quarta-feira, 11 de maio de 2022

Ecos Urbanos | Enchentes e a impermeabilização do solo

Há anos, todo final da primavera e começo do verão, nosso coração fica apertado com as notícias (que sempre vêm) de dramas climáticos e humanos, com temporais, enchentes, deslizamentos, perda de vidas, de equipamentos, de recursos. Este ano não foi diferente. Afinal, como país tropical, espera-se grande quantidade de chuvas por aqui, mas por que esperamos chegar a esse ponto de urgência climática? Sim, o aquecimento global (mero efeito da ação humana) contribui para os desarranjos do clima, mas quem causou o aquecimento global? Com certeza, não foram os ursos polares. E nós, habitantes urbanos, como temos cuidado de nossas cidades, de sua integração com a natureza?

Caos urbano. Imagem: Agência A
A natureza sempre esteve por aqui, muito antes de nós. Porém, meio sem-cerimônia, fomos chegando devagar e tomando posse, estrangulando os cursos d'água, ocupando as margens e várzeas dos rios e dos córregos, criando avenidas de fundos de vale; desmatando, derrubando matas ciliares, eliminando áreas verdes que protegem a cidade dos ventos, equilibram o clima e favorecem a formação dos rios voadores... Mais um pouco e fomos subindo encostas, desrespeitando as curvas de nível, fazendo cortes quase verticais nos morros,  esquecendo o que levou milhares de anos para se formar, alegando que seguir as curvas de nível encarece o empreendimento, que árvores atrapalham o “arruamento” e que folhas "sujam" o chão... Fomos ocupando mais e mais espaços, encostas, topos de morro, construindo mais, impermeabilizando mais o solo e acreditando que o espaço é infinito...

Fomos nos acostumando com algumas inundações aqui e ali e não fizemos o dever de casa como deveríamos. Mesmo com um bom sistema de drenagem pluvial, piscinões e piso permeável, não respeitamos as normas sobre permeabilidade do solo público e privado, usamos materiais inadequados, construímos no espaço geográfico das bacias e, com isso, os rios (nas avenidas de fundo de vale) vão reclamando seus leitos e o volume de água das chuvas nas nossas cidades acaba sendo muito maior do que a capacidade do sistema de drenagem, muito em função da grande impermeabilização do solo, já que a velocidade da água acaba sendo bem maior em áreas pavimentadas.  

Fomos nos acostumando e não mudamos, continuamos a usar sacos plásticos e a produzir toneladas de lixo, a jogar qualquer coisa nas ruas e espaços públicos, achando que o espaço público não é de ninguém... Mas o lixo se acumula nos bueiros (muitos sem tampa adequada, criando perigo para crianças e animais) e causa mais inundações... Quando as águas baixam, vemos no lixo amontoado o triste retrato da nossa educação. Aliás, nesses tempos de pandemia é  chocante constatar o número de máscaras jogadas no chão. Além de altamente anti-higiênico, isso mostra um grau absurdo de ignorância, incivilidade e desrespeito com o outro. Fora o descaso com o meio ambiente, mesmo porque o elástico das máscaras, quando não cortado antes do descarte, pode asfixiar pequenos animais e aves. 

Como sociedade, fomos nós que permitimos tudo isso, com nossa falta de educação ambiental e de solidariedade, com nossa visão míope e nosso apego a hábitos tortos e viciados... Portanto, não adianta culpar a natureza, muito menos as vítimas. Há tempos, a natureza vem dando sinais... Percebemos, agora, no dia a dia os efeitos  de sua ira. Não sei se dará tempo, ou se vamos simplesmente ficar correndo atrás do prejuízo. Sim, muito tem sido feito em termos de tecnologia e engenharia, mas falta o principal: políticas públicas eficazes e conscientização geral (via educação) de que a cidade é de todos, para todos e, portanto, responsabilidade de todos.

