domingo, 4 de outubro de 2020

Ecos Humanos | Os novos tempos (Parte 1/2)

Não gosto do termo “novo normal”. A propósito, em termos de normalidade, o velho normal não tinha nada. Estávamos habituados a certo estilo de vida, é verdade. Mas daí a chamar de normal a situação econômica predatória e cumulativa, de miséria e fome de tantos, de avidez e consumo desenfreado, de discursos de ódio, narrativas fantasiosas e desrespeito ao meio ambiente...vai uma distância enorme, apesar de alguns ainda insistirem no normal de antes. Basta lembrar do normal citado por Euclides da Cunha, em Os Sertões, ao presenciar os mortos caindo à sua frente: “a vida normal seguia na sua anormalidade”. Ou a tal da "normose", doença causada por comportamentos "normais" de uma sociedade", como diziam Pierre Weil, Leloup, Crema e Hermógenes.

Tudo já mudou: as relações familiares, as profissionais, as econômicas, os processos educacionais, seja no ensino ou na aprendizagem, o efeito da pandemia nas diferentes áreas do conhecimento humano...tudo foi alterado, para o bem ou para o mal. Nunca se falou tanto das mesmas obras literárias e de autores abordando pandemias - Saramago, Proust, Gabriel Garcia Marquez, Dante. Nunca se viu tantas transmissões ao vivo ou “lives”. Com o distanciamento social, abriu-se uma nova janela, uma oportunidade para a transmissão online de seminários (ou webinários), cursos, shows, aulas ao vivo de qualquer tema: psicologia, saúde, doenças, música, arte, valores, história, filosofia, política, yoga, meditação, tradução, literatura, culinária etc. Assuntos não faltam, gente interessante, também não. Até de Feiras Literárias pudemos participar, como a excelente FLISS-Festa Literária de São Sebastião-SP, totalmente virtual em promoção do Instituto Mpumalanga.

Nunca se falou tanto da necessidade de aquietar-se e ler poesia...de João Cabral, a Drummond e Fernando Pessoa, e livros infantis...de Monteiro Lobato a Clarice Lispector. Nunca se falou tanto em ouvir música relaxante ou música clássica. O objetivo é fazer o indivíduo distanciar-se, ao menos um pouco, da enxurrada de notícias sobre a pandemia e sobre os desencontros dos governos, levando o indivíduo para dentro de si mesmo, fugindo da sensação de ser engolido pela pesada energia que nos rodeia, neste momento. Sim, saber o que acontece é importante, porque nossa vida não é segmentada e as notícias fazem parte dela, ao menos, para nos fazer refletir sobre as causas e as sequelas do Corona vírus nos milhões de infectados, sobre a morte de um milhão de seres humanos até outubro de 2020, no mundo todo, dos quais perto de 150.000 só no Brasil.  

No entanto, depois desse violento chacoalhão mundial, talvez seja mais importante despertar e refletir sobre o que nos trouxe até aqui, analisar como temos agido ao longo do tempo, como tem sido nossa relação com o outro, com o meio ambiente e quais têm sido nossas prioridades. É preciso pensar em um novo modelo de gestão da vida humana e dos recursos naturais do planeta, sob pena de sermos responsáveis pela nossa própria extinção. Sim, porque a Terra se refaz, ela não precisa de nós. Nós é que precisamos dela. Mas para gerar frutos, essa reflexão exige uma reavaliação de nossos processos e formas de ser e agir. Caso contrário, de nada adianta. Autoconhecimento é, e sempre foi, ferramenta vital para inclusão, respeito e desenvolvimento conjunto.

Sem dúvida, com a pandemia, uma nova forma de viver, trabalhar e se relacionar já começou e com vantagens. Algumas constatações óbvias: a rápida migração de muitas atividades para plataformas virtuais, o avanço da tecnologia ou o desenvolvimento acelerado das pesquisas científicas.

Mais que isso: o uso da máscara protetiva física fez cair a máscara de muitos e de muitas relações baseadas no conformismo e nas aparências; esconder a hipocrisia ficou mais difícil; trabalhar de casa não provoca perda de produtividade - (ao contrário), diminui o estresse causado pela perda de tempo no transporte e nos deslocamentos e revelou a importância de um ambiente doméstico acolhedor e de qualidade. Por outro lado, o estresse emocional é visível, sobretudo entre os jovens. Afinal, somos seres sociáveis, precisamos do contato uns com os outros.  

No campo educacional, por exemplo, professores dizem que nunca trabalharam tanto, mas nem por isso os alunos tiveram melhor rendimento, muito menos os da escola pública, e a desigualdade, que já era gritante, tornou-se escancaradamente cruel.  A evasão escolar aumentou a níveis nunca vistos. O mesmo ocorreu, lamentavelmente, com a violência doméstica contra mulheres e crianças. A escola pública, bem ou mal, representava essa rede de proteção, alimentação e apoio. Como a escola e seu significado foram pensados durante a pandemia? Como serão repensados depois? O fato é que a pandemia, como uma lanterna certeira, iluminou o caos do velho normal. Só não vê quem não quer.

Continua....

8 comentários:

  1. Anita brilhante em suas reflexões como sempre! Acho que virão muitos estudos sociológicos e psicológicos sobre as consequências dessa pandemia... As escolas estão fazendo muita falta na vida das crianças e refletindo muito na vida e carreira dos pais. Força para nós todos nesse enfrentamento. Beijos virtuais. Roberta

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    1. Sem dúvida, é tudo novo e muito virá daí. Obrigada e força, aí, querida, não podemos nos esquecer de que somos privilegiados. beijo grande

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  2. Realmente não haverá um único normal daqui pra frente, já que vivemos em um planeta com quase 8 bilhões de pessoas ( Brasil - 220 milhões). Há espaço para uma variedade grande de comportamentos, mas algo realmente já mudou. Tudo que você mencionou é verdade e com certeza a longo prazo hábitos novos se estabelecerão definitivamente e o novo normal será absorvido e novas atitudes serão introduzidas.

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  3. Anita querida
    O texto da Mafalda me emocionou, este do novo normal está excelente. Tudo superlativo!

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    1. Estela, você não assinou, mas sei que é você...Mafalda me emociona a cada dia... Leio e releio sem parar. ela me dá coragem de enfrentar e não me acomodar... Um beijo e obrigada

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  4. Anitinha!belo texto.Vamos esperar nova vida,talvez novos conceitos mas,espero que pra melhor.Bebel

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