sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Ecos Culturais | Uma certa Annita, pioneira na Engenharia

Como várias outras profissões da área de exatas, a engenharia sempre foi considerada muito mais masculina que feminina. Imagino o que as primeiras estudantes desse tipo de curso devem ter sentido, como devem ter sido assediadas, menosprezadas e ridicularizadas. Se, hoje, segunda década do século 21, ainda há tanto preconceito e violência contra mulheres, em geral, em especial contra aquelas que querem estudar, especializar-se, ou que se destacam na profissão... Se ainda há tanta diferença nos salários, preconceito dos próprios colegas, sobretudo para as que alcançam cargos de chefia (exemplos recentíssimos não nos faltam), imagino o que deve ter sido no início do século 20. Aliás, nem consigo. Só de pensar nisso, já fico com o estômago revirado. 

Mas por que o assunto? Bem, porque há tempos, em um almoço com minha querida amiga arquiteta Isaré, conversando sobre nomes e sobrenomes, ela me disse que eu tinha uma xará com sobrenome famoso: Annita Dubugras, avó de seu companheiro Carlos. Conversamos sobre o pioneirismo e a criatividade daquela Annita e pensamos em fazer algo a respeito - uma pesquisa, uma homenagem, uma exposição, mas o assunto não evoluiu. 


Há pouco tempo,  ela me enviou o link de um artigo que homenageia as primeiras engenheiras brasileiras e, dentre elas, Annita Mackay Dubrugras Marx (1892-1951), engenheira civil formada em 1920. O texto parabeniza as pioneiras na área formadas a partir de 1917 pela Escola Polythecnica da Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ), no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Sua escolha pela Polythecnica, no Rio e não em São Paulo, se deu porque o pai era  professor desta última e ele não queria que dissessem que ele era o motivo de sua filha lá estudar.
 Pintura em cerâmica de Annita Dubugras.
Mas quem era o pai de Annita? Minha xará era filha de Victor Dubugras (1868-1933), arquiteto francês radicado no Rio de Janeiro, que lecionou na Escola Politécnica de São Paulo e realizou obras que marcaram a nossa história, como a Ladeira da Memória, na capital paulista, e a Estação Ferroviária da cidade de Mairinque, São Paulo, precursora da arquitetura moderna brasileira. Aliás, a historiadora Luciana Cláudia de Souza, de Campanha, e eu fizemos, há alguns anos, uma pesquisa e um artigo discutindo a semelhança entre essa estação e a Estação Ferroviária de Varginha-MG. O artigo foi enviado ao I Seminário Docomomo de Uberlândia-MG, em 2010.
Considerada a filha predileta, segundo Lucy D.Marx, filha de Annita e neta de Victor Dubugras, como era comum na época a jovem Annita foi apresentada aos trabalhos manuais: tricô, crochê, bordado e pintura em cerâmica, entre outras artes.


Com relação à sua entrada na universidade, os jornais destacaram a surpresa inicial pela presença de uma mulher nos corredores da Poli: “Nas Escolas de Direito e differentes estudos da de Medicina o apparecimento de uma alunna é já trivial. As advogadas, médicas, pharmaceuticas, dentistas já formam legião. Mas uma Polytechnica ?”  
Querem saber como os colegas receberam a ousada "Mademoiselle Dubugras"? 
Como papel aceita tudo, dizem os jornais da época que foi recebida "com fidalguia”: “Da única maneira que era de se esperar do cavalheirismo de tão gentis rapazes. Oferecer-lhe-ão no próximo sabbado um bouquet de flores, flores que são a homenagem de rapazes cultos a cultura feminina.”  A legenda da foto ao lado diz: "Mme. Dubugras entrando despreocupadamente na Polythecnica." 

Culta, curiosa e possuidora de enorme biblioteca, cujos livros ela mesma catalogava, Annita era leitora voraz e, com frequência, convidava grupos de amigos para saraus e discussões literárias. Residia na Rua Sergipe, bairro de Higienópolis e era casada com o mineiro de Teófilo Ottoni, Ernani Marx, médico sanitarista formado pela Escola Federal do Rio de Janeiro. 


