sexta-feira, 31 de maio de 2024

Ecos Tradutórios | O prazer de traduzir

Traduzir é uma tarefa apaixonante. Não é fácil, como pensam alguns, mas, certamente, é uma tarefa enriquecedora. É agradável quando o original nos encanta, ensina e diverte, levando-nos a outros tempos, lugares e culturas. Viajamos junto com o texto, sonhamos, aprendemos e aumentamos nosso repertório. Por outro lado, a tradução pode ser desafiadora e instigante quando nos provoca de muitas maneiras, contestando nossas certezas, fazendo com que nos indignemos e questionemos o status quo, o autor, o enredo, a narrativa, a vida, o próprio universo... Como a literatura, a tradução abre um universo imenso não só ao leitor, mas também ao tradutor. 

Traduzir pressupõe, é evidente, além de um ótimo domínio das línguas trabalhadas, sobretudo na escrita, muita leitura, muita curiosidade e pesquisa nas mais variadas formas, uma pulga atrás da orelha o tempo todo e altas doses de bom senso para respaldar as escolhas e decisões propostas. O autor de um romance, poema ou obra técnica, quer ser lido. Os tradutores fazem isso acontecer e constroem essa ponte, mas a voz será sempre a do autor, não a do tradutor.   

Há pouco tempo, a professora de tradução e tradutora carioca Isa Mara Lando, conhecida pela tradução de grandes títulos, lançou em seu canal do YouTube uma série na qual comenta as traduções que lhe deram satisfação. A cada episódio, ela menciona as circunstâncias que originaram a tradução, faz comentários sobre obra em si, sobre o autor e, principalmente, explica o motivo de sua satisfação. Ótima ideia, porque, dessa maneira singela, como num bate-papo, ela divulga não só obras literárias, às vezes não tão conhecidas pelo público, mas também as dores e delícias do seu ofício. Eu mesma já me interessei e encomendei três obras das mencionadas na série. 

No YouTube, há vários canais de excelentes tradutores com entrevistas, discussões, comentários sobre a estratégia utilizada, os desafios, os questionamentos e as escolhas tradutórias que envolvem cada trabalho. É sempre muito rico, porque além de elucidar dúvidas que outros tradutores possam ter, esses profissionais divulgam a arte da tradução e incentivam os leitores a ler, pensar e pesquisar mais. Que venham outras iniciativas como essas! Para melhorar, só falta uma bela redução no preço dos livros aqui publicados.

Referências

https://www.youtube.com/@isamaralando  

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Ecos Humanos | A banalidade do mal

O nome do post vem do famoso livro da filósofa alemã Hannah Arendt, mas não consegui pensar em outro título, tendo em vista a banalização de tanta violência nos dias que correm. Episódios de violência contra crianças e mulheres me deixam, inevitavelmente, indignada, revoltada, com o estômago embrulhado e me perguntando até quando. Por que o agressor nunca se coloca no lugar da criança ou da mulher agredida, ofendida, assediada, violentada? E se ela fosse sua mãe, sua filha, sua irmã?

É intolerável ver tudo isso, mais ainda quando essa atitude vem dos chamados “ricos e famosos” (e a pergunta que não quer calar é: famosos por quê, ricos em quê?), que deveriam ter noção de sua responsabilidade em servir de modelo positivo para tantos jovens que os admiram. São homens que têm autocontrole, ou apenas instintos como os animais? E o pior é que quase nunca são punidos; mentem descaradamente, atribuem o ato a um momento de loucura, fazem um pedido ridículo de desculpas, pagam uma fiança (ou algum "amigo" paga) e pronto. Tudo fica "normal".... É como se pagassem um valor para poder cometer os crimes. Surreal!  

É preciso parar de justificar, banalizar, de achar "normal" essas atitudes machistas e doentias. Além dos casos conhecidos e ultrajantes que parecem ter sido normalizados por parte de uma sociedade hipócrita, há outros que não aparecem na mídia porque tanto os abusadores quanto as vítimas são pessoas “comuns”, nada famosas.  Que nojo, que tristeza e que vergonha para nossa sociedade! Que péssimo exemplo para as crianças. Infelizmente, nota-se ainda como os conceitos andam deturpados, como existe uma confusão tosca na sociedade “moderna”. Valoriza-se o superficial, o “poder”, o dinheiro, o exibicionismo, a indiferença, o “todo mundo age assim”. Não suporto, não tolero, não aceito e sempre digo alto e em bom som: Todo mundo, não! 

