quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Ecos Humanos | YU, o plantador de águas e árvores

Não há quem não tenha lamentado a queda de um avião de pequeno porte, ocorrida no Pantanal, no final de setembro de 2025. O acidente causou a morte do paisagista chinês Kongjian Yu, criador do conceito das cidades-esponjas (assunto já abordado aqui no blog Anita Plural), de dois cineastas que produziam o documentário Cidades-esponja, além do piloto do avião. Meu querido amigo Raul Pereira, também arquiteto paisagista, fala de quando o conheceu e de como Yu mudou seu modo de ver a paisagem. Abaixo, seu sensível depoimento. 

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Kongjian Yu. Divulgação
Parabenizo o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (ABAP), a Bienal Internacional de Arquitetura (BIA) e a Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras (SIURB-SP) pela iniciativa da celebração/homenagem a KONGJIAN YU, após a perda irreparável deste que é um dos mais importantes urbanistas e paisagistas do mundo. Há uma frase que diz que ninguém é insubstituível; decididamente, porém, isso não se aplica ao nosso querido YU, uma luz de esperança nesse nosso mundo quase distópico. Ele era, de fato, insubstituível. Sua grandiosidade não se resume somente à criação das técnicas das cidades-esponja, mas à sensibilidade de retomar, no mundo contemporâneo, as práticas milenares chinesas de não combater e, sim, conviver com a chuva, com as florestas e, amigavelmente, trazer a água para junto de nós.

Quando eu era criança, as nuvens carregadas eram sinal de chuva e, para nós, era uma alegria, porque podíamos brincar e pular nas poças d’água. Hoje, em muitos lugares do mundo, essas mesmas nuvens podem ser sinônimo de medo e tragédia, particularmente, para os menos favorecidos. Tragédias que, infelizmente, se tornaram um fato banal e quase normalizado. No entanto, as chuvas deveriam nos trazer alegria por irrigar nossas lavouras, abastecer nossos córregos, nossos rios e despoluir nossos ares, asfixiados pela poluição e pelos desastres climáticos.

Um grande pensador já disse que os homens não criam problemas que não possam resolver. Tudo bem, isso pode ser verdade, mas os mesmos homens podem não resolver esses problemas a tempo. Alguns cientistas acreditam que ainda dá tempo e outros dizem que o tempo da tragédia climática já é irreversível. Será? Uma enorme dificuldade para a solução é que a saída para esse impasse depende de acordos entre nações, o que é uma tarefa árdua e nada fácil. Às vezes, mal nos entendemos numa mesma família.

Mas nosso mestre YU nos traz uma esperança e, como costuma dizer Catharina Lima, grande amiga e professora da FAUUSP: “Como não ter esperança se sou mãe, professora e arquiteta que trabalha, projeta e planta o futuro?” Sabemos que podemos desaparecer como humanidade e que o planeta vive muito bem sem nós, mas o inverso não é verdadeiro, porque nossos corpos não fazem fotossíntese, pelo menos por enquanto.

Não curto muito a ideia simplista sobre nossa pequenez, a ideia de que somos simplesmente um pontinho no universo. Sim, somos um pontinho, mas também somos uma criação muito preciosa da natureza, a única espécie que, entre os animais, tem a capacidade de projetar e sonhar; e que demorou bilhões de anos para conseguir sobreviver, ainda que em um equilíbrio também instável. É um grau de equilíbrio tão delicado que, por exemplo, com mais 2% de oxigênio no ar, a Terra toda queimaria. 

Parque da Fita Vermelha, China. Div.: Escr. Turenscape 

 As plantas vieram bilhões de anos antes de chegarmos à categoria de Homo sapiens. Somos caçulas nos tempos históricos, mas para nossa sorte, a natureza cria seres humanos, generosos, solidários e gentis, seres da dimensão do YU, que dedica sua vida à beleza e à felicidade do outro. Tive a felicidade e o privilégio de conhecê-lo no Rio de Janeiro, há 16 anos em 2009, num Congresso Internacional de Paisagismo, do qual ele foi o destaque. Para mim foi muito impactante. Depois de sua palestra, minha visão de paisagem nunca mais foi a mesma. Naquela época, ainda não havia, como senso comum, o conceito elaborado das cidades-esponja, apesar de elas existirem há milhares de anos, através da ação dos povos tradicionais de várias regiões do mundo: chineses, incas, indígenas e muitos outros.  Foi um impacto, primeiramente, pela escala dos seus projetos. Na China tudo é grandioso, extenso, tudo é muito. Se for preciso produzir aqui um quilo de arroz, na China é preciso multiplicar esse número por 1,5 bilhão de habitantes.

