terça-feira, 18 de maio de 2021

Ecos Humanos | Bordando a Teia da Vida

Nunca tive muito jeito para trabalhos manuais. Já tentei de tudo - aquarela, crochê, macramê, tricô e até costura. Quando conseguia, fazia tudo em dobro – uma peça para mim, outra para minha irmã: dois vestidos (costura), 2 bolsas (macramê), dois cachecóis (tricô) e dois tapetinhos (crochê). Ah, gostei de fazer fotografias (na época dos laboratórios e das viragens) e gostei de trabalhar com mosaico (olhem a herança italiana falando): bandejas  caixinhas, mas nunca passei disso. Desisti. Minhas mãos não foram feitas para isso. Ah, sim, também bordei um pouco, mas só ponto-cruz, nada muito avançado. Até criança faz isso, não é? Era o que eu pensava até descobrir grupos de bordadeiras pelo mundo afora. Mas, com o tempo, descobri que gosto mesmo é de escrever. Sou da arte, sim, das fotos, da cultura, da história, mas sobretudo da pena, do teclado, da letra. Por isso vou lhes contar uma linda história, uma história que tem a ver com bordados.

Descobri um grupo de bordadeiras por meio da arquiteta Maria Alice Rosmaninho, querida amiga da época da FAU-USP e mãe do Luba, motivo principal de sua entrada no grupo. Em 2001, Maria Alice chorava (chorei com ela) a perda do então filho único, quando Ronan, amigo de Luba, pediu à sua mãe Rioko, bordadeira, que a convidasse para o grupo de bordados. Começava ali uma cena que se repete há 20 anos: reuniões semanais para ler, ouvir, tecer e contar histórias, através de bordados. Teia de Aranha é o nome do grupo e não por acaso: junta o sentido de trabalho manual da aranha e arte da sustentação.

 

Eu olho para trás e vejo muito mais que 20 anos, me vejo sentada em volta de uma fogueira, ouvindo alguém contar, contar histórias das mais variadas.” – Maria Alice

O bordado foi a fagulha para a criação de uma bela teia e uma sólida amizade. Rioko convidou algumas mulheres para bordar um painel que serviria de cenário para um evento cultural em Lisboa – Elisa Almeida e Dora Guimarães iriam narrar trechos de Grande Sertão: Veredas. As mulheres toparam e nunca mais pararam. Juntaram-se (juntam-se) e inspiravam-se (inspiram-se) na literatura de grandes nomes como Guimarães Rosa, Mia Couto e Euclides da Cunha, no contar histórias; criavam (criam) e bordavam (bordam) bandeiras, painéis, bordados afetivos, cenários para eventos culturais em vários lugares, como em Cordisburgo no sertão de Minas, em outros sertões e cidades do país, além de oferecer oficinas e estimular a formação de outros grupos de bordadeiras. Afinal, a roda, a conversa, a troca entre mulheres é ancestral e um poderoso símbolo arquetípico. Aqui, fica registrada a memória dessas bordadeiras. 

Em 2021, o Teia de Aranha comemora 20 anos de existência. Durante todo o ano serão feitas algumas transmissões ao vivo, pelo youTube, com temas específicos, sempre ligados aos bordados e à literatura. A primeira aconteceu em abril, com o depoimento das nove integrantes: Rioco Kayano, Maria Cristina Ferreira, Érika D'Almeida, Edmara Rodrigues, Maria Alice Rosmaninho, Nívea Scarpinella, Tia Anna da Silva, Elizabeth Ziani e Cláudia Soares. Os depoimentos são tocantes e me fizeram chorar em vários momentos, o que – convenhamos – não é muito difícil. Todas falam de como a trama da vida foi reunindo e fortalecendo o grupo, a partir desses encontros semanais de convivência, aprendizado e resistência. Na prática, elas leem, discutem e decidem o que bordar, a cor, o ponto, mas acima de tudo, praticam e aperfeiçoam a arte da troca, da escuta, unindo o pensar, o fazer, o sentir, o respeitar o tempo e o jeito do outro. Criaram uma imensa teia de fios, laços, afetos e convivência; um grupo coeso de apoio, cumplicidade, confiança, amorosidade e alegria.

Juntas, ao longo de duas décadas, essas aranhas choraram e riram, se descobriram, se reconheceram, se solidarizaram, buscando soluções coletivas. Elas construíam e se desconstruíam, bordavam e remendavam seus corações, machucados por dores e tropeços da vida. Através desses encontros, a arte manual do bordado, tão antiga e presente na vida de nossas avós e ancestrais, era resgatada e se transformava, naquela roda, em ponto de apoio real para o encontro e a troca.   