Vou me concentrar em um dos mais recentes casos de violência contra a mulher, envolvendo o técnico de futebol Alexi Stival (1963), ou Cuca. Há dias, ele fez um pronunciamento (ver aqui) a respeito de um crime que cometeu contra uma garota de 13 anos, durante uma excursão do seu time à Suíça. Foi acusado de estupro coletivo em 1998 e, anos depois, inocentado. Ora, o veredicto não apaga o ato infame, o crime ocorreu e a vítima, que faleceu aos 28 anos, sofreu e viveu anos com o trauma. Viveu?

O que me chamou a atenção foi o fato de Cuca reconhecer publicamente seu erro, com o qual conviveu, por duas décadas, como se nada houvesse. O pronunciamento veio depois de reunir-se com a família, esposa e filhas. Disse que queria se redimir e agir para diminuir a violência contra a mulher; culpou ainda a sociedade machista que achou (e acha) natural essa violência. Afirmou que se sentia na obrigação de colaborar para mudar o futuro e a forma como a sociedade, sobretudo jogadores de futebol “famosos” veem e naturalizam esses episódios. Ora, é preciso protestar e reafirmar que não houve, não há e nunca haverá quaisquer justificativas para tais crimes. 
 
O técnico propôs começar essa conscientização na base da pirâmide, nas escolinhas de futebol para crianças. Vale dizer que alguns clubes têm essa preocupação e já atuam nessa linha, mas é pouco, muito pouco. Para mim a conscientização deve começar em casa, sempre. Onde mais? De todo modo, porém, Cuca parece ter percebido, ainda que  tardiamente, que de nada adianta ser um bom profissional, no caso um bom treinador, se o indivíduo não for um bom ser humano como um todo, como integralidade que é. Ou como diz a música Lama, de Mário Duarte, cantada por Clara Nunes em 1976: "...não adianta estar no mais alto degrau da fama com a moral toda enterrada na lama". E isso vale para qualquer profissional, em qualquer tempo e em qualquer área de atuação.

É preciso discutir as noções erradas de machismo, sexualidade, virilidade, poder e outros tabus - falsas noções aprendidas, repetidas e repassadas ano após ano. Aprende-se primeiro em casa, é certo, mas a discussão deve prosseguir em qualquer idade nas escolas, nas igrejas, nos locais de trabalho, de convivência social ou de lazer, mas a base de qualquer ensinamento sobre o respeito devido a qualquer pessoa se dá pelo exemplo, em casa e na família. Atos de racismo, machismo, preconceito, violência e exclusão sob o  manto de "brincadeirinhas" ou "joguinhos" nunca são só brincadeiras. Cabe a uma sociedade que se pretende "evoluída" ser vigilante, atenta, ética, justa e agir de forma íntegra, de cara limpa e consciência tranquila. É vital colocar-se no lugar do outro e isso não é empatia. É mais que isso, é compaixão, é saber-se parte integrante do todo.

Para concluir, meus respeitos à esposa e às filhas de Cuca, pela generosidade mostrada no episódio. Não dá para desculpar, admito, mas Cuca comportou-se, agora, como um homem de fato. Quantos podem olhar para trás e reconhecer os erros cometidos? Antes de ser um treinador, ele também é um SER HUMANO, esposo, pai, avô, tio e filho de alguém. Isso deveria significar alguma coisa!

Referências

https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/casagrande/2024/03/11/cuca-fez-um-discurso-historico-para-o-futebol-brasileiro.htm  https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2024/03/10/cuca-diz-querer-ajudar-na-luta-contra-violencia-a-mulher-podem-me-cobrar.htm

https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2024/03/10/cuca-faz-depoimento-inesperado-forte-historico-e-comovente.htm

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Ecos Urbanos | A natureza não tem culpa

Enchentes no RS, 2024. Divulgação
Neste momento, tenho comigo uma mistura de sentimentos: tristeza diante do desastre climático que se abateu sobre o Rio Grande do Sul; alegria por ver a solidariedade das pessoas; indignação por ver os oportunistas se aproveitando da dor alheia, os negacionistas de plantão divulgando mentiras deslavadas e notícias falsas, e por ver os roubos surreais que temos visto acontecer. 
 
