Quando
eu era criança, nossa estante era pequena. Nada a ver com minha estante (ou
melhor, as 400 estantes) de hoje. Naquela pequena estante, dois livros chamaram
minha atenção: ambos velhos, desajeitados e molengas. Era o que
meus olhos de criança viam, porque os livros que eu lia eram uns poucos de Monteiro Lobato e dois ou
três de contos de fada, todos de capa dura, bem enfileirados e apoiados entre si. Mas aqueles dois livros de capa mole, desbotados e esgarçados me
intrigavam. Parecia que estavam gastos, cansados, precisando de um apoio. O primeiro era A
Carne, de Julio Ribeiro e o outro é o da foto abaixo.
Autodidata e realista,
de vez em quando usava, em seus diários, palavras mais difíceis, provavelmente aprendidas nos livros que recolhia nas ruas da
cidade. O livro tirou a capa de invisibilidade do morador da
favela e sua condição de miséria, porque é o pobre que fala de sua dor em primeira pessoa, embora também reclame um mundo melhor. Não é uma descrição de terceiros, fantasiosa; é a descrição de uma situação vivida. E mais, além de pobre, quem escreve é uma mulher negra, favelada, mãe solteira que usava sua própria forma de falar, longe da norma padrão da nossa língua. Em suma, ninguém imaginaria que ela seria uma autora. Mas seu livro foi um marco na luta da mulher por afirmação e respeito, ainda que por muito tempo ela e o livro tenham sido discriminados não só no Brasil, mas em outros países da América Latina.
Na década 1950, o então repórter Audálio Dantas foi fazer uma reportagem na favela do Canindé, viu seus cadernos e ficou impressionado com o que leu. Como seu primeiro editor, organizou a publicação de alguns trechos no Diário da Noite, depois na revista O Cruzeiro e, finalmente, publicou o livro todo, em 1960. Quarto de Despejo fez sucesso, chegou a vender mais de 100 mil unidades em um ano e foi traduzido para outros 16 idiomas.
Mais tarde, Carolina Maria de Jesus escreveu Pedaços de Fome e Provérbios, além de seis obras póstumas, compiladas a partir de seus diários. Mesmo hoje, é uma autora um pouco marginalizada, talvez porque retratasse uma situação "desconfortável" e ainda existente. Seu registro é o de sua oralidade, longe da gramática da língua padrão. Anos mais tarde, conheceu um professor chileno que a levou ao Chile para participar de um evento literário, de onde ela saiu decepcionada dizendo "Me dei conta de que esse mundo tem muito mais palavras que ações".
Quarto de Despejo - Diário de uma favelada foi publicado em espanhol pela Uniandes, da Colômbia (2019) e pelo Editorial Mandacaru, da
Argentina (2021), como Quarto de Desechos. As informações para este post, além das minhas memórias, vieram de um webinário, oferecido pelo GREAT-Grupo de Estudos em Adaptação e
Tradução da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP): Carolina
de Jesus em espanhol - tradução ao espanhol de Cuarto de desechos y otras obras
de Carolina Maria de Jesus: Reflexões. O webinário, apresentado pelos professores Mario Rodríguez Torres, Bruna Macedo de Oliveira e Penélope
Chaves Bruera, discutiu o projeto de tradução do livro desenvolvido entre 2017 e 2019 por
estudantes e professores de distintas localidades do Brasil, Argentina e
Colômbia da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), dentro do projeto
de extensão “Laboratório de Tradução da UNILA. Maravilhoso projeto!
Em março deste ano, no dia do aniversário de Carolina Maria de Jesus, o Instituto Moreira Sales - IMS criou um evento para resgatar sua história, com uma série de depoimentos sobre a autora. Agora, o mesmo IMS montou a exposição Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros, dedicada à vida, ao percurso e à produção dessa mulher que, além de autora, foi compositora, cantora, poeta, artista circense. Carolina Plural!
Como ocorre com qualquer projeto com densidade, além do apoio de uma grande equipe mais discreta e
anônima, inúmeros profissionais participaram da pesquisa e da montagem da exposição, dentre eles,
o antropólogo Hélio Menezes e a historiadora Raquel Barreto, como curadores, e a
pesquisadora Fernanda Miranda. A mostra reúne fotografias, manuscritos, vídeos e documentos.
Parabéns ao IMS por resgatar nomes importantes da nossa história social, literária, artística e fotográfica!
Referências
https://ims.com.br/exposicao/carolina-maria-de-jesus-ims-paulista/
https://www.youtube.com/watch?v=QJoNLlgMPuc
https://www.culturagenial.com/quarto-de-despejo-carolina-maria-de-jesus/
https://www.historiasemmim.com.br/2020/02/04/resenha-quarto-de-despejo/
Obrigada, Anita, pelas informações adicionais trazidas por você sobre O Quarto de Despejo, obra que a minha juventude, no auge do entusiasmo pela igualdade social, elegeu como livro de cabeceira.
ResponderExcluirE a gente lia, né, Lilian...obrigada, meu bem, abraços
ResponderExcluirLia biblioteca de casa, do SESI, do colégio,dos amigos, até não sairmos mais do quarto adolescente e deixar a família preocupada a voracidade por livros...rsrsrsrs Abraços, querida Anita
ExcluirA autora deu voz a milhões de Carolinas que não vivem, apenas aguentam como disse Fernando Brant na musica Maria, Maria.
ResponderExcluirPor isso deve ser ressaltada e celebrada sempre.
Carlos SA
Perfeito, como sempre. Suas referências aos nossos compositores são incríveis! Isso é que é conhecer música. Vc e Renato me impressionam e comovem.
ExcluirObrigada e um grande abraço
"Realista, o livro tirou a capa de invisibilidade do morador da favela e sua condição de miséria" - que espetacular, isso que você escreveu, Anita!
ResponderExcluirAdorei.
Olha até onde foi a tradução das proezas escritas por aquela mulher... e até onde chegou uma prática de escrita encontrada por um repórter.
E não sabia que Carolina Maria de Jesus também foi cantora e compositora.
Parabéns pelo seu texto.Carolina Maria de Jesus um belo exemplo de dedicação, coragem.Também não sabia que ela tinha sido cantora e compositora.
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