terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Ecos Literários | Mia Couto

Imagem: divulgação

Certa vez, li uma vez uma frase do escritor italiano Italo Calvino que me marcou. Ele afirmava que nunca se deve dizer “li um clássico”, porque, na verdade, os clássicos devem ser relidos várias vezes, já que novas camadas de entendimento surgem a cada releitura... Um desses autores clássicos é, sem dúvida, Mia Couto e, de antemão, peço desculpas aos leitores que não gostam de textos longos. Não dá para falar pouco desse monstro da literatura. Mia Couto (António Emílio Leite Couto), que testou positivo para Covid-19 em janeiro último (ver aqui), nasceu na cidade de Beira, Mocambique, em 1955, e é autor de mais de 30 livros, ganhador de muitos prêmios, dentre eles o conceituado Prêmio Camões e, talvez, o autor de língua portuguesa mais traduzido no mundo.

Sobre sua literatura, o autor sempre menciona em entrevistas que sua inspiração na poesia e na prosa vem do seu contato com a terra, com o povo, raízes, mitos e tradições de uma África profunda, com a qual se identifica e escuta. Vem da valorização de coisas que importam e se traduz em narrativas ricas de neologismos - “palavras que dizem o que nenhuma outra consegue dizer” - e de um forte caráter de oralidade. Admite que sua prosa poética tem a influência do escritor angolano Luandino Vieira que, inspirado por Guimarães Rosa, apresentou-lhe o autor de Grande Sertão: Veredas, ou seja, ainda que por triangulação, Couto foi influenciado pela prosa poética de Rosa. Além deles, cita como influência decisiva João Cabral de Mello Neto, e ainda Carlos Drummond, Chico Buarque, Caetano, Gil e o português Fernando Pessoa. Precisa mais? 

Lembra que foi educado não como escritor, mas como pessoa, como alguém que pode e deve enfrentar seus medos, ler a vida e olhar para coisas que parecem sem valor. A escrita só veio depois, mas surgiu naturalmente a partir de suas vivências e reflexões.  Reforça que a literatura humaniza e que gosta de contar histórias, através das quais enfrenta suas fragilidades e procura criar um mundo sem racismo e preconceitos de qualquer natureza.

Viveu parte da infância em situações políticas extremas: na ditadura salazarista em Portugal, no período colonial de Moçambique e durante a guerra civil do país, nos anos de 1980. Depois de dois anos cursando Medicina em Maputo, abandona o curso para dedicar-se à militância pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e trabalhar como jornalista, atividade que exerceu de 1976 a 1985. Nesse meio tempo,  publica seu primeiro livro de poesias Raiz de orvalho (1983). Depois da independência do país (1975), vivenciou os 16 anos de guerra civil (1976-92), na disputa entre os dois partidos: Frelimo (socialista) e Renamo (capitalista). Em tese, o autor diz que não é possível escrever sobre a guerra, porque toda fala parece ínfima diante da realidade de quem vive uma guerra. Mas com a guerra civil em seu país, recorreu à escrita para sobreviver e não sucumbir, pois os amigos mortos no conflito surgiam como fantasmas e a escrita revelou-se uma forma de conversar com eles. Assim surgiu Terra Sonâmbula (1992), seu primeiro romance, no qual revela os horrores da guerra no país, o cotidiano, os conflitos, os sonhos, a esperança e a luta para sobreviver naquela terra sonâmbula, porque sem paz. Foi considerado um dos melhores livros africanos do século XX.

