sexta-feira, 22 de julho de 2022

Ecos Urbanos | O tempo nas cidades

Imagem: Wikipedia

A mitologia grega sempre me encantou, com sua forma de explicar o mundo. Volto a falar de Chronos, o senhor do tempo para os gregos, ou Saturno na mitologia romana.  Temendo que se cumprisse a antiga profecia de que ele seria destronado por um herdeiro direto, Chronos acaba devorando cinco dos seis filhos (Hades, Poseidon, Hera, Deméter, Héstia e ... Zeus) que teve com Rhéa. O último deles, Zeus, escapou, pois Rhéa enganou Chronos, dando-lhe uma pedra envolva em um pedaço de pano em lugar do bebê. Anos mais tarde, a profecia se cumpriu, Zeus o destronou e ocupou seu lugar, mas antes, deu-lhe uma poção que fez o pai vomitar todos os seus filhos. Por ter derrotado Chronos, símbolo do tempo, Zeus e seus irmãos tornaram-se imortais. 

A imagem de Chronos devorando os filhos é assustadora, mas é o que acontece na vida. O tempo nos devora; quanto mais corremos, mais nos perdemos e não vemos o tempo passar. Se bem administrado, o tempo  age a nosso favor. Do contrário, acabamos vivendo sem perceber, sem viver, sem consciência. Mas o tempo é fator fundamental também na vida das cidades, na nossa casa comum. Em texto derivado de uma palestra, em 1989, o saudoso, premiado e sempre necessário Milton Santos (1926–2001), geógrafo baiano de Brotas de Macaúbas e professor titular de Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, fala dos diferentes tempos nas cidades. Cita os filósofos alemães Martin Heidegger (1889-1976), para quem não há tempo sem o indivíduo, e Immanuel kant (1724-1804) que vê o espaço como uma estrutura a coordenar esses diversos tempos. Cita ainda o historiador e filósofo argentino Sérgio Bagú (1911-2002) que diferencia tempo como sequência (o transcurso), tempo como raio de operações (o espaço) e tempo como rapidez de mudanças. Santos menciona ainda o escritor britânico James Graham Ballard, autor do conto Cronópolis (1960), nome de uma cidade imaginária. No conto, o personagem principal, um indivíduo fascinado pelo conceito de tempo, vivia em um mundo onde os relógios haviam sido proibidos.

Trazendo a ideia do tempo para as cronópolis de hoje, as grandes cidades, Santos destaca a relação entre tempos curtos e longos, rápidos e lentos, entre tempo e espaço, tempo e técnica, além de tempo e velocidade para ver, viver e entender a cidade. Como ele diz, as pessoas percorrem os espaços e consomem tempo... Tempo e cidade, tempo e mobilidade urbana, já que tudo é medido em função do tempo. Como geógrafo, Santos critica a correria e a velocidade que impede a fruição dos espaços, ao mesmo tempo em que destaca as boas ideias que permitem a observação lenta e prazerosa da vida. Elogia os woonerf holandeses, aquelas ruas onde civilizadamente se encontram e convivem bicicletas, crianças, pedestres e até carros. Destaca o movimento slow food, em  contraposição ao fast food, que remete ao contrassenso de fazer tudo rapidamente no afã de “não perder tempo”.  Contudo, para Santos, doutor pela Universidade de Estrasburgo, na França, “perder” tempo é essencial para que se possa ganhar ao caminhar devagar, parar, olhar, admirar, contemplar e saborear a cidade. 

Destaca a ação de coletivos que têm o mesmo objetivo, como os grupos Desvelocidades e Poro (1) de Belo Horizonte.  O primeiro lançou um manifesto em favor das desvelocidades – pelas crianças, pelos pais com carrinhos de bebê, idosos, pessoas com mobilidade reduzida ou deficiência, ciclistas, patinadores, pedestres, skatistas e todos os outros que têm direito à cidade! O segundo, grupo Poro, publicou um informativo, no qual alerta o leitor com as palavras: “Tempo não é dinheiro. Guarde esse panfleto para ler sempre que necessário”, e divulga Dez Maneiras Deliciosas de Perder Tempo, como possibilidade de encantamento. 

