Nunca tive muito jeito para trabalhos manuais. Já tentei de tudo - aquarela, crochê, macramê, tricô e até costura. Quando conseguia, fazia tudo em dobro – uma peça para mim, outra para minha irmã: dois vestidos (costura), 2 bolsas (macramê), dois cachecóis (tricô) e dois tapetinhos (crochê). Ah, gostei de fazer fotografias (na época dos laboratórios e das viragens) e gostei de trabalhar com mosaico (olhem a herança italiana falando): bandejas caixinhas, mas nunca passei disso. Desisti. Minhas mãos não foram feitas para isso. Ah, sim, também bordei um pouco, mas só ponto-cruz, nada muito avançado. Até criança faz isso, não é? Era o que eu pensava até descobrir grupos de bordadeiras pelo mundo afora. Mas, com o tempo, descobri que gosto mesmo é de escrever. Sou da arte, sim, das fotos, da cultura, da história, mas sobretudo da pena, do teclado, da letra. Por isso vou lhes contar uma linda história, uma história que tem a ver com bordados.
Descobri um grupo de bordadeiras por meio da arquiteta Maria Alice Rosmaninho, querida amiga da época da FAU-USP e mãe do Luba, motivo principal de sua entrada no grupo. Em 2001, Maria Alice chorava (chorei com ela) a perda do então filho único, quando Ronan, amigo de Luba, pediu à sua mãe Rioko, bordadeira, que a convidasse para o grupo de bordados. Começava ali uma cena que se repete há 20 anos: reuniões semanais para ler, ouvir, tecer e contar histórias, através de bordados. Teia de Aranha é o nome do grupo e não por acaso: junta o sentido de trabalho manual da aranha e arte da sustentação.
Eu olho para trás e vejo muito mais que 20 anos, me vejo sentada em volta de uma fogueira, ouvindo alguém contar, contar histórias das mais variadas.” – Maria Alice
O bordado foi a fagulha para a criação de uma bela
teia e uma sólida amizade. Rioko convidou algumas mulheres para bordar um painel que serviria de cenário para um evento cultural em Lisboa – Elisa Almeida e Dora Guimarães iriam narrar trechos
de Grande Sertão: Veredas. As mulheres toparam e nunca mais pararam. Juntaram-se (juntam-se) e inspiravam-se (inspiram-se) na literatura de grandes nomes como Guimarães
Rosa, Mia Couto e Euclides da Cunha, no contar histórias; criavam (criam) e bordavam (bordam) bandeiras,
painéis, bordados afetivos, cenários para
eventos culturais em vários lugares, como em Cordisburgo no sertão de Minas, em
outros sertões e cidades do país, além de oferecer oficinas e estimular a formação
de outros grupos de bordadeiras. Afinal, a roda, a conversa, a troca entre mulheres é ancestral e um poderoso símbolo arquetípico. Aqui, fica registrada a memória dessas bordadeiras.
Em 2021, o Teia de Aranha comemora 20 anos de existência. Durante todo o ano serão feitas algumas transmissões ao vivo, pelo youTube, com temas específicos, sempre ligados aos bordados e à literatura. A primeira aconteceu em abril, com o depoimento das nove integrantes: Rioco Kayano, Maria Cristina Ferreira, Érika D'Almeida, Edmara Rodrigues, Maria Alice Rosmaninho, Nívea Scarpinella, Tia Anna da Silva, Elizabeth Ziani e Cláudia Soares. Os depoimentos são tocantes e me fizeram chorar em vários momentos, o que – convenhamos – não é muito difícil. Todas falam de como a trama da vida foi reunindo e fortalecendo o grupo, a partir desses encontros semanais de convivência, aprendizado e resistência. Na prática, elas leem, discutem e decidem o que bordar, a cor, o ponto, mas acima de tudo, praticam e aperfeiçoam a arte da troca, da escuta, unindo o pensar, o fazer, o sentir, o respeitar o tempo e o jeito do outro. Criaram uma imensa teia de fios, laços, afetos e convivência; um grupo coeso de apoio, cumplicidade, confiança, amorosidade e alegria.
Juntas, ao longo de duas décadas, essas aranhas choraram e riram, se descobriram, se reconheceram, se solidarizaram, buscando soluções coletivas. Elas construíam e se desconstruíam, bordavam e remendavam seus corações, machucados por dores e tropeços da vida. Através desses encontros, a arte manual do bordado, tão antiga e presente na vida de nossas avós e ancestrais, era resgatada e se transformava, naquela roda, em ponto de apoio real para o encontro e a troca.