Mais tarde, retorna à universidade, cursa Biologia e dedica-se à Ecologia. Além de escritor, hoje é professor universitário e sócio de uma empresa de consultoria ambiental, fundada em Moçambique em 1998. Diz que a Biologia o ensinou a entender outras linguagens da vida, como a fala das árvores e a dos que não falam. Em entrevista dada ao jornal El País, em 2019 (1), fala da importância e dos ensinamentos da literatura, como a necessidade de diálogo, da aceitação do diferente, ou “dos outros”, um tema cada dia mais atual:  

 ...”os outros” — essa invenção da política de hoje, que é quase preparatória do fascismo— não são meus inimigos A literatura lembra a importância do diálogo. Nós chegamos a essa conclusão em Moçambique depois de uma guerra civil que começou com a diabolização do outro, até o ponto em que eu não falava com determinada pessoa só porque ela era de outro partido. Dezesseis anos e um milhão de mortos depois, a gente viu que teríamos que conversar.

 Por ser africano, culturalmente falando diz sentir-se mais mulato que branco e, por isso, ao construir um personagem ele surge negro. Sobre temas como racismo, machismo e preconceito, esclarece que (2)

...Talvez Agualusa e eu, por exemplo, tenhamos sido injustamente promovidos porque somos brancos ou porque somos homens. Se isso aconteceu, tenho que tirar partido no sentido oposto. Por exemplo, eu e minha família criamos uma Fundação para promover a literatura entre jovens moçambicanos —e quando digo moçambicanos, automaticamente estou a dizer negros— e ajudá-los a publicar seus livros e construir espaços de debate literário.

Em carta (3) dirigida ao então Presidente americano George Bush, em 2003, após elencar uma série de motivos explicitando porque o mundo odeia os Estados Unidos, Mia Couto conclui com uma frase épica:  Nós, os povos dos países pequenos, temos uma arma de construção massiva: a capacidade de pensar.

Para convidar o leitor a ler mais Mia Couto, deixo aqui algumas frases que traduzem o pensamento desse grande escritor que honra a raça humana:

 - Estou disponível para aprender e rever a mim próprio, porque o que fiz já não conta, conta o que tenho ainda a fazer. 

- A África está presente no Brasil de maneira que os próprios brasileiros não identificam. 

- Uma cidade é feita, sobretudo, de pessoas.

Seu mais recente trabalho, a trilogia As Areias do Imperador (Mulheres de Cinza, Sobras da Água e O Bebedor de Horizontes), visita um tempo passado, ou melhor vários tempos passados, vários conflitos, várias histórias e várias vozes. Salienta que é preciso parar de usar termos no singular – como história, memória, esquecimento e passado. Diz que a história contada pelos vencedores é sempre diferente da dos vencidos e, portanto, há que se registrar a existência de diversos e múltiplos passados, memórias e esquecimentos.

Sobre aprendizados, com voz calma e tranquila, Mia Couto deixa(4) um grande ensinamento, ao comentar a situação socioeconômica de Moçambique, com poucas livrarias, poucos leitores e grande número de analfabetos:  

[...]. Os escritores pensam sempre que são muito importantes, que o mundo depende do que eles estão fazendo.  Aqui tu aprendes que não é tão importante, porque o universo dos que leem é tão pequeno, o livro circula em áreas tão pequeninas que é uma espécie de aprendizagem de humildade que faz bem. 

Para terminar, o belo poema “Espelho” do livro Idades, Cidades, Divindades. Profético e sensível, ele identificou aquela estranha sensação que, um dia, todos terão: de não se reconhecerem na imagem refletida, já que a imagem é incapaz de revelar a multiplicidade de cada um.

Espelho

Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

 Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.

Notas e Referências

1 e 2: El País https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/18/cultura/1555598858_754829.html
3. Carta a George Bush: http://www.macua.org/miacouto/CartaMiaCouto.htm
4. Cultura Genial: https://www.culturagenial.com/mia-couto/
https://www.miacouto.org/
https://www.cmc.com.br/feiradolivro2017/conteudos/697/
http://www.macua.org/miacouto/CartaMiaCouto.htm

https://hojemacau.com.mo/2021/01/21/escritor-mia-couto-testa-positivo-a-covid-19-e-apela-ao-cumprimento-de-medidas-de-prevencao/