A engenheira Annita Dubugras assinou vários projetos com o pai, sendo a responsável pela obra de um conjunto arquitetônico, construído na época do  centenário da independência. O trabalho contou com a bela azulejaria de José Wasth Rodrigues: eram três monumentos e pousos do Caminho do Mar, na serra de Paranapiacaba (SP). 
Até ficar grávida da filha Lucy, Annita trabalhou na Prefeitura de São Paulo, mas  só retomou suas atividades profissionais quando a pequena tinha cinco anos. Trabalhou, então, como secretária da Faculdade de Engenharia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sempre em horário compatível "para cuidar da filha”. 


Além de Annita, formada em 1920, o artigo  mencionado destaca várias outras pioneiras dos cursos de Engenharia. Todas merecem nosso aplauso e nossa admiração:  
Edwiges Ma. Becker Hom’meil, a primeira engenheira civil do Brasil, formada em 1917 pela mesma antiga Escola Polythecnica do Rio;   
Iracema da Nóbrega Dias, formada também na Polythécnica-RJ e a primeira professora daquela escola;  
Maria Esther Corrêa Ramalho, formada no início dos anos de 1920, pela mesma escola;     
Iracema Brasiliense, engenheira civil pela Escola de Engenharia de Belo Horizonte, em 1922;   
Anna Fridda Hoffman, engenheira pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo-USP (1928);  
Josephina Pedroso Rosenburg, também engenheira da Politécnica-USP;   
Enedina Alves Marques (1913–1981), paranaense, primeira engenheira civil do Paraná, em 1945, pela Federal do Paraná;  
Ducy Vargas Alves, primeira engenheira pela Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, em 1950.  

Vale um destaque para outra pioneira e bem conhecida dos arquitetos, a jovem Carmem Velasco Portinho (1903-2001), natural de Corumbá (MS). Formada pela Politécnica-RJ, em 1925, foi a primeira mulher a ganhar o título de urbanista, além de ser pioneira na defesa dos direitos da mulher. Construiu e administrou o Museu de Arte do Rio de Janeiro, ao lado do marido, o arquiteto Eduardo Affonso Reidy, e criou a Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi). 
Hoje, segundo o CREA - Conselho Federal de Engenharia e Agronomia, o número de engenheiras registradas no sistema passou de 13.772 em 2016 para 19.585 em 2018", pouco mais de 40% de crescimento. O número de profissionais em atividade no Brasil é quase 200.000.  Ainda é pouco, tendo em vista as nossas necessidades. De qualquer forma, apesar do  preconceito, dissimulado ou não, existente até hoje, só podemos cumprimentar essas precursoras que, com coragem e persistência, quebraram (quebram) barreiras e venceram (vencem) preconceitos não só nessa, mas em todas as demais áreas profissionais. Um orgulho e um exemplo para todas as mulheres!

Aliás, não quis deixar para março esta postagem, em especial no Dia Internacional da Mulher, porque acredito que, como em várias outras datas comemorativas, gratidão, respeito, admiração e homenagens devem ser percebidas como naturais, através de nossas atitudes cotidianas.    

Referências
Documentos, fotos e conversas com familiares (Isaura Regina, Carlos Eduardo e Lucy Dubugras Marx).

6 comentários:

  1. Muito interessante. Não sabia desse preconceito contra engenheiras.

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    1. Olá! Sim, o preconceito existia e continua existindo, por isso a luta deve continuar, sempre. Obrigada por participar e, da próxima, deixe seu nome do corpo da mensagem, ok? Abraços

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  2. Obrigado Anita, por nos trazer esses fatos tão interessantes!

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  3. Obrigada por estar sempre aqui, Daniel. Victor Dubugras era um ícone para os arquitetos e fiquei muito surpresa da existência dessa Annita!!!! Vivendo e aprendendo, sempre. Abraços

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  4. Muito bonita a homenagem feita à minha avó, dentre outras homenageadas. Apesar de não tê-la conhecido, pois faleceu um ano antes de eu vir ao mundo, acabei ganhando o nome que ela havia proposto para a primeira neta: Amarilis. Parabéns pela sua pesquisa, Anita, e pela interessante apresentação!!!
    Amarilis

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    1. Lindo nome, Amarilis! Um passarinho me contou que sua mãe Lucy teve 7 filhos e você é a segunda, ou seja, Annita teria 7 netos. Interessante é que tenho livro de seu bisavô Dubugras, conhecia parte do trabalho dele,como disse no texto, mas nunca havia pensado na vida pessoal dele, fora do aspecto profissional. Acabamos pensando nas pessoas em uma só dimensão, como se o ser humano não fosse multifacetado, não? Muito obrigada pelo comentário e pela leitura. Grande abraço.
      Anita

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