YU incorporava isso na concepção de seus projetos; ao lidar com áreas rurais, ele incorporava a ideia de rega e retenção dos corpos d’água, demonstrando que a área urbana não termina no seu limite geográfico, como estabelecido nos mapas, mas se estende por todo o território do entorno. Para YU, o projeto não é uma paisagem estática ou imóvel, mas dinâmica e plena de vida, como o fluxo das águas, das árvores e daquilo que é invisível num primeiro olhar que é a história – como um palimpsesto, a cultura, os desejos e aspirações com todas as suas mudanças.  Natureza e cultura não são dicotômicas; fazem parte de um só corpo. 

A segunda lição desse mestre era sua preocupação com o ato pedagógico. Além de seus projetos paisagísticos combinarem uma ousada linguagem contemporânea, como por exemplo o icônico Parque da "Fita Vermelha", também incorporavam grandes áreas de plantio de alimentos, como o trigo. Essa mistura de lavoura sazonal com plantas ditas ornamentais causava um estranhamento na concepção estética dos diretores e funcionários dos órgãos públicos responsáveis pela execução dos projetos. Isso porque o conceito de ornamentais e não ornamentais é muito relativo e muda no decorrer do tempo. Já vi lindos arranjos florais utilizando tiririca, que é uma praga dos jardins. Desse modo, qualquer planta pode ser denominada ornamental, dependendo do contexto. A bromélia, por exemplo, já foi tida como planta maldita, porque era considerada o vetor da febre amarela. Com sua genialidade, Burle Marx trouxe as bromélias para as cidades e, hoje, elas são vistas como plantas “ornamentais”, ou numa linguagem seletiva e preconceituosa, plantas “chiques”.

Voltando ao nosso mestre. Para que o corpo de funcionários pudesse incorporar esse novo conceito de jardim, YU e sua equipe promoviam cursos intensivos onde explicavam suas intenções e seus significados. Com isso, respeitosamente, ele compartilhava seus saberes, sem impor os novos princípios.

Parque na Tailândia. Divulgação: Escr. Turenscape
Outro aspecto fundamental é que seus projetos necessariamente têm o apoio do Estado e os orçamentos têm a dimensão de sua importância. Ademais, a construção de seus projetos é sempre muito rápida. Para se ter uma ideia, desde 2014, ou seja, em apenas onze anos, trinta cidades se transformaram em cidades-esponja, coisa que seria inviável sem uma forte vontade política. Outro exemplo: a China é a maior produtora de gases do efeito estufa do mundo (30%) e, até 2035, pretende diminuir esse número para 10%.

Como um alquimista, YU recriou o conceito de cidade esponja, com princípios que hoje podemos considerar, aparentemente, sem muita novidade. Mas também se diz que o que diferencia um gênio dos demais é que o gênio descobre o óbvio, e esse “óbvio” é traduzido por medidas simples e acessíveis a qualquer um, da pequena escala como o quintal de uma residência, até a escala de grandes parques. Esses princípios são:

- Devolver as águas para seu leito natural e para as várzeas, seu segundo leito invadido por nós;

- Considerar as águas como amigas, não como obstáculos e, assim, minimizar a construção de bocas de lobo e canalizações concretadas;

- Habitar a natureza em meio às cidades, uma das maiores invenções humanas e sem criminalizá-las;

-  Recriar jardins e florestas, trazendo a natureza para perto de nós;

- Deixar, ao máximo, os solos permeáveis, criando jardins de chuva e alagados.

Tristemente perdemos um grande artista, que plantava água e, por ironia, ele nos deixou no Pantanal, um dos maiores alagados do mundo. Aliás, um dos significados em chinês de YU é água. Que ele siga plantando água onde estiver...