“No princípio era a ideia e a ideia se fez ação – a ideia era fazer um encontro, um vínculo de afeto entre as pessoas.... Peguei carona com um mensageiro numa cauda de cometa para ver uma estrada bem bonita. O mensageiro se chama Ronan e esse cometa se chama Rioko”. – Maria Cristina
... “Se fosse possível sair fora do corpo e observar aquelas mulheres ali na casa da Maria Alice, que semanalmente, nesses quase 20 anos, nos recebe (e onde a gente se sente indescritivelmente abraçada), [veríamos que], na verdade, essas mulheres estão falando de si, acolhendo umas às outras e se expondo...numa interação fundamental; é aí que elas se alimentam”. – Érika
“A vida não é um novelo, é um emaranhado de fios, de coisas complicadas, vínculos interrompidos, abolidos, transformados, memórias e esse esteio - que é o grupo - nos fortalece em todos os momentos”. – Edmara
“Comemorar é lembrar junto, parar, olhar para trás e ver o que foi vivido conjuntamente, com coragem e delicadeza [...] Ouve-se alguém chorando, forte, forte, como não havia chorado ainda e choraria por 20 anos seguidos. Era eu. É o que vejo, quando olho para trás. Depois disso, vejo a construção da teia, do grupo, do apoio...[...] As dores são minhas, mas enfrentadas por todos os membros do grupo. Vejo a solidariedade” [...].” – Maria Alice
“Bordar é como uma meditação em movimento, que me sustentou em vários períodos, porque foi compartilhado por outras. [...] A vida é um emaranhado de fios e bordando, vamos tecendo os fios infindáveis dessa grande mandala que é a própria vida.” – Rioko
“Quando falei que não sabia bordar, Rioko me disse – 'Bordar não é saber fazer os pontos, é colocar a linha na agulha, a agulha no pano e, então, você vai soltando, deixando fluir o que sente'... Comecei e não parei mais. Nessa teia estão todas as nossas alegrias e todas as nossas tristezas... Essa teia se sustenta e nos sustenta”. – Nívea
“Sempre fui alegre, mas quando encontrei esse grupo, encontrei ainda mais alegria para viver[...] Bordar é a coisa mais importante para mim, principalmente quando estamos todas juntas”. – Tia Anna (89 anos)
“No início, fui convocada a bordar a canoa de Riobaldo e Diadorim... entrei nessa canoa e aqui estou. O que aprendi em especial, nesses 20 anos, é a respeitar o tempo do outro, a escuta, a fala, o como falar...Levo isso comigo na vida, na profissão e minha vivência é sempre estruturada na Literatura, no bordado e na memória. [...] Bordar é compartilhar silêncios; é resistir.” – Beth Ziani
“Elas me ensinaram que a vida dói sim, dói muito, mas nesses momentos de dor, devemos fazer como as aranhas - tecer suas teias, ter coragem de ser radicalmente vivas... e isso a gente consegue através do encontro.” – Cláudia Soares
Para encerrar, Tia Anna, a mais velha do grupo, cantou lindamente a alegre vinheta do Teia de Aranha: Uma andorinha só não faz verão... Verão que uma andorinha SÓ não faz verão... A música foi composta por Tia Dita (já falecida), irmã de tia Anna.
Em tempos de individualismo, de materialismo e consumismo exacerbado esse grupo emociona e inspira, mergulha no território do sentir e do acolher. Mulheres admiráveis, que resistem, dão e recebem afeto e amor em torno da arte do bordado. Talvez, nesse mundo tão louco, tão fútil e globalizado, algumas dessas antigas tradições, como o bordado, ainda possam ser repensadas e recuperadas. Parabéns e vida longa ao grupo Teia de Aranha!
Referências
http://grupoteiadearanha.blogspot.com/
https://www.youtube.com/channel/UCnMRPfQuxy_hqoWwy2FH6bwhttps://www.youtube.com/watch?v=UrPfOsxxdgA
Agora depois de ler seu texto quem chorou fui eu . É muito emocionante ��. Que lindo bordado , me fez viajar no passado , minha avó bordava divinamente, e bordava histórias lindas no tecido . ....chorei
ResponderExcluirOi, Mara, anime-se e crie um grupo de bordados por aí. Lindas histórias vão surgir, tenho certeza... bjs e obrigada
ExcluirComo você disse, esse tipo de encontro é ancestral. Mulheres, quando descansam, carregam pedras. Com prazer.
