeded, happy, and near to the wild heart of life” –Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do coração selvagem da vida".   Na última entrevista, concedida ao jornalista Julio Lerner, na TV Cultura, em 1977 e pouco antes de morrer, uma Clarice triste se dizia vazia, morta, ressaltando que não se considerava profissional, “que queria sempre ser amadora, porque só escrevia quando queria e fazia questão de continuar sendo amadora para manter a liberdade...” Perguntada sobre ter sido chamada de hermética, dizia que não se considerava hermética, que só escrevia coisas simples. Influências? Não citou, porque disse ler de tudo.

Depois de 15 anos no exterior, em função do casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos, Pedro e Paulo, voltou para o Brasil em 1959, com os filhos e já separada. Lançou o livro de contos Laços de Família, Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro e A Maçã no Escuro, publicado em 1961, foi premiado como o melhor livro de 1962. Em meados dos anos 1960, vivia reclusa, mas sempre escrevendo, como se a escrita fosse sua tábua de salvação. Em 1977, lançou A Hora da Estrela, último trabalho publicado em vida, que virou filme pelas mãos da cineasta Suzana Amaral, em 1985. O filme, que narrava a história da luta sofrida de Macabea, a jovem que viera do interior para sobreviver na cidade grande, conquistou grandes prêmios em festivais de cinema aqui e em Berlim. Faleceu e foi sepultada no Rio, em 1977, um dia antes de completar 57 anos. 

Sua obra foi traduzida para mais de 10 idiomas pelas mãos de vários tradutores, dentre eles Gregory Rabassa, autor da primeira versão para o inglês de um de seus livros (A Maçã no Escuro); A hora da Estrela, por seu biógrafo, crítico e tradutor norte-americano Bejamin Moser; Água viva, pelo Stefan Tobler; A Paixão segundo G. H., pela poeta e acadêmica Idra Novey; Um Sopro de Vida, pelo professor universitário brasileiro Johnny Lorenz. Duas outras traduções também foram premiadas e são bastante celebradas:

- Near to the wild heart (2012), Perto do Coração Selvagem (1943), obra escrita aos 24 anos, que fala do coração adolescente e levada ao público anglófono pelas mãos da tradutora australiana Alison Entrekin, que já morou no Brasil e verteu para o inglês obras icônicas de Paulo Lins, Chico Buarque de Holanda e, hoje, prepara a versão de Grande Sertão Veredas.  

- The Complete Stories of Clarice Lispector (2015), trabalho que recebeu o PEN Translation Prize — o mais importante prêmio de tradução dos Estados Unidos, em 2016. A versão foi da tradutora e professora da Universidade de Columbia, Katrina Dodson, que também já morou no Brasil e tem doutorado da Universidade da Califórnia, em Berkeley, sobre a obra de Elizabeth Bishop no Brasil. Agora, Dodson finaliza a versão de Macunaíma, obra de Mário de Andrade, com o título Macunaíma, the Hero With No Character, a ser lançado pela New Directions. A nova tradução busca reduzir os danos produzidos por uma tradução anterior contestada.  

Em 2016, o bairro do Leme, no Rio de Janeiro, onde a autora morou por mais de 10 anos, ganhou a estátua Clarice e seu cachorro Ulisses, personagem de seu conto Quase de verdade (1978), publicado postumamente. O escultor é Edgard Duvivier e a obra foi realizada a pedido da professora de Literatura Tereza Monteiro, uma das biógrafas da escritora. 

Ler, ler e ler é dever dos que trabalham com a palavra, dos que querem se conhecer e se questionar. Ler Clarice Lispector é um prazer e um dever. A literatura é essa arte fantástica que leva à reflexão, à autoanálise, ao questionamento da realidade e à emancipação do ser humano. A arte da tradução, por outro lado, é como uma ponte conectando povos, culturas, saberes e obras-primas. Leva para longe e exalta o nome e a obra de nossos autores, divulga nossa literatura e nossa cultura. Porém, não existiriam traduções se não existisse o autor, aquele que burila cada palavra, busca no seu íntimo e na alma o melhor termo para expressar sua visão de mundo. Parabéns a todos, nesse mês em que se comemora o Dia do Tradutor (30 de setembro). Que venham outras Clarices e outros tradutores. 

Referências

https://claricelispectorims.com.br/blog/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector
https://revistacult.uol.com.br/home/a-paixao-de-clarice-lispector/)
https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2015/10/nadia-gotlib-sobre-clarice-lispector
https://www.rocco.com.br/especial/claricelispector/
http://falcaodejade.blogspot.com/2019/04/perto-do-coracao-selvagem-de-clarice.html
https://www.youtube.com/watch?time_continue=5&v=ohHP1l2EVnU&feature=emb_logo

16 comentários:

  1. Me vejo a conversarcom Clarice, em certas tardes quando estou só! Na verdade, essas conversas camuflam minha solidão e enchem meus entardeceres de reflexões e alegrias femininas! Emanuela Silva

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    1. Manu, ver-se conversando com Clarice, enchendo suas tardes de reflexões e alegrias não é para qualquer um mesmo, só para poucas e boas...Obrigada, meu bem, beijos

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  2. Parabéns aos tradutores e viva Clarice!

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    1. Valeu, Daniel! Quem conhece Clarice não fica indiferente! abraços

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  3. Anita, estamos em sintonia! Li O Lustre hoje mesmo!

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    1. Parabéns aos tradutores e a você querida Anita!
      Adorei a postagem sobre a Clarice Lispector

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    2. Obrigada, mas não se esqueça de deixar seu nome da próxima vez... abraços

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  5. Clarice Lispector grande escritora! Sangue ucraniano e coração e alma brasileira.Parabéns pelo texto Anitinha. Parabéns também aos tradutores.

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  6. Beleza de texto, Anita! Crítica e tanto! Gostei também da estátua da praia do Leme... Em se tratando de Clarice Lispector, só A paixão segundo GH já seria escrita pra longos ensaios e discussões. Gosto de tudo o que ela escreveu. Ontem mesmo estava comentando com o Victor sobre a adaptação que fizeram no cinema de O corpo. Quando li, me espantei com a secura da linguagem dela. Enfim... há muito o que se pensar sobre sua obra. Parabéns sempre, Anita.

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    1. Olá, Valquiria. Sem dúvida, a obra dela ainda vai gerar muita pesquisa, reflexão e discussões. Uma escritora de vanguarda, sem dúvida... beijos, meu bem, obrigada

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  7. Amo a Clarice. Sempre digo pra todo mundo que a considero a maior escritora brasileira de todos os tempos. Li vários livros dela, mas o meu preferido é o "Sopro de vida" que já li três vezes e com certeza ainda o relerei em algum momento.
    Grande abraço!!

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  8. Nada simples a escritora Clarice. Intrigante, complexa e única. Belo texto Anita

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    1. Ela era incrível, intrigante mesmo. Obrigada, meu bem. Um beijo

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