 
A partir da transmissão do Grupo Teia de Aranha: da prosa ao bordado, reuni algumas falas do depoimento dessas mulheres admiráveis e fortes:

No princípio era a ideia e a ideia se fez ação – a ideia era fazer um encontro, um vínculo de afeto entre as pessoas.... Peguei carona com um mensageiro numa cauda de cometa para ver uma estrada bem bonita. O mensageiro se chama Ronan e esse cometa se chama Rioko”. – Maria Cristina

... “Se fosse possível sair fora do corpo e observar aquelas mulheres ali na casa da Maria Alice, que semanalmente, nesses quase 20 anos, nos recebe (e onde a gente se sente indescritivelmente abraçada), [veríamos que], na verdade, essas mulheres estão falando de si, acolhendo umas às outras e se expondo...numa interação fundamental; é aí que elas se alimentam”. – Érika

A vida não é um novelo, é um emaranhado de fios, de coisas complicadas, vínculos interrompidos, abolidos, transformados, memórias e esse esteio - que é o grupo - nos fortalece em todos os momentos”.     Edmara

 “Comemorar é lembrar junto, parar, olhar para trás e ver o que foi vivido conjuntamente, com coragem e delicadeza [...] Ouve-se alguém chorando, forte, forte, como não havia chorado ainda e choraria por 20 anos seguidos. Era eu.  É o que vejo, quando olho para trás. Depois disso, vejo a construção da teia, do grupo, do apoio...[...] As dores são minhas, mas enfrentadas por todos os membros do grupo. Vejo a solidariedade” [...].” – Maria Alice

“Bordar é como uma meditação em movimento, que me sustentou em vários períodos, porque foi compartilhado por outras. [...] A vida é um emaranhado de fios e bordando, vamos tecendo os fios infindáveis dessa grande mandala que é a própria vida.” – Rioko

“Quando falei que não sabia bordar, Rioko me disse – 'Bordar não é saber fazer os pontos, é colocar a linha na agulha, a agulha no pano e, então, você vai soltando, deixando fluir o que sente'... Comecei e não parei mais. Nessa teia estão todas as nossas alegrias e todas as nossas tristezas... Essa teia se sustenta e nos sustenta”. – Nívea

“Sempre fui alegre, mas quando encontrei esse grupo, encontrei ainda mais alegria para viver[...] Bordar é a coisa mais importante para mim, principalmente quando estamos todas juntas”.   – Tia Anna (89 anos)  

“No início, fui convocada a bordar a canoa de Riobaldo e Diadorim... entrei nessa canoa e aqui estou. O que aprendi em especial, nesses 20 anos, é a respeitar o tempo do outro, a escuta, a fala, o como falar...Levo isso comigo na vida, na profissão e minha vivência é sempre estruturada na Literatura, no bordado e na memória. [...] Bordar é compartilhar silêncios; é resistir.” – Beth Ziani

“Elas me ensinaram que a vida dói sim, dói muito, mas nesses momentos de dor, devemos fazer como as aranhas - tecer suas teias, ter coragem de ser radicalmente vivas... e isso a gente consegue através do encontro.” – Cláudia Soares

Para encerrar, Tia Anna, a mais velha do grupo, cantou lindamente a alegre vinheta do Teia de Aranha:  Uma andorinha só não faz verão... Verão que uma andorinha SÓ não faz verão...  A música foi composta por Tia Dita (já falecida), irmã de tia Anna.

 
Vinheta: Andorinha, no CD: No Raias da Aurora

Em tempos de individualismo, de materialismo e consumismo exacerbado  esse grupo emociona e inspira, mergulha no território do sentir e do acolher. Mulheres admiráveis, que resistem, dão e recebem afeto e amor em torno da arte do bordado. Talvez, nesse mundo tão louco, tão fútil e globalizado, algumas dessas antigas tradições, como o bordado, ainda possam ser repensadas e recuperadas.  Parabéns e vida longa ao grupo Teia de Aranha!

 Referências

http://grupoteiadearanha.blogspot.com/  

https://www.youtube.com/channel/UCnMRPfQuxy_hqoWwy2FH6bw 

https://www.youtube.com/watch?v=UrPfOsxxdgA

23 comentários:

  1. Agora depois de ler seu texto quem chorou fui eu . É muito emocionante ��. Que lindo bordado , me fez viajar no passado , minha avó bordava divinamente, e bordava histórias lindas no tecido . ....chorei

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    1. Oi, Mara, anime-se e crie um grupo de bordados por aí. Lindas histórias vão surgir, tenho certeza... bjs e obrigada

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  2. Como você disse, esse tipo de encontro é ancestral. Mulheres, quando descansam, carregam pedras. Com prazer.

