Quando o livro me caiu nas mãos, durante as festas de final do ano, eu o devorei em três dias, em meio às tantas obrigações cotidianas de um período festivo e de uma casa cheira. Mas não se enganem, com cheia, quero dizer com três pessoas além dos moradores habituais.
Para começar fui saber quem era o autor, o baiano Itamar Vieira Junior (1979), geógrafo com mestrado e doutorado pela Federal da Bahia – UFBA. No doutorado, fez uma pesquisa em estudos étnicos africanos, com ênfase em antropologia. A profissão de geógrafo, como servidor público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), permitiu que ele viajasse e conhecesse mais a fundo a realidade relacionada aos trabalhadores rurais, à terra (e aos conflitos a ela relacionados) dos sertões do país, não só da Bahia. Aliás, diz ele que Torto Arado já tinha vinha sendo escrito há alguns anos. Desde sua juventude, mais precisamente, quando o autor conheceu essa realidade e sentiu que tinha que contar a essência daquela história.
Com um estilo único e envolvente, ele traz personagens sofridos, resilientes, com nomes fortes, inesquecíveis - como a Bibiana de Érico Veríssimo (e agora, com certeza, de Torto Arado) ou a Blimunda de Saramago, de O Memorial do Convento. Já falei sobre as mulheres de Saramago, aqui no Blog. Junta esses personagens em um romance doído que fala das nossa raízes e do nosso passado colonial, tema ainda atual e tristemente ignorado pela maioria dos brasileiros, sobretudo pelos que moram em grandes cidades.
Os personagens: os membros daquela comunidade negra (fictícia?) de pequenos agricultores, quilombolas, descendentes de escravos.
O cenário: Fazenda Água Negra, no sertão remoto da Chapada Diamantina, na Bahia.
A época: ontem, hoje e, talvez, amanhã.O livro mostra um Brasil profundo, sempre escondido
nas propagandas institucionais, aquele Brasil do regime de servidão e
exploração, do latifúndio, da prepotência, dos privilégios, das tradições, de
histórias não contadas, da religiosidade e do realismo mágico, da mestiçagem, da seca, das
enchentes, das casas de barro, do trabalho de sol a sol sem salário, sem direito a uma casa decente, sem escolas, sem assistência, sem perspectivas. Fala da solidariedade entre os membros dessa comunidade, de sua relação com a terra, da aceitação silenciosa daquela situação, dos questionamentos latentes e do “preço” pago
pela conscientização. Mostra a violência contra a mulher e contra os que
pensam diferente, mostra o racismo e a exploração, como algo que sempre existiu e sempre vai existir
enquanto não tomarmos consciência de que estamos todos juntos nessa caminhada. Ninguém cresce sozinho; ninguém evolui se alguém ficar para trás.
Na trama, o autor utilizou os elementos mágicos do jarê, um híbrido de religião de matriz africana, catolicismo rural e xamanismo, ainda hoje praticado naquela região da Bahia, sob a liderança do líder religioso, curador e pai das personagens principais, Zeca Chapéu Grande. O jarê apresentava-se como elemento de conexão entre os personagens, ajudando-os a suportar a dura realidade. Além do jarê, difundido em sua obra, Itamar Vieira Jr. destaca que utilizou uma linguagem universal, ainda que pontuada por termos do léxico cotidiano da Chapada. Porém tais termos não chegam a interromper o fluxo da leitura ou causar estranhamento. Vez ou outra eu parava para buscar entender melhor algumas palavras, mas por curiosidade minha.
Três capítulos com título e vários subcapítulos apenas numerados compõem o romance. Três vozes femininas fazem a narrativa forte em primeira pessoa - as duas irmãs Bibiana e Belonísia, e Rita pescadeira, uma entidade do jarê. De novo, na literatura e na vida, a mulher assume a liderança da trama.
Itamar Vieira Jr. Foto:UFMG |
Mais uma vez, a Literatura mostra a que veio. Abre horizontes, desnuda verdades camufladas e nos mostra nossa própria história. Inteligente, brilhante, corajoso e muitíssimo bem escrito e bem amarrado, o livro me encantou, me fez chorar e me deixou muda em vários momentos. Não digo que foi transformador para mim, porque, desde sempre, me posiciono contra injustiças e opressão, mas, sem dúvida, foi um libelo contra o esquecimento e a cortina que se coloca sobre o Brasil real, em pleno século 21. Torto Arado já nasceu um clássico. É preciso ler, refletir muito e divulgar, porque, com esse tipo de literatura, é possível sonhar de novo que o país tem jeito.
Em tempo: A sensacional capa é de Elisa Randow, com base em uma foto antiga.
Livro: Torto Arado. Itamar Vieira Junior.
São Paulo: Todavia, 2019. 264 p.
Referências:
http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1465-itamar-vieira-junior-torto-arado
https://www.youtube.com/watch?v=lvZjGRBXuhw
https://www.youtube.com/watch?v=Bh7oR7oSKAw
Bela resenha. Me animou a ler.
ResponderExcluirNão deixou seu nome... Aruam????
Excluir"Ninguém cresce sozinho. Ninguém evolui se alguém ficar para trás "
ResponderExcluirEste deveria ser o ditame das consciências individuais da população _ de onde nascem os politicos_ para que o nosso país consiga subverter a ordem que o torna um gigante adormecido, em progresso. Torto arado, sem dúvida, uma grande obra literária!
Exato.... Qua do será que aprenderemos? Obrigada por comentar. Abraços
ExcluirAmei suas reflexões, Anita. É um livro maravilhosamente contundente. Li em dezembro de 2020 e, assim como aconteceu com você, também comecei e não larguei mais. É Arrebatador. Vale todos os prêmios recebidos.
ResponderExcluirE o autor é um doce de pessoa... ♥️
Repetindo: há de se uma lnteressante e instrutiva obra.
ResponderExcluirRealmente o autor conseguiu unir no romance essas faces doloridas do Brasil. Especialmente me encanta a coragem feminina que ele bem retratou e que, afinal, nos tem levado adiante.
ResponderExcluirTambém recomendo a leitura.
Sim, a mulher é sempre a que ampara, acolhe, puxa a mudança, transforma, pega o boi pelo chifre... O próximo agora é Doramar e a odisseia, também dele... beijos
ExcluirParabéns pela resenha, amiga. Vou ler.
ResponderExcluirParabéns Anitinha!Bonito texto!Vou procurar o livro.Bebel
ResponderExcluirBoa dica. Nunca tinha ouvido falar nem do livro nem do autor. Vou procura-lo.
ResponderExcluirValeu.
bj.
Carlos SA