quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Ecos Literários | A Carne

A memória é engraçada. Guarda coisas que nem sabíamos e, de repente, algum fato, fala ou imagem dispara algum dispositivo e coisas que estavam lá longe, nos escaninhos mais profundos da nossa mente, vêm à tona. Foi o que ocorreu comigo um dia desses. Participei de um seminário sobre uma tradução para o espanhol do livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, e me lembrei de uma imagem e de uma cena de quando eu era criança, na casa de meus pais. Já mencionei em outro post (Quarto de Despejo na casa da infância) que, quando era criança, havia dois livros em casa que me intrigavam. Um era o de Carolina Maria de Jesus, devidamente comentado; o outro era A Carne, de Júlio Ribeiro. 
 

Como disse no outro post, ambos me pareciam velhos, desbotados e molengas. Pareciam gastos pelo tempo. Além disso, minha imaginação fértil tratou de rotular os dois livros: Quarto de Despejo seria triste (pelo olhar da autora na capa) e o segundo deveria ser proibido lá em casa, por três motivos: pelo próprio nome A Carne, pela capa - uma mulher vestida de vermelho, numa atitude provocante, audaciosa ou algo do gênero, e por estar na última prateleira, meio que escondido. Alguém lá em casa deve ter lido o livro. Provavelmente, minha mãe. O fato é que eu nunca cheguei a lê-lo. Então, num belo dia resolvi pesquisar sobre livro e autor.  

 

Descobri que o livro causara escândalo desde seu lançamento, em 1888, já que a sociedade moralista da época não aprovava livros que defendessem ideias abolicionistas, de liberdade e que falassem abertamente de tabus como erotismo, paixão, divórcio, adultério etc. É evidente que, naquela época (como hoje) não havia maus tratos, nem escravizações, nem traições, nem desejo. Todos eram extremamente justos, fiéis, comedidos e, portanto, não se admitia nenhuma fala contra a religião, os "bons costumes" ou o status quo dos senhores. Então, como admitir um autor que ousasse falar contra esses valores tão entranhados naquela sociedade? O livro chegou a ser condenado e os jovens foram fortemente aconselhados a esquecê-lo. Em outras palavras, proibido. 

 

Foi Manuel Bandeira (1886-1968), poeta, crítico literário, professor e tradutor que resgatou a produção do mineiro Júlio Ribeiro (1845-1890), membro da Academia Brasileira de Letras.  Vejam só! Ribeiro identificava-se como naturalista e antiescravagista. Seu livro, portanto, mostrava o que ocorria na época - a mulher vista apenas como objeto, seus desejos, sua presença na sociedade e, ainda, a questão dos negros, maltratados, desprezados, explorados. O fato é que acabei não lendo o livro na época, claro, mas anos mais tarde, algo trouxe-o de volta.  

Para quem se interessar, o site O prazer da Literatura traz uma bela resenha de A Carne, de Julio Ribeiro.

 

Referências

http://www.oprazerdaliteratura.com.br/2018/10/a-carne-julio-ribeiro.html

9 comentários:

  1. Tempos bicudos. Tomara que não voltem.

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  2. Texto instigante, Anita. Inclusive, fui ler o texto d'O prazer da literatura.
    Me relembrei do primeiro encontro da Lenita com Manuel. Li há 28 anos, no então colegial. Tive uma professora de Literatura que marcou a minha vida. Me lembro de detalhes enquanto eu lia "A carne". Nunca saem da gente, essas memórias.
    Não sabia que foi M. Bandeira que desencadeou a importância dessa obra.

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  3. Só o título do livro, creio eu, fazia com que meus pais o tivessem na biblioteca longe de meu olhar e curiosidade adolescente. As mesmas chagas de outrora continuam a existir esperando pensá-laa...

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    1. Exato, Lilian, a hipocrisia de antes e de agora. A dificuldade em enxergar o outro, o desrespeito, a falta de empatia... Tudo precisa ser repensado para pararmos de repetir os mesmos erros, ainda que com novos nomes... Abraço

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  4. Ótimo texto Anitinha!Antes nos eram escondidos alguns livros e hoje não é muito diferente alguns livros,filmes e comentários.Bebel

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  5. Interessante como certos temas continuam a incomodar: a liberdade de exopressar o erotismo, o desejo..
    Ainda bem que houve um grande avanço e as mulheres hj em dia conquistaram o direito maia do que justo de escolher seus parceiros sem serem chamadas por nomes vulgares; pelo menos isso, né, gente?! Se bem que ainda há homens que dividem as mulheres em "santas e p.."
    Sempre houve é sempre vai haver isso..
    Azar o deles que pararam no tempo!

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    1. Verdade, apesar do já conquistado a trancos e barrancos, temos um longo caminho pela frente ainda... Você se esqueceu de assinar. abraços

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  6. Que recordação...cantei varias dela e hoje canto com meu neto...Adorei!!

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