terça-feira, 2 de julho de 2019

Ecos Culturais | Restaurando A Última Ceia de Da Vinci


A Última Ceia. Leonardo da Vinci, Milão. Imagem: Divulgação
Ainda a respeito do grande artista renascentista homenageado na Itália, durante o ano de 2019 (Ler o post 2019. Ano de Leonardo da Vinci), é bom lembrar que Milão abriga grande parte das obras de Leonardo da Vinci. Depois da Mona Lisa, no acervo do Museu do Louvre, em Paris, sua obra mais famosa é a ‘A Santa Ceia’, justamente na capital da Lombardia. Feita entre 1495 e 1498 a pedido do Duque de Milão, Ludovico Sforza, a icônica pintura mural, de 4,6 x 8,8 metros, decora uma parede do refeitório do monastério dos frades dominicanos de Santa Maria delle Grazie. 

Vale lembrar que, aqui, Leonardo não usou a conhecida técnica de afresco (aplicação de pigmento ao gesso úmido), então muitíssimo utilizada. O artista preferiu usar a têmpera, técnica experimental que misturava gema de ovo aos pigmentos coloridos para depois aplicar a mistura sobre o gesso seco. No entanto, os problemas e rachaduras começaram a aparecer logo após a conclusão da obra, o que provou que a decisão não havia sido a melhor; e 20 anos depois, a pintura já mostrava graves sinais de deterioração. Além dos problemas da pintura em si, o próprio edifício enfrentou umidade, tempestades de verão, bombardeios, entre outros problemas. Embora o convento tenha sido reconstruído após a segunda guerra, a parede do refeitório, suporte para a pintura mural, ficou alguns anos sem proteção e completamente sujeita às intempéries.

 Pinin Brambilla
Leonardo da Vinci
Como em toda obra de arte, em função do desgaste provocado pela passagem do tempo, várias restaurações foram feitas, sendo a primeira em 1726. Todas bem intencionadas, sem dúvida, mas por vezes ineficazes e até prejudiciais. A última durou 20 anos, de 1977 a 1999, e conseguiu trazer a luminosidade das cores de volta à pintura. Foi liderada pela restauradora italiana Pinin Brambilla Barcilon que coordenou a equipe de especialistas. Brambilla é conhecida por restaurar obras de Giotto, Piero della Francesca, Tiziano, Caravaggio, entre muitos outros. A restauração de A Última Ceia de Leonardo foi o grande trabalho de sua vida. Natural de Milão, foi diretora do Centro Internacional de Conservação e Restauro "Venaria Realle", de Turim, um importante centro de formação de restauradores.

Assista aqui ao vídeo da BBC News, em italiano com legendas em português, que traz a restauradora, hoje nonagenária, falando sobre esse trabalho de amor que consumiu de 20 anos de sua vida profissional. Abaixo, um vídeo maior em inglês e italiano, com legendas em inglês, do qual foi extraído o vídeo acima.    


Agora, imagine colocar-se diante de qualquer obra de um gênio como Leonardo para um trabalho de restauração. O indivíduo deve tremer da cabeça aos pés e, sem dúvida, a decisão envolve bom senso, sensibilidade e um grande conhecimento teórico e prático, além de uma enorme dose de humildade. O trabalho de restauração é delicado, minucioso, longo, paciente e sempre, sempre sujeito a críticas. Cada restaurador é responsável pelas decisões que toma (decisões bem  fundamentadas, espera-se) a partir de seu entendimento no momento de avaliação e diagnóstico. Nesse aspecto, o trabalho é bastante solitário, como também o é o do autor de um projeto de arquitetura. O responsável pode trabalhar com vários especialistas, historiadores, arqueólogos, pintores, antropólogos, dezenas de técnicos, mas no fim das contas, a decisão é sempre pessoal, e essa decisão pesa. O mesmo se dá nos trabalhos de restauração: no caso de A Última Ceia, cuja proposta era recuperar o recuperável, houve a retirada de cinco camadas anteriores de tinta, limpeza, secagem e recuperação de aspectos originais da obra. Brambilla afirma que espera ter feito as escolhas corretas, mas isso só o tempo dirá.    
A Última Ceia restaurada. Imagem: Divulgação
Vinte anos e milhões de dólares depois, em 2017, o plano era recuperar as condições ambientais do próprio refeitório, e não a pintura propriamente dita. O custo do projeto, de mais de um milhão de euros, foi financiado pelo empório gastronômico Eataly, único patrocinador privado, e pelo Ministério do Patrimônio e da Cultura e Turismo, da Itália. O projeto contou ainda com várias instituições que participaram da pesquisa inicial: ISCR, CNR, Politecnico di Milano, Universidade Milano Bicocca.
Prevista para terminar ainda em 2019, a intervenção envolveu o uso de maquinário específico para, diariamente, jogar no ambiente 10.000 metros cúbicos de ar limpo, três vezes mais do que antes. Assim é possível minimizar o efeito danoso das micropartículas de poeira, micropoluentes e a umidade produzida pela respiração de milhares de visitantes, que continuavam a degradar a obra. Isso tudo sem falar da ação do tempo, inexorável. A campanha para sua restauração, intitulada “Um jantar não pode terminar assim”, foi pensada para aumentar a vida da obra em 500 anos e permitir a visita de um número maior de pessoas do que as 30 permitidas hoje, a cada 15 minutos. Veja aqui o vídeo, em italiano, de Oscar Farinetti, dono do Eataly, sobre a decisão de proteger a famosa pintura de Leonardo.