Tampouco adianta culpar as vítimas. Não venham me dizer que as pessoas moram em áreas de risco, sujeitas a deslizamento ou outros acidentes, porque querem, porque sabiam do perigo quando ali construíram. Ora, não sejamos cínicos. Essas populações ergueram barracos, taperas ou simples abrigos, seja qual for o nome que se dê, não porque queriam, mas porque acabaram sendo expulsas das zonas mais centrais, onde o terreno sempre foi mais disputado e o metro quadrado, mais caro. Essas populações precisavam de um lugar mais central para morar, sem passar horas no transporte público, para abrigar-se contra o frio, a chuva, ou seja, ergueram suas “casas” nesses locais por absoluta falta de opção e, de novo, de educação.  E repito, educação é o que vai nos tirar desse buraco sem fim em que nos metemos. Enquanto isso, os órgãos responsáveis por fiscalizar a construção e a ocupação do solo urbano fecham os olhos e deixam essas tragédias anunciadas acontecerem. Basta pesquisar um pouco a história da ocupação das nossas grandes cidades.

Fonte: Ag. Câmara de Notícias Foto:André Santos/Pref. Uberaba

Concluindo. Nas grandes cidades, será preciso fazer o caminho de volta (no que ainda for possível) e esperar que as médias e pequenas não sigam nosso exemplo.  Mas o que fazer para amenizar tragédias assim? Para começar, o contrário do que fizemos até hoje. É preciso preservar as matas ciliares, diminuir a impermeabilização do solo, combater os processos de erosão, criar mais parques e áreas verdes, deixar os rios serem rios, proteger suas margens, respeitar as normas urbanas quanto à porcentagem de uso e permeabilidade do solo, destinar corretamente o lixo, construir jardins de chuva, utilizar piso ou material drenante nas calçadas e vias públicas, enfim... Ou simplesmente, como diz o arquiteto mineiro Fernando Lara, professor da Universidade do Texas em Austin :

[...]para resolver de verdade o problema das enchentes urbanas, comece quebrando o cimento do seu quintal e fazendo ali um canteiro. Flores e hortaliças fazem bem para a alma, para o bolso e para evitar a inundação da rua de baixo (1). 

Imagem: Ciclovivo.com.br

Uma ação mais abrangente e certeira para enfrentar as causas do problema é proposta pelo arquiteto e professor Nabil Bonduki no artigo Reformas estruturais podem evitar tragédias como as de Petrópolis. Ele traça um panorama das principais ações empreendidas, desde os anos 1980 em São Paulo, para combater tal situação e afirma que isso só se resolve com reformas mais estruturais, como “conter a migração para as grandes aglomerações urbanas, implantar uma política fundiária radical que garanta o acesso à terra urbana adequada, realizar uma produção massiva de habitação subsidiada (inclusive aluguel) para os mais vulneráveis e urbanizar os assentamentos precários.”  É fácil? Não, não é, mas fica a dica.  

Em tempo.  Celso Sampaio, arquiteto e professor da FAU Mackenzie, sugeriu o artigo A casa com cheiro de floresta, que mostra o resultado de uma das dicas acima, na casa do arquiteto Tomaz Lotufo. Veja os resultados aqui.

Referências

(1) https://controversia.com.br/2022/02/26/para-reduzir-as-enchentes-quebre-o-cimento-do-seu-quintal/

https://revistaforum.com.br/revista/ok-para-reduzir-as-enchentes-quebre-o-cimento-do-seu-quintal/ https://revistaforum.com.br/urbanidades

https://www.caubr.gov.br/reformas-estruturais-podem-evitar-tragedias-como-as-de-petropolis/

https://www.petropolis.rj.gov.br/dfc/index.php/defesa-civil-orienta/cartilhas.html

https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.205/6852  

4 comentários:

  1. Anita,
    Muito boas as suas colocações, nos faz pensar sobre nossas mínimas atitudes, muitas vezes com consequências inesperadas, obrigado você inspira com estes textos provocadores.
    Obrigado também pela generosidade de incluir a sugestão do trabalho do Tomaz Lotufo.

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    1. Celso, obrigada pelo comentário. Vc esqueceu de escrever seu nome... Como já disse, o tema não é novo e é terrível ver isso se repetir a cada ano. Uma sensação de impotência atroz... O modo de planejarmos nossas cidades, a participação e a ação política da sociedade e do Estado devem mudar. Enquanto isso não acontece, cada um deve fazer a sua parte. Tento fazer isso também com meus textos; é trabalho de formiguinha, eu sei, mas também vale... abração e obrigada

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  2. Muito bom Anitinha! Esse problema no Brasil é uma constante todo ano.Infelizmente entra ano sai ano e isto se repete e nossas autoridades pouco fazem.Tomara que um dia essas notícias não apareçam mais.

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