Prof. Milton Santos. Foto: UFSB.Divulgação

Ao final do artigo, com a humildade que lhe era peculiar, Milton Santos lamentou não ter tido mais tempo para aprofundar suas pesquisas e oferecer um curso de pós sobre o tempo. Concluiu salientando que, felizmente, os indivíduos estavam des­cobrindo que, nas cidades, o tempo que comanda ou vai comandar é o tempo dos homens lentos... pois só os lentos é que podem ver e saborear de fato a cidade: 

 “Quem, na cidade, tem mobilidade – e pode percorrê-la e esquadrinhá-la – acaba por ver um pouco, da cidade e do mundo”. (Milton Santos)

Se ainda fosse vivo, com certeza, Santos teria endossado ações de implantação de ciclovias e do limite de velocidade nas ruas das cidades, democratização e melhoria dos espaços públicos, estímulo e proteção às áreas verdes, recuperação de rios e córregos urbanos, aperfeiçoamento das políticas públicas de segurança, habitação, educação e saúde para todos e, finalmente, de um desenho urbano comprometido que resultasse na criação de ruas mais agradáveis com fachadas ativas, tratamento de piso, iluminação e mobiliário urbano adequados. Ele terminaria relembrando que todos têm direito a uma habitação digna, educação e serviços de qualidade e a uma cidade justa, democrática, segura e agradável. 

Referências

(1) O Poro é uma dupla de artistas formada por Brígida Campbell (@brigidacampbell) e Marcelo Terça-Nada (@marcelonada). Também conhecido como Grupo Poro ou Coletivo Poro, atua desde 2002 com a realização de intervenções urbanas e ações efêmeras que tentam levantar questões sobre os problemas das cidades através de uma ocupação poética e crítica dos espaços.
SANTOS, Milton. O tempo nas cidades. Ciência e Cultura [online]. 2002, v.54. p. 21-22.  https://www.revistaprosaversoearte.com/o-tempo-nas-cidades-texto-extraordinario-do-geografo-milton-santos/
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252002000200020 https://en.wikipedia.org/wiki/Chronopolis_(short_story)
https://poro.redezero.org/intervencao/10-maneiras-incriveis-de-perder-tempo/
http://desvelocidades.red.bitverzo.com/
https://meiaum.wordpress.com/2015/09/30/o-que-e-uma-woonerf/
https://www.encyclopedia.com/arts/encyclopedias-almanacs-transcripts-and-maps/chronopolis-j-g-ballard-1971
http://www.elfikurten.com.br/2011/04/milton-santos-o-aspecto-humano-da.html

13 comentários:

  1. Que ótimo, muito obrigado Anita, mas uma oportunidade para ler seus escritos, tempos lentos, tempos necessários.

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  2. Muito bom!🌟 Ótimas indicações de leitura também, uma bela resenha do artigo do Milton Santos! ❤

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    1. Querida Telma, você conhecia a fera, né? Privilégio nosso, beijos

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    2. Um privilégio mesmo 🙏🏽❤

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  3. Muito bom Anitinha! Texto interessante e Milton Santos escrevia com sabedoria suas ideias.

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  4. Bom começar o dia lendo uma cronica cheia de boas informações e reflexões. Um indicio que terei tempo pra lembrar sempre de suas sabias palavras.
    beijo
    Carlos SA

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    1. Sábio é você, Carlos, estou tentando aprender. Eu sou a primeira leitora, sempre. bjs

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  5. Nunca se precisou tanto de desacelerar, parar de correr e caminhar . Lição que eu mesma preciso reaprender! Obrigada pelo texto querida,Anita!

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  6. Anita, é sempre um prazer ler seus textos, quando você fala com calma e organização sobre os aspectos de excelência da arquitetura urbana. Sua linguagem tão tátil quanto a própria Arquitetura.
    Os horrores de Chronos, mandando os filhos pro papo... e me lembrei de Sêneca, que esteve bem na horinha em que inventaram o relógio. Fico pensando: que divisor de águas Sêneca testemunhou. E não gostou... Parabéns, sempre pelos seus textos. Abs

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    1. Obrigada, Valquíria, pelos seus comentários sempre pertinentes e pelo seu apoio constante. Grata, grande abraço

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  7. Sensacional! Muito bom, Anita, excelente texto. Vou procurar ler as referências também.

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    1. Valeu, Daniel. Vc é outro que sempre me incentiva. Obrigada, meu amigo...

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  8. Muito boa leitura. Já estou desacelerando faz um bom tempo. Bjs

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