sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Ecos Geográficos (3/3) | Os saltos submersos

Concluindo, por enquanto, a série de três Ecos Geográficos, falo um pouco do Noroeste do Estado de São Paulo, junto ao rio Tietê perto da foz do Paraná. A História nos diz que até o século XIX, os grupos indígenas kaikang, ou caigangue, foram os primeiros habitantes da região e que a exploração das terras a oeste foi facilitada pelo rio Tietê (antigo Anhembi). Mas não só. Também são parte da história comum dessa região: a política de ocupação de territórios na época do império, os recuos e avanços de grupos, doenças e dizimação, a beleza das corredeiras e quedas d'água, a  construção de usinas e o desaparecimento dos saltos de Itapura (salto das pedras) e Avanhandava (lugar da corrida do homem) (no Tietê, e Urubupungá (grasnado  de urubus), no rio Paraná. 

Recuando no tempo, vou tentar contar essa história um tanto confusa. Recomendo a leitura do artigo de GHIRARDELO e FERRARI para os interessados. Em1858, o governo imperial construiu dois  postos militares para defesa e futura ocupação - Itapura e Avanhandava, os quais herdaram seus nomes dos respectivos saltos. O local escolhido para a colônia militar de Itapura foi "o pontal do Tietê-Paraná, no chamado “sertão do Itapura”, entre os Saltos de Itapura, Urubupungá e Jupiá, a aproximadamente 13 quilômetros da foz do Tietê no Paraná, à sua margem direita, junto ao Salto do Itapura". (GHIRARDELO e FERRARI). Itapura foi pensada ainda para ser uma cidade com plano topográfico moderno e regular, com malha em xadrez. No entanto, com a dificuldade de acesso pelo rio a esses postos e com o fim da guerra do Paraguai (1864-1870), as duas colônias perderam a importância estratégia e foram desativadas.

Quase 50 anos depois, em 1905, só havia ruínas por ali; em 1910, os trilhos da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil deram origem a um novo povoado ao redor da Estação Itapura. A antiga colônia militar, considerada de caráter único, dentre as demais colônias, teve, então, uma trajetória para lá de sinuosa: foi anexada a Monte Aprazível (1924), mudou de nome (Novo Oriente), teve a sede transferida, parte de suas terras vendidas e, por fim, em 1959, com sede no antigo povoado, foi recriado o Distrito de Itapura

Salto de Itapura. Wikicommons.
 
Nos anos 1940, junto ao Salto de Itapura foi iniciada a construção da pequena usina de Eloy Chaves, seguindo o panorama modernizador do país e, na década seguinte, foi feito o projeto para a construção do Complexo de Urubupungá-Itapura, com duas barragens no rio Paraná: Jupiá e Ilha Solteira. Surgida nos anos 1960, a Centrais Elétricas de São Paulo (CESP) continuou a implantação das duas barragens mencionadas, mais a de Porto Primavera. 
 
Ao criar seu reservatório, a Usina de Jupiá, primeira etapa do Complexo de Uburupungá,  inundou o salto de Urubupungá, o salto de Itapura, o antigo núcleo urbano de Itapura e a antiga usina hidrelétrica Eloy Chaves. Depois da formação do lago, restaram apenas algumas construções em cotas mais altas, como as ruínas do antigo posto da colônia militar de Itapura, erguido em 1869, para proteger o Brasil das tropas de Solano Lopes, vindas pelo Tietê. O posto serviu ainda como residência (de 1865 a 1870) do Comandante do Destacamento Naval e, por isso, também ficou conhecido como Forte de Itapura. Além disso, o antigo casarão também é chamado de Palacete do Imperador, embora não existam provas de que Dom Pedro II tenha passado por ali. 
Ruínas da antiga Usina Eloy Chaves.

Uma nova cidade foi criada em 1969, para realocar os habitantes da antiga Itapura. Vale lembrar que Itapura, em tupi-guarani, significa pedra que emerge das águas. Hoje, com menos de 5.000 habitantes, a estância de Itapura vive do turismo, da pesca esportiva, dos passeios pelas corredeiras, cachoeiras, dos mergulhos, da hidrovia e eclusa Paraná-Tietê. Com guias especializados, os mergulhos levam os turistas a visitar os vestígios do que foi submerso pela Usina de Jupiá, em 1968: partes da antiga Itapura; ruínas da antiga usina Eloy Chaves; o Salto de Itapura (a 32 m de profundidade); e (a 20 m abaixo da superfície), o Tamandathay, um vapor militar imperial de 1860 comprado dos ingleses e que naufragou em 1883 nas águas do Tietê; segundo seu diário de bordo, "sem sacrifício de nenhuma vida”

Antigo Palacete do Imperador. Foto: Divulgação.