Tenho também algumas certezas: esses e outros eventos climáticos extremos não são fatos isolados; o mundo mudou, o clima mudou e tais acontecimentos serão cada vez mais recorrentes; as pessoas sem noção ou compaixão que têm coragem de roubar ou desviar recursos numa hora dessas não têm qualificação; há a necessidade imperiosa de mudanças na fiscalização, no planejamento e na implantação das nossas áreas urbanas.  Mas a maior certeza é que grande parte dos políticos deve, urgentemente, mudar seu foco e suas prioridades. Quem se candidata a algum cargo público, seja ele qual for e em nível for, deve reler os filósofos (Platão e Aristóteles em especial) e, por princípio, desejar e buscar o bem comum, servindo às pessoas, às cidades, e não a si próprio e aos “seus”. 
 

Dizem que grandes absurdos não conseguem ser expressos por palavras e como estou perplexa e  triste, cedo a palavra ao querido amigo Carlos Sá, de Sobradinho, no Distrito Federal, com seu artigo Sem Choro Nem Vela, escrito há mais de dez anos para o jornal O Nosso e que será reeditado na edição de junho. Palavras proféticas e terríveis. Tristes trópicos, como disse quase profeticamente o antropólogo Claude Lévy-Strauss (1908-2009).

 Sem choro nem vela (Carlos Sá*)

 “Terra és o mais bonito dos planetas, estão te maltratando por dinheiro, tu que és a nave nossa irmã”  (O sal da Terra - Beto Guedes e Ronaldo Bastos).

Num antigo artigo que escrevi para O Nosso, há mais de dez anos, eu dizia que as mudanças climáticas vieram pra ficar. Agora, diante dos eventos que vemos e vimos acompanhando, posso dizer que além de se tornarem coisas corriqueiras no nosso dia a dia, elas deverão se intensificar.

Escrevo essas linhas enquanto todos acompanhamos, pela TV, a tragédia que se abate sobre o Rio Grande do Sul, um estado que, há pouco tempo, experimentou secas fora do padrão usual e agora está literalmente debaixo d’água.

Como diz uma velha e sábia tia, Deus perdoa sempre; o ser humano, às vezes; mas a Natureza, nunca. Nesses tempos estamos experimentando a conta que está sendo cobrada pelo nosso desrespeito e arrogância em nos acharmos donos do planeta, não respeitando suas leis e seu destino.

Por isso, diante desses tempos devemos começar a nos adaptar aos dias que virão, com muita sabedoria e calma, procurando mostrar, aos que ainda duvidam dessas mudanças, que o tempo da cobrança já chegou e vai continuar. Quem não aprende por bem, por mal aprenderá. Essa é a lei e contra ela não tem choro nem vela.

*Carlos Sá é jornalista e colaborador do boletim O Nosso, da Fraternidade Eclética Espiritualista Universal (FEEU), Brasília. (E-mail: carlitos.way@uol.com.br)


Jardins de chuva. Divulgação

No entanto, sempre há algo que podemos fazer, como indivíduos, como sociedade e como poder público, sobretudo no nível local: priorizar o ser humano e o coletivo, ajudar, informar-se nos lugares certos, aprender, modificar hábitos e atitudes cotidianas, alterar a legislação, parar o desmatamento, respeitar as leis ambientais, criar sistemas sustentáveis para escoamento e reaproveitamento das águas pluviais, utilizar pisos drenantes, diminuir a impermeabilização das cidades e das nossas casas, reabrir córregos canalizados, criar corredores verdes, parques lineares, cidades-esponja, parques alagáveis, jardins de chuva, enfim, respeitar a mãe Terra.

Referências

Ghisleni, Camilla. "Enchentes no Rio Grande do Sul: a tragédia das cidades não resilientes". 13 Mai 2024. ArchDaily Brasil. Disponível em <https://www.archdaily.com.br/br/1016391/enchentes-no-sul-do-brasil-a-tragedia-das-cidades-nao-resilientes>. Acessado 14 Mai 2024. ISSN 0719-8906

https://anitadimarco.blogspot.com/2021/05/ecos-urbanos-jardins-de-chuva.html

https://www.archdaily.com.br/br/01-166572/parque-manancial-de-aguas-pluviais-slash-turenscape?ad_medium=widget&ad_name=more-from-office-article-show 

https://www.archdaily.com.br/br/1009218/estrategias-urbanas-anti-inundacao-em-cidades-latino-americanas

https://www.archdaily.com.br/br/985555/parque-rachel-de-queiroz-architectus-s-s

https://www.archdaily.com.br/br/991236/parque-linear-do-corrego-grande-ja8-arquitetura-viva

https://www.archdaily.com.br/br/954815/projeto-transforma-espacos-ociosos-em-hortas-urbanas-em-roraima  

https://www.feeu.org/jornalonosso/categories/palavra-do-mestre