Além de um corpo
técnico competente, interessado e disposto a atuar de forma eficaz para pensar
e aplicar soluções para os problemas urbanos e de suas populações, já mencionei aqui a importância que curiosidade e discernimento têm para os gestores
públicos. Afinal, como hoje mais de 80% da população brasileira vivem em
cidades, é fundamental criar ambientes agradáveis para todos, o que inclui não
só construir novas unidades habitacionais (sempre em déficit), mas também melhorar as já
existentes, urbanizar locais mal estruturados, prestar assistência técnica à autoconstrução,
providenciar mais e melhores serviços de saúde e educação, espaços públicos,
segurança etc. Ou seja, nada além do que se espera de bons gestores públicos e bons profissionais.
Bons no sentido mais amplo do termo.
Mas hoje vou
falar de uma prática de desenho urbano e permacultura, algo bastante simples que pode
solucionar vários problemas ao mesmo tempo. São os chamados jardins de chuva, adotados
em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Nova York, Sidney entre outras. Fáceis de fazer, são práticas que melhoram
o desenho, o aspecto e a saúde das cidades. São canteiros um
pouco abaixo do nível da calçada, irrigados com água de chuva e, portanto, economizam água, pois dispensam as regas. Através de aberturas no meio
fio, captam a água de chuva, diminuem a enxurrada na região, deixam o solo urbano mais permeável, alimentam o lençol freático, aumentam a
umidade do ar pela transpiração das plantas e melhoram o microclima: em
regiões secas, ajudam a trazer o verde e a umidade de volta e, em locais
úmidos, a reduzir enchentes. A paisagem urbana fica mais agradável, mais leve, mais verde e com mais pássaros.
Com muitos
exemplos, a ideia pode ser adotada por qualquer prefeitura em rotatórias,
calçadas, esquinas, canteiros centrais, parques, estacionamentos etc. Basta observar o caminho das águas da chuva e criar jardins em seu
percurso ou direcioná-las para encher poços no chão.
Eu
gostaria de pedir que todo novo fazendeiro comece desta forma. Tome conta do
solo e da água e, por favor, parem de cortar árvores! Plante quantas árvores
conseguir, para que seu solo sobreviva.” – Zephaniah Phiri
Masek
A origem dos jardins de chuva remonta ao africano Zephaniah Phiri Maseko
(1927-2015), “o homem que plantava chuva”. Sua técnica bem-sucedida foi aprimorada e aplicada em vários lugares. Abaixo, o vídeo 1 (16 min.),“The Rainwater Harvester”, publicado em julho de 2013, está em inglês sem legenda, mas é de fácil
entendimento. Mostra a experiência de Phiri Maseko ao lidar com o solo semiárido
do Zimbábue e sua descoberta de como “plantar chuva” (rainwater harvesting - RWH), fazendo com que a água se fixasse no solo através
de mudanças de inclinação no terreno, construção de fossos, poços, caminhos e
plantio de várias espécies de plantas que absorvem a água (uma técnica chamada esponja viva). Maseko direcionava a água só com a ação da gravidade. Assim, ele recuperou o verde em sua área, ajudou os vizinhos a fazerem o mesmo, divulgou sua
técnica para o mundo através da ONG Zvishavane Water Projecte recebeu homenagem especial da
National Geographic pelo seu trabalho criativo de ação local proteção ao meio
ambiente.
O vídeo 2 (17 min.), Plantando a chuva para obter abundância, publicado em 06 março de 2017 pela TED Talks,
mostra o permacultor Brad Lancaster contando como conheceu o trabalho de Maseko. Através dessa técnica, transformou completamente
um bairro em Tucson, região semiárida do Arizona, nos
Estados Unidos. A prática modificou não só a paisagem, mas o uso da rua e a convivência
entre os moradores, diminuindo os índices locais de violência. Hoje a criação de
jardins de chuva na abertura de vias é lei em Tucson.
Leaves are called leaves because
we are supposed toleave them! - Brad
Lancaster
Uma frase bem criativa em inglês,
mas sem essa graça quando traduzida. No contexto, poderia ser entendida assim: Deixe
as folhas serem folhas, elas viram adubo!
Nunca tive muito jeito para trabalhos manuais.
