Não há quem não tenha lamentado a queda de um avião de pequeno porte, ocorrida no Pantanal, no final de setembro de 2025.
O acidente causou a morte do paisagista chinês Kongjian Yu, criador do conceito
das cidades-esponjas (assunto já abordado aqui no blog Anita Plural), de dois
cineastas que produziam o documentário Cidades-esponja, além do piloto do avião. Meu querido amigo
Raul Pereira, também arquiteto paisagista, fala de quando o conheceu e de como Yu mudou seu modo de ver a paisagem. Abaixo, seu sensível depoimento.
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| Kongjian Yu. Divulgação |
Parabenizo o Instituto de
Arquitetos do Brasil (IAB-SP), a Associação Brasileira de Arquitetos
Paisagistas (ABAP), a Bienal Internacional de Arquitetura (BIA) e a Secretaria
Municipal de Infraestrutura e Obras (SIURB-SP) pela iniciativa da celebração/homenagem a KONGJIAN YU, após a perda irreparável deste que é um dos mais importantes urbanistas e
paisagistas do mundo. Há uma frase que diz que ninguém é
insubstituível; decididamente, porém, isso não se aplica ao nosso querido YU,
uma luz de esperança nesse nosso mundo quase distópico. Ele era, de fato,
insubstituível. Sua grandiosidade não se resume
somente à criação das técnicas das cidades-esponja, mas à sensibilidade de
retomar, no mundo contemporâneo, as práticas milenares chinesas de não combater
e, sim, conviver com a chuva, com as florestas e, amigavelmente, trazer a água
para junto de nós.
Quando eu era criança, as nuvens
carregadas eram sinal de chuva e, para nós, era uma alegria, porque podíamos
brincar e pular nas poças d’água. Hoje, em muitos lugares do mundo, essas
mesmas nuvens podem ser sinônimo de medo e tragédia, particularmente, para os menos
favorecidos. Tragédias que, infelizmente, se tornaram um fato banal e quase
normalizado. No entanto, as chuvas deveriam nos trazer alegria por irrigar
nossas lavouras, abastecer nossos córregos, nossos rios e despoluir nossos
ares, asfixiados pela poluição e pelos desastres climáticos.
Um grande pensador já disse que os
homens não criam problemas que não possam resolver. Tudo bem, isso pode ser verdade,
mas os mesmos homens podem não resolver esses problemas a tempo. Alguns cientistas
acreditam que ainda dá tempo e outros dizem que o tempo da tragédia climática já
é irreversível. Será? Uma enorme dificuldade para a solução é que a saída para
esse impasse depende de acordos entre nações, o que é uma tarefa árdua e nada fácil.
Às vezes, mal nos entendemos numa mesma família.
Mas nosso mestre YU nos traz uma
esperança e, como costuma dizer Catharina Lima, grande amiga e professora da
FAUUSP: “Como não ter esperança se sou mãe, professora e arquiteta que
trabalha, projeta e planta o futuro?” Sabemos que podemos
desaparecer como humanidade e que o planeta vive muito bem sem nós, mas o
inverso não é verdadeiro, porque nossos corpos não fazem fotossíntese, pelo
menos por enquanto.
Não curto muito a ideia simplista
sobre nossa pequenez, a ideia de que somos simplesmente um pontinho no
universo. Sim, somos um pontinho, mas também somos uma criação muito preciosa da
natureza, a única espécie que, entre os animais, tem a capacidade de projetar e
sonhar; e que demorou bilhões de anos para conseguir sobreviver, ainda que em um
equilíbrio também instável. É um grau de equilíbrio tão delicado que, por
exemplo, com mais 2% de oxigênio no ar, a Terra toda queimaria.
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| Parque da Fita Vermelha, China. Div.: Escr. Turenscape |
As plantas vieram bilhões de anos
antes de chegarmos à categoria de Homo sapiens. Somos caçulas nos tempos
históricos, mas para nossa sorte, a natureza cria seres humanos, generosos,
solidários e gentis, seres da dimensão do YU, que dedica sua vida à beleza e à
felicidade do outro. Tive a felicidade e o privilégio de conhecê-lo no Rio de Janeiro,
há 16 anos em 2009, num Congresso Internacional de Paisagismo, do qual ele foi
o destaque. Para mim foi muito impactante. Depois de sua palestra, minha visão
de paisagem nunca mais foi a mesma. Naquela época, ainda não havia, como senso
comum, o conceito elaborado das cidades-esponja, apesar de elas existirem há
milhares de anos, através da ação dos povos tradicionais de várias regiões do
mundo: chineses, incas, indígenas e muitos outros. Foi um impacto, primeiramente, pela escala dos
seus projetos. Na China tudo é grandioso, extenso, tudo é muito. Se for preciso
produzir aqui um quilo de arroz, na China é preciso multiplicar esse número por
1,5 bilhão de habitantes.
YU incorporava isso na concepção de
seus projetos; ao lidar com áreas rurais, ele incorporava a ideia de rega e retenção
dos corpos d’água, demonstrando que a área urbana não termina no seu limite
geográfico, como estabelecido nos mapas, mas se estende por todo o território
do entorno. Para YU, o projeto não é uma paisagem estática ou imóvel, mas dinâmica
e plena de vida, como o fluxo das águas, das árvores e daquilo que é invisível
num primeiro olhar que é a história – como um palimpsesto, a cultura, os
desejos e aspirações com todas as suas mudanças. Natureza e cultura não são dicotômicas; fazem
parte de um só corpo.