Minibios:


Kongjian Yu (1963, Zhejiang, China – 2025, Mato Grosso do Sul, Brasil). O premiado arquiteto paisagista e planejador urbano Kongjian Yu era professor da Universidade de Pequim, onde criou o curso de Arquitetura Paisagística. Estudou na própria universidade de Pequim (1987-92) e em Harvard (1995). Foi o fundador do Turenscape, escritório especializado em projetos paisagísticos, planejamento urbano e restauração ecológica. Foi o criador do conceito de cidades-esponja, implantou dezenas desses projetos na China, deu consultoria para vários países e, por ironia, morreu tragicamente, aos 62 anos, no nosso Pantanal.  

 

Raul Isidoro Pereira (1947, Presidente Venceslau-SP) Arquiteto paisagista e doutor em Estruturas Ambientais pela FAU-USP. Atua em projetos e consultoria de paisagismo, planejamento ambiental, eco-pedagogia e arborização urbana em áreas públicas, institucionais e privadas. Entre mais de 2.000 projetos paisagísticos em todo o país, citamos:  Museu Rodin (Salvador-BA), Museu do Ipiranga e restauração do jardim histórico, Instituto Butantan, SESC Pompéia, Cinemateca Brasileira, Parque do Gato e Museu de História do Estado (São Paulo), Complexo Esportivo Deodoro (RJ-2016) e arborização urbana de Osasco e Diadema (SP).

Referências

https://www.turenscape.com/en/home/index.html

https://www.greatgardensoftheworld.com/gardens/turenscape-kongjian-yu/

https://landezine.com/landscape-architects/turenscape-landscape-architecture/  

https://www.theguardian.com/world/2025/sep/24/architect-kongjian-yu-dies-brazil-plane-crash  

https://rpaa.com.br/

https://bienaldearquitetura.org.br/programacao/cidades-esponja/

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-06/chines-criador-das-cidades-esponja-diz-que-brasil-pode-ser-referencia

https://worldlandscapearchitect.com/remembering-kongjian-yu-1963-2025/?v=dc634e207282 

https://anitadimarco.blogspot.com/2024/05/ecos-urbanos-natureza-nao-tem-culpa.html

https://anitadimarco.blogspot.com/2021/05/ecos-urbanos-jardins-de-chuva.html

https://anitadimarco.blogspot.com/2025/02/ecos-urbanos-cidade-impermeabilizada.html 

PEREIRA, Raul Isidoro. O Sentido da Paisagem e a Paisagem Consentida: projetos participativos na produção do espaço livre público. Tese de doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2006.  

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Ecos Urbanos | Qualidade Urbana (1): O caso de Bogotá

Peñalosa e Bogotá. Foto: Divulgação
Quando se fala de temas como cidades, qualidade de vida e dos moradores, temos um bom exemplo em Bogotá, a capital colombiana, com cerca de 7,5 milhões de habitantes, que se reconstrói e se transforma, em função de ações do poder público, todas bem coordenadas e planejadas. Entre 1998 e 2001, o urbanista e economista Enrique Peñalosa foi eleito prefeito da cidade, então uma das cidades mais violentas da América Latina. Com visão abrangente e ações focadas em sustentabilidade, mobilidade, arte e cultura para todos, sua gestão conseguiu transformar a cidade e diminuir, significativamente, seus índices de criminalidade. Em entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo, no início de 2002 (ver a íntegra aqui), Peñalosa afirmou que a chave para diminuir os índices de violência em qualquer país está na própria cidade, ou melhor, em ações locais que melhorem a vida de todos os cidadãos, priorizando os mais desfavorecidos. “O país não muda se a cidade não muda e o Estado tem que estar presente na cidade, o tempo todo, porque segurança pública não é um assunto só da polícia”.

Sabemos que qualquer cidade só é viva, segura e agradável quando, nas ruas, há movimento de pessoas de todas as idades. Além da questão da segurança, reforçada com tecnologia, uma polícia bem formada e punição aos malfeitos (afastando a sensação de impunidade), a cidade investiu em mobilidade urbana, com a criação de uma rede de transporte público, inspirada em Curitiba, com faixas exclusivas para ônibus, o Transmilenio, que transporta grande número de passageiros, além de uma rede de 300 quilômetros de ciclovias. 

