quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Ecos Culturais | O horror em imagens

Partindo de um panorama histórico crítico da representação de imagens de guerra, sofrimento e dor, a escritora e crítica estadunidense Susan Sontag (1933-2004) questionou o papel de imagens, fotografias e vídeos de tragédias humanas em seu texto Regarding the pain of others (1996), lançado em português com o título de "Diante da dor dos Outros" (2003) em tradução de Rubens Figueiredo. O argumento básico da autora era descobrir se o que era mostrado nas imagens, desde o final da I Grande Guerra até o presente, e hoje em tempo real, escancarando o horror das guerras, tragédias, massacres, genocídios e diversos tipos de sofrimento humano, teria algum efeito ou apelo moral sobre os indivíduos. Ou seja, se as imagens acabavam por gerar indignação e empatia, assim instigando à ação solidária, ou se, ao contrário, geravam indiferença e apatia, o que seria uma triste prova de que a sociedade se acostumara com imagens de angústia, de morte, de barbárie e de dor... Prova de que a sociedade ficara anestesiada e inerte ao sofrimento dos outros e, de certa forma, acabara por banalizar ou normalizar algo que nunca foi e nunca será banal, tampouco normal. 

Em seu texto, Sontag lembrava que a reprodução continuada dessas imagens, pelos veículos de comunicação, acabava por transformar a dor em lugar-comum, em fato comezinho, esvaziando a força da própria ilustração. Mais ainda: dependendo de como eram (são) feitos os textos e/ou legendas, haveria (há) uma mudança no que essas imagens queriam (querem) transmitir, o que poderia (pode) denunciar, suavizar ou até justificar o que havia sido retratado.  

S.Salgado. Série Gold. Divulgação

Para mim, que tenho prazer em fotografar, admiro e me emociono com a arte da fotografia, que busco o detalhe, foco meu olhar além do momento capturado e procuro entender o que está por trás do que vejo, algumas imagens sempre me vêm à mente: as que me chocaram, à época, me causaram e ainda me causam sentimentos de tristeza, desânimo, descrença e indignação, como:

--- As absurdas, cruas e doloridas imagens do mestre Sebastião Salgado para suas mostras, em especial, Êxodos, TrabalhadoresSerra Pelada e Gold (ver aqui);

Divulgação


--- A gritante diferença entre duas fotos tiradas pelo mesmo fotógrafo (Steve McCurry) da mesma garota afegã refugiada (Sharbat Gula), em um intervalo de menos de duas décadas: a foto tirada em 1985, quando Sharbat tinha de 12 a 15 anos, mostrava uma linda jovem de olhos verdes vivos, expressivos, curiosos e brilhantes; a outra foto da mesma Sharbat, em 2002, trazia uma mulher com olhos ainda verdes, traços de uma beleza discreta, mas em um rosto cansado, apagado e sofrido (ver aqui);  

Imagem do texto de L. Boff
--- A trágica e dolorida imagem do corpo do pequeno garoto refugiado sírio de três anos, Ayslam Kurdi, morto por afogamento no mar Egeu e encontrado numa praia, perto do balneário turco de Bodrum. A foto causou consternação geral, correu mundo, gerou protestos, movimentos, textos indignados de várias entidades e personalidades, como o teólogo e escritor Leonardo Boff (ver aqui) cobrando uma solução para o drama dos refugiados;

--- A surreal e terrível imagem de uma criança magérrima no chão, corpo curvado, cabeça sobre o braço, à beira da morte, vitimada pela fome e observada de perto por um abutre. A imagem, de 1993, é do fotógrafo Kevin Carter, no Sudão, país que, havia décadas, vivia em meio a uma violenta guerra civil (Ver aqui);

--- As revoltantes imagens mostrando como eram e como ficaram as cidades e regiões afetadas pelo rompimento de barragens de resíduos da Vale em Brumadinho e Mariana, além das tristes fotos mostrando o efeito destrutivo de outras tragédias climáticas (ver aqui); 

--- As imagens, fotos e vídeos atuais que, em tempo real, mostram o antes e o depois de cidades, povoados e regiões inteiras em zonas de guerra.