 Único remanescente da velha colônia, o antigo casarão do comandante naval foi tombado em 1969 pelo Condephaat e, hoje, está em fase final de restauração. Ótima notícia para a cidade, a cultura e a memória; para despertar o interesse da sociedade pela sua história, valorizar nosso patrimônio e, talvez, formar mão de obra especializada na área de conservação e restauro. A proposta do município é instalar no edifício restaurado a Secretaria de Turismo, uma biblioteca e um museu fotográfico. Abaixo, o palacete em fase final de obra. Imagem divulgada pela Gestour.

Palacete do Imperador
Sim, a vida vai se refazendo e oferecendo oportunidades de negócios, lazer e turismo para alguns, mas a nova Itapura não é unanimidade. Nenhuma das cidades criadas após as inundações é. Os antigos habitantes não reconhecem o novo núcleo e a nova paisagem, não encontram os traços arquitetônicos conhecidos, não veem mais suas referências nem os elos de ligação com os ancestrais, exceto pelo pouco que sobreviveu, como o citado Palacete do Imperador. Aqui, Itapura, vista do alto.

Em infinitas camadas de tempo muito distantes entre si, num trabalho lento e minucioso, a natureza vai construindo e moldando a paisagem; em poucos anos e em poucas camadas de tempo, talvez duas ou três, na nossa visão estreita e imediatista que não admite o contraditório, nós nos apropriamos dessa mesma paisagem, a modificamos, a destruímos e a substituímos. 

Muitas vezes, a natureza se revolta e retoma o que lhe tiraram; esta é apenas uma constatação, não uma previsão. Talvez, agora, seja tempo de, urgentemente, repensar e procurar novas formas de interagir com o meio ambiente e de devolver, na medida do possível, as matas, os cursos d’água, os rios, os saltos e a paisagem natural à paisagem e às suas gentes. Termino com uma frase do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898 -1956): “...Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento, mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”.

Referências

MARTIN, Andrey Minin. Pelas páginas do progresso: Memórias e Discursos na construção Hidrelétrica no Alto Paraná. Assis| Unesp, 2012
GHIRARDELLO e FERRARI. A estratégia territorial da Colônia Militar do Itapura: legado urbano e arquitetônico. UNESP/Bauru. Anais do Musei Paulista, vol. 28, 2020. Disponível em <https://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/164814>
https://www.scielo.br/j/anaismp/a/DhTmCnD5gGTsqhTv3YYdj4k/?lang=pt 
http://hidrofilia.blogspot.com/2012/04/mergulho-no-rio-tiete-por-marcos-pelaes.html
https://www.hojemais.com.br/andradina/noticia/geral/itapura-conquista-mais-de-r-1-milhao-para-recuperar-e-restaurar-o-palacio-do-imperador
https://www.youtube.com/watch?v=3rYIFLcWw5E&t=25s
https://www.unisantos.br/pos/revistapatrimonio/paineleaca.html?cod=816

https://pt.wikipedia.org/wiki/Itapura
https://www.guiadoturismobrasil.com/cidade/SP/98/itapura
https://itapura.sp.gov.br
https://www.marinaurubupunga.com.br/
https://www.cidadesdomeubrasil.com.br/sp/itapura

7 comentários:

  1. Belo texto!
    Bela reflexão!
    Esperemos que a cada reflexão …poderemos introjetar a existência de vários saberes, olhares sobre o mesmo fenômeno e então conseguirmos deixar fluir o rio naturalmente entre as suas margens compactas ou nas planícies aluviais…

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  2. Profundidade e concisão, Anita. Com os rios que não correm e saltam mais, ao menos cuidem das matas ciliares das margens das represas, nem que seja para aumentar sua vida útil .

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  3. Um banho de historia desconhecida por muitos

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  4. Muito bom texto. Eu desconhecia. Adorei. Parabéns 👏👏

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  5. Muito bom seu texto! Assim vamos conhecendo um pouco desta história escrita por você com todo cuidado.👏👏👏

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  6. Lindo texto. A gente vê as imagens, o que devia ser antes ... dá aquela nostalgia do que foi vivida pelos antigos moradores.
    Tudo tão poético. Sim, é urgente mudar de paradigmas e técnicas.
    Parabéns, Anita!

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  7. Ótimo texto. Já passou da hora de rever os manejos com a natureza

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