Agora, uma pequena ponderação. Diante da visão de uma obra de arte, seja em livros, documentários ou reproduções, é natural sentirmos emoções variadas: surpresa, encantamento, alegria, choque. Porém, nada se compara à sensação provocada pela experiência ao vivo e em cores: aí, o tempo para, ficamos estáticos e extáticos, embevecidos e arrepiados; a respiração fica suspensa; a emoção brota e lágrimas enchem os olhos. Tomados por uma sensação de arrebatamento e perplexidade, é natural que nos questionemos sobre a inspiração que tomou conta do gênio que concebeu e executou aquela ideia, aquela obra, aquela visão. 
Esse é o efeito poderoso, avassalador e único da Arte, efeito insubstituível e inexorável no tempo e no espaço, na formação, criação de repertório, no aprimoramento do pensamento crítico e no desenvolvimento do espírito humano. Não importa o que digam. Arte, Filosofia, História, Geografia, Ciências Sociais, Antropologia, Literatura... as Humanidades, em geral, só tornam o homem humano, muito mais humano, despertando o melhor de cada um para agir no mundo de todos.  

Referências:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-36484529
https://www.bbc.com/portuguese/geral-48138261  
https://veja.abril.com.br/entretenimento/restauracao-da-mais-500-anos-de-vida-a-ultima-ceia-de-da-vinci/
https://www.eataly.net/it_it/mondo-eataly/una-cena-cosi-non-la-puoi-perdere/

6 comentários:

  1. Belíssimo texto e vídeo. Conhecer sobre a história da arte é entender um pouco mais da evolução humana na sua manifestação mais bela.

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    1. Não é? E o trabalho de um restaurador é de uma grandeza única! Emocionante mesmo! Obrigada por participar. bjs
      Anita

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  2. Valquíria Maroti Carozze3 de julho de 2019 às 13:48

    Parabéns, Anita!
    Então, cinco camadas aplicadas de tinta, antes dessa última restauração!..
    Que coragem e responsabilidade...
    Como disse a você, já fui a Milão. Mas não consegui ver a Santa Ceia por motivos de restrição e necessidade de fazer reserva beeem antes.
    Agora, vendo seu texto, melhorou: tanto o arejar, quanto as cores reavivadas, fazem valer a pena a visita.
    Assisti o vídeo sobre a anciã restauradora. Adorei!
    Abraços
    Já encaminhei para alguns contatos.

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    1. Eu também não consegui ver por causa da restauração... Mas está na lista, sem dúvida!
      Obrigada por estar sempre aqui, Valquíria. beijos
      Anita

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  3. Ler este texto seu é voltar na história de um artista de alma brilhante.E a restauração trás a nova iluminação desta linda pintura.

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    1. Sem dúvida, restauração é um trabalho belíssimo e de grande valor, mas nem sempre devidamente apreciado. é o que permite que as grandes obras do passado cheguem a nós, mais ou menos como eram. Obrigada por participar, mas não se esqueça de deixar seu nome. Um abraço
      Anita

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