sábado, 29 de julho de 2017

Ecos Literários e Arquitetônicos | Thiago de Mello

Thiago de Mello. Imagem: Rede Brasil Atual
 Thiago de Mello (Manaus,1926) é um poeta de alma nobre que me traz boas e diversas lembranças. Sempre que ouço seu nome ou leio alguns de seus poemas, associo-o à figura de Lúcio Costa, o amigo arquiteto que projetou o lar do poeta em Barreirinha, no final dos anos 1970. Até hoje, o refúgio é conhecido pelos moradores da localidade, como "a casa que Lúcio Costa fez para o poeta", ainda que desconheçam quem foi o arquiteto. Como homenagem e como orgulhoso mestre de obras de sua própria casa, o poeta criou o poema "Canção para Lúcio Costa".

Associo também o nome de Thiago de Mello ao do grande poeta chileno Pablo Neruda, de quem o amazonense se tornou amigo e tradutor. Em seu livro "Faz Escuro mas eu Canto", o brasileiro fez uma carinhosa dedicatória ao chileno: "Para Pablo Neruda - meu amigo Paulinho - voz cristalina e ardente, que se ergue cantando, cada amanhecer, pela libertação de nossa América". 

Seu nome me traz de volta momentos de minha juventude e evoca sentimentos de luta e esperança em um mundo mais fraterno, justo e solidário. Exemplo de coerência, Thiago de Mello viveu, escreveu e lutou com as armas que tinha – a palavra escrita, a sensibilidade e o lirismo - para defender a Amazônia, a justiça, a solidariedade e a utopia.  Dizia que seu compromisso não era com literatura, mas com a vida. 
Casa do poeta em Barreirinha.
No coração da mata, à margem direita do braço mais comprido - e chamado Paraná do Ramos - do Rio Amazonas, Barreirinha viu o poeta nascer. Dali, ele foi para Manaus, depois para o Rio de Janeiro para cursar Medicina, mas a veia poética falou mais alto e ele largou a faculdade no quarto ano para se dedicar inteiramente às Letras. Foi ser poeta; foi ser "gauche" na vida, como diria um ilustre poeta mineiro. Poeta da vida, da alma, da floresta e da utopia. Perseguido pela ditadura, implantada no Brasil em 1964, o amazonense foi perseguido e acabou por exilar-se no Chile, até 1973, ano da queda de Salvador Allende. De lá foi para a Alemanha. Ao Brasil, voltou em 1977. 
Respeitado, premiado e admirado, suas obras foram traduzidas em mais de 30 idiomas. Como tradutor, além de Neruda, traduziu para o português obras de T. S. Elliot, Ernesto Cardenal, César Vallejo, Nicolas Guillén e Eliseo Diego.    
Thiago de Mello. Imagem: mundocordel.com

Hoje, com 91 anos, o poeta de alma nobre e humilde credita, como de fundamental importância para seu aprendizado, a amizade com outros ícones da poesia como o próprio Neruda, Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Além dos já nomeados, entre seus pares, amigos e admiradores, estão Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia Márquez, Ernesto Cardenal, Fidel Castro, Mario Benedetti, Salvador Allende e Violeta Parra. É o único representante brasileiro na Antologia Universal da Poesia Atual, publicação lançada em 2014, pela Academia de Letras da Romênia, que reúne obras de 100 poetas do mundo todo. 
Algumas de suas obras, presentes na minha estante, estão gastas de tanto serem folheadas: Vento Geral (obras de 1951-1981), Faz escuro mas Eu Canto (inclui Estatutos do Homem, publicado abaixo) e Horóscopo para os que estão vivos, entre outras. A força de suas criações vem da autenticidade, sensibilidade, coerência, energia e alegria de viver do poeta.  

Em texto bastante poético conquanto descritivo, a escritora Isabel Vieira narra o trajeto feito por ela ao longo do rio Amazonas e seus braços, paranás, igarapés e igapós, para um encontro com o poeta em Barreirinha, com a casa projetada por Lúcio Costa e com seu refúgio de Andirá. Sobre o estado das casas do poeta, projetadas por Lúcio costa, veja o desabafo de Simão Pessoa, cronista acidental de Manaus (aqui). 
Como exemplo, não poderia deixar de colocar aqui Os Estatutos do Homem, obra que entendo como atemporal e que faz parte da Antologia Universal acima mencionada. 


Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente) 
Thiago de Mello (1964, em protesto contra a ditadura militar).
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade.
agora vale a vida, e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio,
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo,
porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido,
tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

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