ResponderExcluirAh... que combinação divina, arte manual e literatura. É muito emocionante ver mulheres se juntando, se fortalecendo, curando suas feridas através da união e da arte.
ResponderExcluirParabéns querida, como sempre texto rico, simples e reflexivo.
Rosimara
Obrigada, querida, pela leitura atenta e pela presença, beijos
ExcluirTexto rico em conteúdo. Bom seria Anita se agora, em 2021,muitos de nós tivéssemos a sensibilidade de construir essas teias, olhando para o outro, com generosidade e respeito. Parabéns. Ao ler seus textos é como visualizar os acontecimentos narrados. Beijos
ResponderExcluirConcordo com você. É o que falta - respeito e generosidade. Obrigada pelo comentário, mas da próxima vez deixe seu nome, senão não sei quem é. Volte sempre, abraços
ExcluirQue texto lindo querida! Ahhh como queria ter uma Teia de Aranha pra me.acolher aqui do outro lado do mundo ! Me identifiquei com você amiga, com relacao as habilidades manuais, parece q tenho duas maos esquerdas hehehe. Saudade beijos
ResponderExcluirUma teia de afetos, né? Estendo minha teia até aí, sempre que quiser estou por aqui, meu bem. Ligue...bjs
ExcluirMuito lindo! Tanto seu texto quanto essa vivência coletiva em volta da arte, tendo a arte como fonte, veio, centro... Um beijo
ResponderExcluirVi recentemente no Face da Monica Salmaso ela abrindo uma caixa que um grupo de trabalhos de bordadeiras fizeram a propósito de sua série de vídeos "Ô de casa". Ela se emociona e quem vê a emoção dela vai junto nessa viagem. Muito lindo tudo isso num planeta tão cheio de conflitos.
ResponderExcluirabs. Carlos SA
Meu Deus, segurar essa emoção não é fácil...
ResponderExcluirCada um desses depoimentos vou levar comigo, voltando talvez muitas vezes a esse texto.
Parabéns a todas.
Um abraço pra você, Anita.
Que lindo seu texto Anita. Captou muito bem a alma da Teia. Arrasou na arte de escrever!
ResponderExcluirObrigada, Cris, mas foi o grupo que me inspirou. Beijos
ExcluirQue bonito Anitinha!Você definiu bem sobre a arte da Alma da Teia.
ResponderExcluirMinha abordava muito bem com gosto e com alma.Eu!só aprecio.Bjo Bebel.
Lembrei de uma poesia de Cora Coralina, Colcha de retalhos. Lindo o seu texto.
ResponderExcluirChorei muito, Anita. Ficou muito sensível sua apreciação sobre as relações entre as bordadeiras. Conseguiu pescar preciosidades nas falas de cada uma . Estou admirada, de fato. Disse tudo nossa amiga Cris Haddad, aí acima, e outros comentários também, elogiando sua habilidade. Parabéns. Quero aproveitar para divulgar a próxima live, no sábado, 22/05, às 16:00 h. Estou publicando como anônimo porque já é a 4a. tentativa de enviar pelo endereço alumni e dá erro. Bj Maria Alice Rosmaninho
ResponderExcluirA proposta do grupo, a troca, a arte, o trabalho e a afetividade só merecem aplausos. Tudo isso merece também ser divulgado para gerar outros frutos por aí. Beijos
ExcluirChorei muito, Anita. Ficou muito sensível sua apreciação sobre as relações entre as bordadeiras. Conseguiu pescar preciosidades nas falas de cada uma . Estou admirada, de fato. Disse tudo nossa amiga Cris Haddad, aí acima, e outros comentários também, elogiando sua habilidade. Parabéns. Quero aproveitar para divulgar a próxima live, no sábado, 22/05, às 16:00 h. Bj Maria Alice Rosmaninho
ResponderExcluirOuvir um relato tão lindo sobre a Teia de alguém que não conheço tem outro sabor, me emocionei ao rememorar nossas emoções e sentir as emoções de outras pessoas.Obrigada, Anita e M.Alice
ResponderExcluirRioko, sua mão na condução da teia está presente desde a criação do grupo. Impossível não admirá-la pela força, pela forma de enfrentar seus problemas com coragem, de peito aberto e com o apoio dessa teia maravilhosa. Força, sempre! Um beijo
ExcluirSim
ResponderExcluirQue história linda…emocionante…digna de filme. Imagino às lágrimas que rolaram no seu rosto maravilhado com os depoimentos…
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