Biblio.Basílio Barco. Arq. Rogelio Salmona. Foto: Silvia Chiarelli
Bons equipamentos, arte, cultura e qualidade de vida também entraram na equação, com a construção de ótimas bibliotecas, escolas, parques públicos, programas de nutrição, conjuntos esportivos, educacionais e projetos de infraestrutura. Vale salientar que, mesmo nos rincões mais pobres da cidade, foram construídos equipamentos tão bons quanto os existentes nas áreas mais nobres. Segundo Peñalosa, foi a maneira que o poder público teve para mostrar respeito pela dignidade humana, ou seja, demonstrando que "conhecimento vale mais do que dinheiro, o que começou a atrair pessoas que, antes, só enxergavam valores vindos do tráfico, porque se sentiam abandonadas pelo Estado”. Desde então, a população passou a abraçar e respeitar os novos equipamentos, mesmo porque atributos como beleza, qualidade, mobilidade e boas soluções não são privilégio de nenhuma classe social. 

A prefeitura investiu ainda na iluminação pública de ruas, parques e equipamentos comunitários como campos de futebol, permitindo que esses locais passassem a ser frequentados à noite, levando atividades esportivas, saúde e lazer aos jovens. Antes de sua gestão, havia uma parte da área central que era um verdadeiro retrato da degradação humana. Pois bem, com a decisão de desapropriar alguns trechos e demolir mais de 600 imóveis, um megaprojeto de reabilitação transformou a área em imenso e muito utilizado parque público.

Bogotá. Foto: Silvia R. Chiarelli
Claro, como toda cidade grande, Bogotá ainda tem problemas de violência, assaltos e gangues, e falta muito ainda para a cidade atingir níveis de segurança da Europa ou do Japão, porém importantes passos foram dados nesse sentido. Ao respeitar e atender as necessidades e demandas da população mais necessitada, toda a cidade se beneficiou. Afinal, concluiu Peñalosa, uma cidade deve priorizar o humano e se destinar especialmente aos mais vulneráveis – crianças, velhos e pobres”.

Sobre o tema da mobilidade, Peñalosa afirmou que "uma cidade avançada não é aquela em que os pobres têm carro, mas aquela em que os ricos usam o transporte público". É o que se vê na Europa, onde a maioria da população usa o transporte coletivo. Em Londres, por exemplo, do empresário ao balconista, de elegantes senhoras e modelos com salto alto a executivos com suas pastas, de estudantes de tênis a idosos ou turistas com malas e mochilas... Todos se encontram no transporte público, que fica muito mais interessante, diverso e seguro. Peñalosa faz ainda um crucial e útil lembrete aos homens públicos, ao dizer que “o poder é um meio, não um fim, e que o foco deve ser em como tornar a sociedade mais feliz".  

Parece tão simples, não? Por que não conseguimos que muitos dos nossos homens públicos tenham essa visão? Entendi... eles é que devem desenvolver essa visão sozinhos, a partir de si próprios, certo? Há exceções, claro, mas, no plano geral, é difícil. No entanto, não se pode desistir; é preciso aprender a escolher bem aqueles que nos representam – seus anseios, seus desejos, suas ações, seu coração e, sobretudo, seu caráter.

Após perder duas eleições sucessivas, Enrique Peñalosa foi reeleito prefeito de Bogotá de 2016 a 2019. Continuou sua obra, em prol da cidade como um todo, focando nos mais desassistidos e numa mobilidade urbana sustentável, um exemplo de visão e planejamento urbano para todos. 

Obs. As fotos da Colômbia, todas atuais, são de autoria da arquiteta Silvia Raquel Chiarelli, a quem agradeço imensamente.   

Referências:

https://www.fronteiras.com/leia/exibir/enrique-penalosa-o-urbanismo-contra-ataca

https://arqfuturo.com.br/post/urbanista-enrique-penalosa-e-eleito-prefeito-de-bogota  

https://www.estadao.com.br/cultura/o-urbanismo-contra-ataca/  

https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2015/10/26/interna_internacional,701501/na-colombia-enrique-penalosa-vence-eleicao-e-volta-a-ser-prefeito-de-bogota.shtml

https://citychangers-org.translate.goog/enrique-penalosa/?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tc

https://www.archdaily.com.br/br/01-145900/enrique-penalosa-aponta-sete-estrategias-para-melhorar-a-mobilidade-urbana