Já tentei de tudo - aquarela, crochê, macramê, tricô e até costura. Quando conseguia,
fazia tudo em dobro – uma peça para mim, outra para minha irmã: dois vestidos
(costura), 2 bolsas (macramê), dois cachecóis (tricô) e dois tapetinhos
(crochê). Ah, gostei de fazer fotografias (na época dos laboratórios e das viragens) e gostei de trabalhar com mosaico (olhem a herança italiana falando): bandejas caixinhas, mas nunca passei disso. Desisti. Minhas mãos não foram feitas para isso.
Ah, sim, também bordei um pouco, mas só ponto-cruz, nada muito avançado. Até
criança faz isso, não é? Era o que eu pensava até descobrir
grupos de bordadeiras pelo mundo afora. Mas, com o tempo, descobri que gosto
mesmo é de escrever. Sou da arte, sim, das fotos, da cultura, da história, mas sobretudo da pena, do teclado, da letra. Por isso vou lhes contar
uma linda história, uma história que tem a ver com bordados.
Descobri um grupo de bordadeiras por meio da
arquiteta Maria Alice Rosmaninho, querida amiga da época da FAU-USP e mãe do
Luba, motivo principal de sua entrada no grupo. Em 2001, Maria Alice chorava
(chorei com ela) a perda do então filho único, quando Ronan, amigo de Luba,
pediu à sua mãe Rioko, bordadeira, que a convidasse para o grupo de bordados.
Começava ali uma cena que se repete há 20 anos: reuniões semanais para ler,
ouvir, tecer e contar histórias, através de bordados. Teia de Aranha é o
nome do grupo e não por acaso: junta o sentido de trabalho manual da aranha e
arte da sustentação.
Eu olho para trás e vejo muito mais que 20 anos, me vejo sentada em volta
de uma fogueira, ouvindo alguém contar, contar histórias das mais variadas.”– Maria Alice
O bordado foi a fagulha para a criação de uma bela
teia e uma sólida amizade. Rioko convidou algumas mulheres para bordar um painel que serviria de cenário para um evento cultural em Lisboa – Elisa Almeida e Dora Guimarães iriam narrar trechos
de Grande Sertão: Veredas. As mulheres toparam e nunca mais pararam. Juntaram-se (juntam-se) e inspiravam-se (inspiram-se) na literatura de grandes nomes como Guimarães
Rosa, Mia Couto e Euclides da Cunha, no contar histórias; criavam (criam) e bordavam (bordam) bandeiras,
painéis, bordados afetivos, cenários para
eventos culturais em vários lugares, como em Cordisburgo no sertão de Minas, em
outros sertões e cidades do país, além de oferecer oficinas e estimular a formação
de outros grupos de bordadeiras. Afinal, a roda, a conversa, a troca entre mulheres é ancestral e um poderoso símbolo arquetípico. Aqui, fica registrada a memória dessas bordadeiras.
Em 2021, o Teia de Aranha comemora 20 anos de
existência. Durante todo o ano serão feitas algumas transmissões ao vivo, pelo youTube, com
temas específicos, sempre ligados aos bordados e à literatura. A primeira
aconteceu em abril, com o depoimento das nove integrantes: Rioco Kayano, Maria Cristina Ferreira, Érika D'Almeida, Edmara
Rodrigues, Maria Alice Rosmaninho, Nívea Scarpinella, Tia Anna da Silva, Elizabeth Ziani
e Cláudia Soares. Os depoimentos são tocantes e me fizeram
chorar em vários momentos, o que – convenhamos – não é muito difícil. Todas
falam de como a trama da vida foi reunindo e fortalecendo o grupo, a partir desses encontros semanais de convivência, aprendizado e resistência. Na prática,
elas leem, discutem e decidem o que bordar, a cor, o ponto, mas acima de tudo,
praticam e aperfeiçoam a arte da troca, da escuta, unindo o pensar, o fazer, o sentir, o
respeitar o tempo e o jeito do outro. Criaram uma imensa teia de fios, laços,
afetos e convivência; um grupo coeso de apoio, cumplicidade, confiança,
amorosidade e alegria.