Horror em imagens! É inevitável: ações, atitudes, pensamentos, sentimentos, palavras e imagens produzem efeitos e têm consequências. É como se nos alimentássemos desse horror, e não só com os olhos. Kevin Carter, autor da dolorida foto da criança sudanesa, conseguiu-a meio por acaso, assim que chegou ao Sudão com a tarefa de fazer imagens para chocar a opinião pública e, talvez com isso, interromper aquele conflito de décadas. Carter era parte do “Clube do Bangue-Bangue”, formado por quatro fotojornalistas sul-africanos que vinham alcançando notoriedade mundial na cobertura de zonas de conflito e tensões, sobretudo na África do Sul. Além dele, faziam parte do grupo João Silva, Greg Marinovich e Ken Oosterbroek. De tão chocante, a imagem levou a um debate ético: é válido fotografar antes de ajudar? A partir daí, tendo como fundadores o próprio grupo Bangue-Bangue e Robert Capa, criou-se um movimento defendendo um fotojornalismo ético e artístico, argumentando que só teria sentido fotografar o horror, qualquer que fosse ele, se a imagem contribuísse para acabar com a situação que a gerou. 

A arte da fotografia tem seus mestres que dão dicas sobre a captura da "melhor" imagem. Se lembrarmos o que Roland Barthes falava sobre o "olhar fotográfico", o olhar que enquadra algo e elimina o entorno, pode-se dizer que o "olhar fotográfico" de Carter gerou o tal "enquadramento específico" e excluiu o contexto maior, destacando, em primeiro plano, aquela cena terrível. Naquela e em outras fotos, Carter também deve ter vivenciado um dos tais “momentos decisivos”, mencionados por Henri Cartier-Bresson, outro mestre do ofício. Mas esses olhares e enquadramentos cobraram um preço muito alto. Com o peso da tristeza por tantas lembranças de dores e danos, deprimido, com dívidas e uma imensa sensação de impotência, o fotógrafo suicidou-se em 1993, aos 33 anos.

Voltando à escritora Susan Sontag. No livro mencionado, ao cobrar responsabilidade dos que veem o sofrimento alheio, por meio de imagens, a autora lançou a pergunta fatal: como essas imagens nos atingem, que impacto têm em nós e qual seu efeito - elas nos deixam revoltados ou indiferentes? São perguntas a serem respondidas, com honestidade, por todos: os que capturam essas imagens, os que veem o resultado final desses cliques e os que se alienam do mundo. Que sentimentos despertam em nós? Porque, como dizia Sartre, não escolher também é uma escolha. 

Por fim, ela ainda esclarece que a fotografia também é documento e, como tal, tem o poder de registrar e formar a memória coletiva de tudo, inclusive de tragédias, para a sociedade conscientizar-se do que deve ser sempre lembrado, para não deixar que essas situações sejam esquecidas e para que nunca mais se repitam. 

Referências

CARVALHO, Bruno Leal P. de Carvalho. O abutre e a menina: a história de uma foto histórica (Artigo). In: Café História. Publicado em 27/fevereiro/2012.  Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-abutre-e-a-menina-a-historia-de-uma-foto-historica/.

SILVA, Arlenice Almeida da. Diante da dor dos outros (artigo). In: Carta Capital. Publicado em 15 de dezembro de 2014. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/diante-da-dor-dos-outros/.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros’. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2025. 

TRIGUEIRO, Gabriel. Em livro, Susan Sontag apresenta iconografia do sofrimento humano (artigo). In: O Globo. Publicado em 17 de abril de 2015. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/04/17/em-livro-diante-da-dor-dos-outros-susan-sontag-apresenta-iconografia-do-sofrimento-humano.ghtml

https://www.nationalgeographicbrasil.com/sharbat-gula/2017/12/famosa-menina-afega-finalmente-consegue-um-lar-capa-historica-refugiado-afeganistao  

https://anitadimarco.blogspot.com/2024/10/ecos-culturais-sebastiao-salgado.html

https://anitadimarco.blogspot.com/2024/12/ecos-ecologicos-terra-que-chora.html  

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