quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Ecos Arquitetônicos | Vislumbre de esperança

Arquitetura parece estar em voga, de novo. A retomada do papel da arquitetura para a melhoria das cidades, dos espaços públicos e privados parece estar em alta e as mulheres da área também. Nada mais justo e merecido. Na verdade, já passou da hora desse papel vir à tona.  Mas não se trata de reverenciar uma ou outra estrela da arquitetura, surpreendente autor(a) de obras faraônicas ou megaestruturas. Não! Falo dos arquitetos do dia a dia, preocupados com uma ação projetual refletida, pensada para melhorar a qualidade de vida do outro, seja por meio da habitação, dos espaços comuns privados e públicos, e das cidades em geral. 

Afinal, desde as cavernas, nosso primeiro abrigo, a arquitetura continua abrigando nossas atividades cotidianas: moramos, estudamos, trabalhamos, nos tratamos, fazemos compras, nos divertimos, nos exercitamos e passeamos em espaços construídos (ou naturais), abertos ou não, públicos ou privados.

Arquiteta Nádia Someck. Divulgação

Pela primeira vez, desde sua criação, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-BR) elegeu, no início de 2021, uma mulher: a professora, arquiteta e urbanista Nádia Someck, egressa da FAU-USP e hoje professora da FAU-Mackenzie. Defende uma pauta de inclusão, de diminuição da vulnerabilidade da habitação, moradia para todos, aplicação da lei de Assistência Técnica à Habitação Social (ATHIS), a proteção e uso do patrimônio cultural, a importância do papel social do arquiteto na sociedade, entre outras metas. 

 

Arquiteta Ermínia Maricato. Divulgação

Ermínia Maricato, outra arquiteta, urbanista e professora da FAU-USP, foi a primeira mulher a ganhar a Medalha de Ouro, o prêmio máximo da Federação Pan-americana de Associações de Arquitetos (FPAA). O prêmio inédito, no final de 2020, foi um reconhecimento do trabalho incansável da pesquisadora e ativista incansável em prol da reforma urbana no Brasil e da qualidade de vida das cidades e dos cidadãos. Aliás, o tema, muito discutido na Assembleia Constituinte de 1988, entrou, pela primeira vez, como um capítulo da nossa Constituição Federal. Ermínia também participou da criação do Ministério das Cidades, sendo sua primeira secretária-executiva.

Outras profissionais destacadas pela FPAA foram as arquitetas Dora Monteiro e Silva de Alcântara, defensora da preservação do patrimônio cultural e do ensino da arquitetura brasileira, e Margareth Aparecida Campos S. Pereira, nas áreas dos estudos culturais. O arquiteto Gilson José Paranhos de Paula e Silva foi destacado como referência na área de habitação social e o prêmio Arquiteto das Américas coube ao colega uruguaio Hector Vigliecca, radicado no Brasil há mais de 40 anos e outro grande defensor da habitação popular de qualidade.  

Lina Bo Bardi. Divulgação

Outra arquiteta, em voga há alguns anos é Lina Bo Bardi (1914-1992).  Autora de projetos icônicos como o MASP e o SESC Pompeia, este recém-eleito uma das 25 obras em concreto mais importantes do mundo nos últimos 25 anos, Lina Bo Bardi recebeu, postumamente, o Leão de Ouro da Bienal de Veneza pelo conjunto da obra. Uma bela homenagem, sem dúvida, mas acredito, como tantos outros admiradores de sua obra, que esse prêmio, como qualquer outro, deveria ser dado em vida, sempre. 


SESC Pompeia - Foto: Anita Di Marco

Também egressa da FAU-USP, a professora e pesquisadora Ruth Verde Zein é outra profissional que veio para ficar, chacoalhar conceitos e estruturas cristalizadas, apontar a constante desvalorização das pesquisas realizadas ao sul do Equador e provar seus argumentos com base em dados e números. Autora de inúmeros livros, premiada pela Capes como autora da melhor tese de doutoramento, em 2006, ela recebeu, em julho último, o Bruno Zevi Book Awards 2020, de acordo com o Comitê Internacional de Crítica da Arquitetura – CICA, pelo seu livro Critical Readings. O livro bilíngue, publicado pela Romano Guerra Editora em parceria com a Nhamerica Platform, teve a versão para o inglês assinada por mim e pela tradutora Ann Puntch (in memorian).  

