quarta-feira, 23 de junho de 2021

Ecos Arquitetônicos | Fatos & Fotos P&B

Os "fatos" do título referem-se aos eventos que deram origem a uma exposição de "fotos" em P&B, realizada há 10 anos em Varginha, mas não divulgada aqui no blog Anita Plural que, na época, estava adormecido. O que não se percebe: um novo olhar sobre o Teatro Capitólio - Fotografia Autoral teve projeto, curadoria, fotos e texto de Anita Di Marco e Vanessa CTReis e marcou a reabertura do teatro municipal da cidade, em maio de 2011, após um período de importantes obras de recuperação e modernização tecnológica (2008 a 2011). 

A decisão de fazer uma grande intervenção para recuperar o teatro e resolver de forma definitiva o problema estrutural do telhado se deu na gestão (2001-2008) do ex-prefeito Mauro Tadeu Teixeira (1953-2010) e a conclusão, na gestão de Eduardo Carvalho (2009-2012). Na época, éramos conselheiras do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Varginha-CODEPAC, órgão presidido na época pela querida Vera Lúcia Pereira (1942-2020), tia Vera, que nos deixou há pouco. Outro apoio significativo veio de Renato Sérgio Alves e, depois, Paula Andrea Direne Ribeiro, presidentes da Fundação Cultural, órgão ao qual estavam submetidos tanto o teatro quanto o CODEPAC. 

Painel de 1,50 x 0,50 m, com fotos das autoras, afixado no foyer do Teatro Capitólio.

A partir das discussões ali realizadas, decidiu-se que a exposição seria uma forma de divulgar aquele bem tombado e detalhes de sua história mais recente: a firme e corajosa decisão de fechar o teatro, por segurança, em função do mau estado do madeiramento do telhado e a longa sequência de ações necessárias, refletidas e tecnicamente embasadas, após consultas a especialistas, como por exemplo, ao engenheiro acústico José Augusto Nepomuceno, consultor para o projeto da Sala São Paulo. Assim, procedeu-se a um trabalho sério de recuperação de um bem tombado: diagnóstico, reflexão, destelhamento, cinta de amarração em concreto das paredes, instalação de estrutura metálica do telhado e telhas termoacústicas (após consulta técnica ao especialista mencionado), burocracia, editais, licitações, detalhes, reuniões, decisões, busca de mais recursos, aquisição de novas poltronas e cortinas, equipamento de luz, som e cenotecnia, e muito empenho da equipe, além do uso consciencioso da verba pública. 

Foto Vanessa CTReis, 2011

Desde a inauguração, em 1927, o teatro viveu momentos de alegria, fausto e decadência. O tempo, porém, é inexorável; sem um uso adequado e uma manutenção constante, qualquer imóvel se deteriora: o edifício foi desativado, no início dos anos 1980, passou por uma reforma e voltou ao uso habitual. Mais tarde, no início dos anos 2000, a falta da manutenção regular trouxe a pesada conta: a estrutura de madeira do telhado, totalmente tomada por cupins, exigiu o fechamento do teatro em 2004.

Um longo e nobre caminho foi percorrido: do desejo de recuperá-lo, do desalento com os inúmeros percalços surgidos no caminho, do empenho incessante para obtenção de fundos, à alegria e à emoção com sua recuperação e modernização, em 2011. (Do texto de abertura da exposição).  
 
Fotografávamos - Vanessa e eu - quando a segurança e a luz permitiam e, por meio de nossas lentes, procurávamos trazer à luz detalhes não observados pelo olhar apressado do observador. Além de marcar a retomada das atividades do teatro, era preciso chamar a atenção do público para um fato bem comum, mas nem por isso positivo: o olhar acostumado que não mais percebe, que não mais se encanta, nem se assombra. Porque, se refletirmos um pouco, quase tudo que está no nosso cotidiano – objetos, edificações e até pessoas – deixa de ser percebido em sua riqueza de detalhes e potencialidade e acaba virando pano de fundo invisível. Por isso, queríamos fotografar e destacar detalhes que passam despercebidos, para que a população pudesse olhar o teatro com outros olhos, um olhar atento, cuidadoso e aberto em relação ao ambiente que nos cerca (e às pessoas), um olhar de quem se encanta, ama e cuida.

Então, arquitetura e fotografia deram-se as mãos para apostar na transformação do olhar a partir da releitura do edifício, por meio de detalhes, vistos pelas lentes de uma máquina fotográfica. Um circuito que liga objeto arquitetônico, olhar, memória e cidade. (Do texto de abertura da exposição).   