A segunda lição desse mestre era sua
preocupação com o ato pedagógico. Além de seus projetos paisagísticos combinarem
uma ousada linguagem contemporânea, como por exemplo o icônico Parque da "Fita Vermelha",
também incorporavam grandes áreas de plantio de alimentos, como o trigo. Essa
mistura de lavoura sazonal com plantas ditas ornamentais causava um
estranhamento na concepção estética dos diretores e funcionários dos órgãos
públicos responsáveis pela execução dos projetos. Isso porque o conceito de
ornamentais e não ornamentais é muito relativo e muda no decorrer do tempo. Já
vi lindos arranjos florais utilizando tiririca, que é uma praga dos jardins.
Desse modo, qualquer planta pode ser denominada ornamental, dependendo do contexto.
A bromélia, por exemplo, já foi tida como planta maldita, porque era considerada
o vetor da febre amarela. Com sua genialidade, Burle Marx trouxe as bromélias para
as cidades e, hoje, elas são vistas como plantas “ornamentais”, ou numa
linguagem seletiva e preconceituosa, plantas “chiques”.
Voltando ao nosso mestre. Para que
o corpo de funcionários pudesse incorporar esse novo conceito de jardim, YU e
sua equipe promoviam cursos intensivos onde explicavam suas intenções e seus
significados. Com isso, respeitosamente, ele compartilhava seus saberes, sem
impor os novos princípios.
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| Parque na Tailândia. Divulgação: Escr. Turenscape |
Outro aspecto fundamental é que
seus projetos necessariamente têm o apoio do Estado e os orçamentos têm a
dimensão de sua importância. Ademais, a construção de seus projetos é sempre muito
rápida. Para se ter uma ideia, desde 2014, ou seja, em apenas onze anos, trinta
cidades se transformaram em cidades-esponja, coisa que seria inviável sem uma
forte vontade política. Outro exemplo: a China é a maior produtora de gases do
efeito estufa do mundo (30%) e, até 2035, pretende diminuir esse número para 10%.
Como um alquimista, YU recriou o
conceito de cidade esponja, com princípios que hoje podemos considerar,
aparentemente, sem muita novidade. Mas também se diz que o que diferencia um
gênio dos demais é que o gênio descobre o óbvio, e esse “óbvio” é traduzido por
medidas simples e acessíveis a qualquer um, da pequena escala como o
quintal de uma residência, até a escala de grandes parques. Esses princípios são:
- Devolver as águas para seu leito
natural e para as várzeas, seu segundo leito invadido por nós;
- Considerar as águas como amigas, não
como obstáculos e, assim, minimizar a construção de bocas de lobo e
canalizações concretadas;
- Habitar a natureza em meio às cidades,
uma das maiores invenções humanas e sem criminalizá-las;
- Recriar jardins e florestas, trazendo a
natureza para perto de nós;
- Deixar, ao máximo, os solos
permeáveis, criando jardins de chuva e alagados.
Tristemente perdemos um grande
artista, que plantava água e, por ironia, ele nos deixou no Pantanal, um dos
maiores alagados do mundo. Aliás, um dos significados em chinês de YU é água.
Que ele siga plantando água onde estiver...
Minibios:

Kongjian Yu (1963, Zhejiang, China – 2025,
Mato Grosso do Sul, Brasil). O premiado arquiteto
paisagista e planejador urbano Kongjian Yu era professor da Universidade de
Pequim, onde criou o curso de Arquitetura Paisagística. Estudou na própria
universidade de Pequim (1987-92) e em Harvard (1995). Foi o fundador do Turenscape, escritório especializado em projetos
paisagísticos, planejamento urbano e restauração ecológica. Foi o criador do
conceito de cidades-esponja, implantou dezenas desses projetos na China, deu consultoria para vários países e, por ironia, morreu tragicamente, aos 62 anos, no nosso Pantanal.
Raul Isidoro Pereira (1947, Presidente Venceslau-SP) Arquiteto paisagista e doutor em Estruturas
Ambientais pela FAU-USP. Atua em projetos e consultoria de paisagismo,
planejamento ambiental, eco-pedagogia e arborização urbana em áreas públicas,
institucionais e privadas. Entre mais de 2.000 projetos paisagísticos em todo o
país, citamos: Museu Rodin
(Salvador-BA), Museu do Ipiranga e restauração do jardim histórico, Instituto
Butantan, SESC Pompéia, Cinemateca Brasileira, Parque do Gato e Museu de
História do Estado (São Paulo), Complexo Esportivo Deodoro (RJ-2016) e
arborização urbana de Osasco e Diadema (SP).
Referências
https://www.turenscape.com/en/home/index.html
https://www.greatgardensoftheworld.com/gardens/turenscape-kongjian-yu/
https://landezine.com/landscape-architects/turenscape-landscape-architecture/
https://www.theguardian.com/world/2025/sep/24/architect-kongjian-yu-dies-brazil-plane-crash
https://rpaa.com.br/
https://bienaldearquitetura.org.br/programacao/cidades-esponja/
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-06/chines-criador-das-cidades-esponja-diz-que-brasil-pode-ser-referencia
https://worldlandscapearchitect.com/remembering-kongjian-yu-1963-2025/?v=dc634e207282
https://anitadimarco.blogspot.com/2024/05/ecos-urbanos-natureza-nao-tem-culpa.html
https://anitadimarco.blogspot.com/2021/05/ecos-urbanos-jardins-de-chuva.html
https://anitadimarco.blogspot.com/2025/02/ecos-urbanos-cidade-impermeabilizada.html
PEREIRA, Raul Isidoro. O Sentido da Paisagem e a Paisagem Consentida:
projetos participativos na produção do espaço livre público. Tese de doutorado
na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). São
Paulo, 2006.