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  3. Ah... que combinação divina, arte manual e literatura. É muito emocionante ver mulheres se juntando, se fortalecendo, curando suas feridas através da união e da arte.
    Parabéns querida, como sempre texto rico, simples e reflexivo.
    Rosimara

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    1. Obrigada, querida, pela leitura atenta e pela presença, beijos

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  4. Texto rico em conteúdo. Bom seria Anita se agora, em 2021,muitos de nós tivéssemos a sensibilidade de construir essas teias, olhando para o outro, com generosidade e respeito. Parabéns. Ao ler seus textos é como visualizar os acontecimentos narrados. Beijos

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    1. Concordo com você. É o que falta - respeito e generosidade. Obrigada pelo comentário, mas da próxima vez deixe seu nome, senão não sei quem é. Volte sempre, abraços

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  5. Que texto lindo querida! Ahhh como queria ter uma Teia de Aranha pra me.acolher aqui do outro lado do mundo ! Me identifiquei com você amiga, com relacao as habilidades manuais, parece q tenho duas maos esquerdas hehehe. Saudade beijos

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    1. Uma teia de afetos, né? Estendo minha teia até aí, sempre que quiser estou por aqui, meu bem. Ligue...bjs

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  6. Muito lindo! Tanto seu texto quanto essa vivência coletiva em volta da arte, tendo a arte como fonte, veio, centro... Um beijo

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  7. Vi recentemente no Face da Monica Salmaso ela abrindo uma caixa que um grupo de trabalhos de bordadeiras fizeram a propósito de sua série de vídeos "Ô de casa". Ela se emociona e quem vê a emoção dela vai junto nessa viagem. Muito lindo tudo isso num planeta tão cheio de conflitos.
    abs. Carlos SA

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  8. Meu Deus, segurar essa emoção não é fácil...
    Cada um desses depoimentos vou levar comigo, voltando talvez muitas vezes a esse texto.
    Parabéns a todas.
    Um abraço pra você, Anita.

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  9. Maria Cristina Haddad19 de maio de 2021 às 17:38

    Que lindo seu texto Anita. Captou muito bem a alma da Teia. Arrasou na arte de escrever!

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  10. Que bonito Anitinha!Você definiu bem sobre a arte da Alma da Teia.
    Minha abordava muito bem com gosto e com alma.Eu!só aprecio.Bjo Bebel.

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  11. Lembrei de uma poesia de Cora Coralina, Colcha de retalhos. Lindo o seu texto.

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  12. Chorei muito, Anita. Ficou muito sensível sua apreciação sobre as relações entre as bordadeiras. Conseguiu pescar preciosidades nas falas de cada uma . Estou admirada, de fato. Disse tudo nossa amiga Cris Haddad, aí acima, e outros comentários também, elogiando sua habilidade. Parabéns. Quero aproveitar para divulgar a próxima live, no sábado, 22/05, às 16:00 h. Estou publicando como anônimo porque já é a 4a. tentativa de enviar pelo endereço alumni e dá erro. Bj Maria Alice Rosmaninho

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    1. A proposta do grupo, a troca, a arte, o trabalho e a afetividade só merecem aplausos. Tudo isso merece também ser divulgado para gerar outros frutos por aí. Beijos

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  13. Chorei muito, Anita. Ficou muito sensível sua apreciação sobre as relações entre as bordadeiras. Conseguiu pescar preciosidades nas falas de cada uma . Estou admirada, de fato. Disse tudo nossa amiga Cris Haddad, aí acima, e outros comentários também, elogiando sua habilidade. Parabéns. Quero aproveitar para divulgar a próxima live, no sábado, 22/05, às 16:00 h. Bj Maria Alice Rosmaninho

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  14. Ouvir um relato tão lindo sobre a Teia de alguém que não conheço tem outro sabor, me emocionei ao rememorar nossas emoções e sentir as emoções de outras pessoas.Obrigada, Anita e M.Alice

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    1. Rioko, sua mão na condução da teia está presente desde a criação do grupo. Impossível não admirá-la pela força, pela forma de enfrentar seus problemas com coragem, de peito aberto e com o apoio dessa teia maravilhosa. Força, sempre! Um beijo

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  15. Que história linda…emocionante…digna de filme. Imagino às lágrimas que rolaram no seu rosto maravilhado com os depoimentos…

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