Detalhes: foto Anita Di Marco

Todos os documentos internacionais ligados ao patrimônio cultural afirmam que o desejo de acolher e cuidar só surge em relação àqueles espaços/objetos com os quais nos identificamos. Se não nos encantamos, nem nos apropriamos não há cuidado. Se pararmos para pensar, a arquitetura nos rodeia e nos acolhe dede que nascemos – casa, escola, templos, equipamentos de saúde, lazer, cultura, parques. Com seus espaços vazios e construídos, a arquitetura conforma nossa casa maior, a nossa cidade. Por isso, talvez  seja a mais comum e também a menos percebida e valorizada das artes. Assim, quando cuidamos de nossos edifícios, dos espaços vazios, públicos e da paisagem urbana, estamos cuidando das nossas cidades. Era o nosso objetivo: instigar, despertar, fazer lembrar, para que o teatro fosse, uma vez mais, olhado com surpresa, apropriado e cuidado pela comunidade, extrapolando esse olhar e esse cuidar do edifício para a cidade.

A exposição O que não se percebe: um novo olhar sobre o Theatro Capitólio teve duas montagens: no próprio foyer Aurélia Rubião, permanecendo aberta por um mês - o que era um recorde para a época, já que, em geral, o tempo de permanência é de uma semana. Mas tanto trabalho pedia mais tempo. E conseguimos! Foram expostas 148 fotografias no total, entre as dimensões 20x30 cm e 20x15 cm, mais o painel presente no foyer de 150x50 cm. Em versão reduzida, a segunda montagem foi na Regional de Saúde do Estado, em Varginha. Pela reação e retorno do público à exposição, conseguimos que as pessoas olhassem e percebessem o que não mais percebiam. O velho teatro, na época com quase 85 anos, estava renovado. Hoje, em 2021, 10 anos depois, este texto vem registrar e resgatar a história do teatro e da cidade, para que ela não se perca. 

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Ecos Humanos | A banalização do mal

Pitágoras, Heráclito, Sócrates, Platão, Aristóteles, Confúcio, Lao-Tsé, Avicena, Santo Agostinho, Ibn Arabi, Kant, Thomas More, Descartes, Rousseau, Spinoza, Voltaire, Nietzsche, Hegel, Hume, Dewe, Simone de Beauvoir, Arendt, Bauman, Chomsky...   
 
Platão e Aristóteles, na obra Escola de Atenas, 1509, de Rafael de Sanzio (detalhe)
 
Dos antigos aos contemporâneos, a filosofia e os filósofos sempre me atraíram. Já mencionei as aulas dessa disciplina no Ensino Médio, quando o ensino das escolas públicas era bom, antes da reforma do início dos anos 1970. Sim, sinto-me privilegiada. Aprendi muito. Anos depois, um ano de Filosofia na USP me estimulou a prosseguir, mas não era o momento (Leia Mitologia, filosofia e o ócio criativo). A filosofia sempre me instigou a coordenar o pensar, a tentar me compreender e entender melhor o mundo a partir do pensamento crítico. Nos últimos tempos, tudo parece tão absurdo que só mesmo a filosofia para nos salvar.

 Ao reforçar um ensino passivo e desestimular o pensamento crítico, a reforma da década de 1970, desde a exclusão da filosofia do currículo escolar e depois de outras disciplinas, parece ter causado certo afrouxamento do exercício da reflexão além de lacunas históricas essenciais à elaboração de conceitos. Some-se a isso a globalização e seus filhos tortos (o individualismo e a falsa questão da meritocracia) e está feito um caldo de cultura que afeta a formação e o pensamento crítico de gerações.

Como sociedade, estamos carentes da bagagem, da sustentação teórica e da dimensão histórica que a filosofia nos oferece (e também a história, claro) para termos condições de criar uma base sólida para refletir sobre questões maiores, analisar, compreender, argumentar e assumir posições de forma autônoma e fundamentada diante das mais diversas situações. Sem essa base, seremos usados como massa de manobra que segue mecanicamente a direção (e o interesse individual) de outros. Por mais difícil que seja, é sempre melhor ser uma única voz consciente na multidão, do que alguém sem voz ou que repete o refrão da massa.

Hannah Arendt. Divulgação

Uma das teóricas que talvez melhor tenha entendido o efeito perverso da ausência do pensar foi a filósofa e professora alemã, naturalizada americana, Hannah Arendt (1906-1975). Em seu livro Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal (1963), Arendt filosofou sobre os porquês da ação ou inação dos indivíduos diante de uma situação. Como correspondente da revista The New Yorker, em 1961, Arendt foi a Jerusalém cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann, por crimes de genocídio contra o povo judeu. O relato do que viu foi a base do livro. Para ela, o réu assumiu obedecer a ordens superiores e, bovinamente, cumpriu o que lhe fora ordenado, sem pestanejar, sem pensar no bem ou no mal que sua ação poderia ocasionar. Ele não refletiu, não filosofou, não questionou moralmente, não avaliou eticamente a ordem e tampouco assumiu sua responsabilidade na ação. Por isso, agiu como agiu, por estar anestesiado, alienado, acomodado, embotado, oco, sem capacidade de pensar, incapaz de se indignar contra aquela ordem absurda. Resultado: Eichmann via aquela ordem perversa como algo normal, trivial. Para Arendt, a ausência do exercício do pensar foi o que permitiu que o mal se transformasse em algo banal.  