Por fim, o Pritzker 2021, prêmio máximo da arquitetura mundial, foi dado a um casal, Anne Lacaton e Jean Philippe Vassal cuja visão e ação profissional coerente enfatiza que "a arquitetura mais simples deve acolher o habitar e não só o olhar". Na sua prática, é possível identificar uma atuação que prioriza o coletivo, soluções generosas e assertivas. Algumas de suas frases mostram a que vieram: 

Lacaton e Vassal. Divulgação

 “Os edifícios iconográficos como os construídos em cidades como Xangai ou Dubai, que aparecem em revistas, ou os espaços espetaculares, são feitos para ser olhados de fora. São imagens de representação. Arquitetura é outra coisa. É estar dentro. É habitar". 

 "Arquitetura também é um ato político. Devemos manter a ambição do espaço e o prazer de habitar. É preciso integrar este modelo na economia".    

"Não podemos criar espaços que criem constrangimentos. A ideia é encontrar as soluções mais simples. É o grande desafio da arquitetura deste tempo."

 "Devemos ensinar a olhar e refletir. Olhar é a chave da aprendizagem. [...] Ensinamos que é mais importante olhar para a cidade do que para o computador e que é preciso encontrar as suas ideias não a partir da teoria, mas da observação e da reflexão. Ensinamos a coragem de ter opiniões e a liberdade de pensar, de sonhar e de realizar o sonho

"Em primeiro lugar a arquitetura deve ser um ato de generosidade".


Será que podemos apostar em uma mudança do lugar e do papel da arquitetura e do urbanismo na vida das pessoas e nas cidades? Arquitetura e urbanismo, como ciências, parecem estar voltando à sua função primordial:  o objetivo duplo de garantir e zelar pela qualidade tanto do espaço privado de habitar e conviver (a casa e o edifício) como do espaço público de todos (a cidade). Ao que parece, um sopro de renovação e lucidez está surgindo, um vislumbre de esperança!  
 
Referências 

https://expresso.pt/cultura/2016-09-15-Arquitetura-e-um-ato-de-generosidade

https://www.dezeen.com/2021/04/22/jean-philippe-vassal-face-to-face-podcast-interview/

https://www.caubr.gov.br/arquiteta-e-urbanista-nadia-somekh-e-eleita-presidente-do-cau-br/

https://caubr.gov.br/erminia-maricato-e-a-primeira-mulher-a-receber-a-medalha-de-ouro-da-fpaa/

https://vitruvius.com.br/jornal/news/read/3221

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Ecos HUmanos | Deficiências

Vivemos tempos de distanciamento social, mas também de individualismo, intolerância crescente, segregação, negacionismo e meias verdades. Tempos de teorias estapafúrdias, de falta de pensamento crítico e de dimensão histórica, de divórcio da realidade e de um pensamento inclusivo que privilegie o bem comum.  Fala-se muito em mudanças. De horário de trabalho, de casa, de cidade, do indivíduo. A última é a principal, porque pode impactar toda a sociedade. Quando a gente muda, o ambiente muda.

De novo, penso em Gandhi (1869-1948), ao dizer, “é preciso ser a transformação que queremos ver no mundo”. Ou na frase dita há 2000 anos: “Devemos fazer ao outro o que queremos que o outro nos faça”. O que vale é unir sentimento, pensamento, palavra e ação, porque agir é transformar em ato o que está no coração. Isso é coerência. Portanto, não basta perceber a beleza dessas ideias, tampouco decorar os textos sagrados ou fazer lindas orações só com os lábios.  

Sem traduzir essas ideias numa prática concreta e cotidiana, de nada adianta repetir o nome de Deus, Alá, Ishvara, Brahman, ou que for, o tempo todo; de nada adianta fazer o Namastê (gesto das mãos postas) 40 vezes por dia, praticar yoga, ir à igreja, ao templo, ao centro espírita, ao monastério, à sinagoga, à mesquita, seja qual for seu lugar de culto... De nada adianta fazer romarias e peregrinações a locais “sagrados” ou promessas a todos os santos... porque sem a prática, a teoria é só teoria. Sem prática, nossa ação é vã, quando não hipócrita. Por isso, uma vez mais, a literatura vem nos salvar. Desta vez, com a prosa poética de Mário Quintana. 
 
Deficiências
Deficiente é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.
Louco é quem não procura ser feliz com o que possui.
Cego é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria, e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores.
Surdo é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão, pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.
Mudo é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia. 
Paralítico é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda.
Diabético é quem não consegue ser doce. 
Anão é quem não sabe deixar o amor crescer.
E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois...
Miseráveis são todos aqueles que não conseguem falar com Deus. 
Mário Quintana (1906-1994)