Juntas, ao longo de duas décadas, essas
aranhas choraram e riram, se descobriram, se reconheceram, se solidarizaram,
buscando soluções coletivas. Elas construíam e se desconstruíam, bordavam e
remendavam seus corações, machucados por dores e tropeços da vida. Através desses
encontros, a arte manual do bordado, tão antiga e presente na vida de nossas
avós e ancestrais, era resgatada e se transformava, naquela roda, em ponto de
apoio real para o encontro e a troca.
A partir da transmissão do Grupo Teia de Aranha: da prosa ao bordado, reuni algumas falas do depoimento dessas
mulheres admiráveis e fortes:
“No
princípio era a ideia e a ideia se fez ação – a ideia era fazer um encontro, um
vínculo de afeto entre as pessoas.... Peguei carona com um mensageiro numa
cauda de cometa para ver uma estrada bem bonita. O mensageiro se chama Ronan e
esse cometa se chama Rioko”. – Maria Cristina
... “Se
fosse possível sair fora do corpo e observar aquelas mulheres ali na casa da
Maria Alice, que semanalmente, nesses quase 20 anos, nos recebe (e onde a gente
se sente indescritivelmente abraçada), [veríamos que], na verdade, essas
mulheres estão falando de si, acolhendo umas às outras e se expondo...numa
interação fundamental; é aí que elas se alimentam”. – Érika
“A vida
não é um novelo, é um emaranhado de fios, de coisas complicadas, vínculos
interrompidos, abolidos, transformados, memórias e esse esteio - que é o grupo - nos fortalece em todos os momentos”.–Edmara
“Comemorar é lembrar junto, parar, olhar para
trás e ver o que foi vivido conjuntamente, com coragem e delicadeza [...]
Ouve-se alguém chorando, forte, forte, como não havia chorado ainda e choraria
por 20 anos seguidos. Era eu. É o que vejo, quando olho para trás. Depois disso, vejo a construção da
teia, do grupo, do apoio...[...] As dores são minhas, mas enfrentadas por todos
os membros do grupo. Vejo a solidariedade” [...].” – Maria Alice
“Bordar é como
uma meditação em movimento, que me sustentou em vários períodos, porque foi
compartilhado por outras. [...] A vida é um emaranhado de fios e bordando, vamos tecendo os fios infindáveis
dessa grande mandala que é a própria vida.” – Rioko
“Quando falei que
não sabia bordar, Rioko me disse – 'Bordar não é saber fazer os pontos, é
colocar a linha na agulha, a agulha no pano e, então, você vai soltando, deixando fluir o
que sente'... Comecei e não parei mais. Nessa teia estão todas as nossas alegrias e todas as nossas
tristezas... Essa teia se sustenta e nos sustenta”. – Nívea
“Sempre fui
alegre, mas quando encontrei esse grupo, encontrei ainda mais alegria para
viver[...] Bordar é a coisa mais importante para mim, principalmente quando
estamos todas juntas”.– Tia Anna (89 anos)
“No início, fui convocada a
bordar a canoa de Riobaldo e Diadorim... entrei nessa canoa e aqui estou. O que
aprendi em especial, nesses 20 anos, é a respeitar o tempo do outro, a escuta, a
fala, o como falar...Levo isso comigo na vida, na profissão e minha vivência é
sempre estruturada na Literatura, no bordado e na memória. [...] Bordar é
compartilhar silêncios; é resistir.” – Beth Ziani
“Elas me
ensinaram que a vida dói sim, dói muito, mas nesses momentos de dor, devemos fazer como
as aranhas - tecer suas teias, ter coragem de ser radicalmente vivas... e isso a
gente consegue através do encontro.” – Cláudia Soares
Para encerrar, Tia Anna, a mais velha do grupo,
cantou lindamente a alegre vinheta do Teia de Aranha: Uma
andorinha só não faz verão... Verão que uma andorinha SÓ não faz verão... A música foi composta por Tia Dita (já falecida), irmã de tia Anna.
Vinheta: Andorinha, no CD: No Raias da Aurora
Em tempos de individualismo, de materialismo e consumismo exacerbado esse grupo emociona
e inspira, mergulha no território do sentir e do acolher. Mulheres admiráveis, que resistem, dão e recebem afeto e
amor em torno da arte do bordado. Talvez, nesse mundo tão louco, tão fútil e globalizado,
algumas dessas antigas tradições, como o bordado, ainda possam ser repensadas e
recuperadas. Parabéns e
vida longa ao grupo Teia de Aranha!