O Pensador (1904). Auguste Rodin

O livro originou muitas polêmicas,  mas é um enorme alerta, pois identificou o porquê daquela ação mecânica, automática, num nível muito mais profundo e nefasto do que se imagina. Quando o indivíduo perde a capacidade de se indignar contra qualquer tipo de injustiça, crueldade, violência, preconceito, racismo, oportunismo, miséria, falta de ética e mentira, ele repete a ação de banalizar o mal. Quando, por exemplo, repetimos e passamos adiante mensagens sem comprovação, sem avaliá-las à luz da história e do pensamento crítico, podemos estar ajudando a divulgar dados mentirosos e difamatórios (o que é crime) que destroem reputações e vidas.  

Percebe-se, de novo e sempre, como a capacidade de pensar e filosofar é essencial. E isso é um treino permanente que se desenvolve ao longo do tempo. Por isso, mais uma vez, vale lutar pela volta da Filosofia aos currículos escolares, desde os primeiros anos da educação básica ao ensino superior e além. O conhecimento filosófico é um porto seguro que baliza e dá sustentação ao exercício do pensar, por toda a vida. Como disse o filósofo e educador Mário Sérgio Cortella, "é preciso cuidar da ética, desde cedo, para não cairmos no risco de ter anestesiada nossa consciência e começar a achar que tudo é normal". Não é.   

terça-feira, 8 de junho de 2021

Ecos Literários | Exposição 100 anos de Narizinho

Monteiro Lobato (1882—1948) faz parte da minha vida e deste blog (ver Monteiro Lobato em discussão  e Cem anos da Narizinho de Lobato). Ele é, sem dúvida, um ícone da literatura infantil brasileira. John Milton, tradutor e professor do Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH da USP, diz que também o seria da literatura mundial, se tivesse lançado o livro, à época, também nos Estados Unidos. O fato é que o primeiro livro de literatura infantil de Lobato, “A Menina do Narizinho Arrebitado”, foi lançado no Brasil há 100 anos, em dezembro de 1920, com 43 páginas e desenhos de Voltolino, pseudônimo de João Paulo Lemmo Lemmi, conhecido ilustrador da época.

Centenária, a obra conquistou gerações e continua conquistando e brincando com a imaginação dos leitores. Sua obra despertou meu interesse por mitologia, literatura, geografia e pelo conhecimento em geral. O autor, desde cedo, buscava afirmar nossas raízes e criticava a imitação do que vinha de fora. Mas, há alguns anos, sua obra começou a ser questionada sob a alegação de que o escritor tinha atitudes racistas. Mais do que nunca, o momento é propício à divulgação das novas e excelentes pesquisas a respeito do autor e de sua obra. De modo geral, essas pesquisas destacam que a crítica vem de quem não leu a obra em sua totalidade nem a contextualizou. Polêmicas à parte, o livro centenário é (não só ele, mas também a obra lobatiana em geral), inegavelmente, um marco na nossa literatura infantil.

Para comemorar os 100 anos do livro, a exposição virtual Uma Menina Centenária. 100 anos de Narizinho Arrebitado  foi montada na incrível (como projeto de arquitetura e como conteúdo) Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin-BBM, na Cidade Universitária, em São Paulo. Avós, pais, filhos e netos podem se divertir com a mostra. E mais do que se divertir, podem conhecer os passos, a ousadia e o pensamento de Lobato e da época. Um dos seus interlocutores foi ninguém menos que o educador baiano Anísio Teixeira, que inovou no pensamento da escola pública no Brasil e influenciou vários outros educadores (ver aqui). 

Acesse o link e conheça o contexto, as ideias, a criação e os incríveis ilustradores dos personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo com a centenária Narizinho, apelido de Lúcia (neta de Dona Benta e menina dos olhos da tia Nastácia) que era prima de Pedrinho, dona da boneca Emília e ouvinte atenta da espiga de milho mais sábia do mundo, o Visconde de Sabugosa. O último texto da exposição é da pesquisadora Cilza Bignotto que discute os textos da época e rebate as acusações sobre o suposto racismo de Lobato, num período em que, e não só na literatura, a cor negra era associada ao negativo:

O escritor (ML) mudou muitos dos atributos até então associados à pele negra. Tia Nastácia tem voz, sabedoria, e numerosas virtudes. Não porque sua pele seja clara, devido à mestiçagem; pelo contrário, seus traços negros são sempre realçados. (Cilza Bignotto) 

O vídeo Mesa de abertura da exposição virtual mostra a abertura da mostra, com os curadores Gabriela Pellegrino Soares, Magno Silveira e Patricia Raffaini, além de Cilza Bignotto, professora de Literatura Brasileira e Infantojuvenil da Universidade Federal de são Carlos. Outra exposição virtual imperdível nesses tempos estranhos. Todos à exposição!

Para quem quiser mais detalhes da própria obra de Monteiro Lobato, os sites abaixo estão repletos de informações.

Referências

http://ameninacentenaria.bbm.usp.br/

https://monteirolobato.com/ 

https://lobato.com.vc/