terça-feira, 20 de julho de 2021

Ecos Literários | Entrelaçamentos e Inspirações

Desde sempre, as conquistas humanas fazem são parte de uma imensa lista de entrelaçamentos, influências, inspirações, sínteses e complementações. Em qualquer campo. Os próprios filósofos clássicos partiam de aspectos já estudados por seus colegas e, inspirados pelos estudos prévios, eles se aprofundavam e criavam novas possibilidades e formas de pensar, o que permitiu o avanço das teorias filosóficas. Assim é com tudo, com a ciência, a medicina, a engenharia, as artes. Porém, o que não deve acontecer é a apropriação intelectual indevida ou, pior ainda, uma tentativa de apagamento. 

Getty Images.
Apagamento é o que sofreram (e sofrem) inúmeros grupos étnicos, religiosos e políticos pelo mundo afora. É de amplo conhecimento que, no mais das vezes, a história é contada, recontada e oficializada a partir do olhar dos vencedores. Sempre existiram, porém, existem e existirão versões alternativas da história que, em geral, são muito pouco divulgadas, ou divulgadas apenas em determinado setor, por meio de textos, livros, trechos de livro, cartas, obras de arte, fotografias, poemas, canções, projetos etc. Há numerosos estudos sobre o tema, dentre eles pesquisas envolvendo a tradução como ferramenta para criação de versões alternativas da história. E isso ocorreu e ocorre em vários períodos da história. Nada disso é novidade.

Mas voltando, à apropriação indevida. No caso de cidades, por exemplo, não é porque o espaço é público, que não é de ninguém. Ao contrário, todos são responsáveis pelo bom uso e manutenção desse espaço, justamente porque é de todos. Não é porque está na internet que não é de ninguém. Na linguagem acadêmica, isso é plágio e é crime. Alegar o insosso “eu não sabia” não convence, desrespeita e ofende. É preciso honrar a verdade, o conhecimento e a pesquisa.

João Cabral. Imagem: Divulgação

O fato é que, ao longo da história, um conhecimento pode inspirar e disparar uma série de estudos derivados. Mas é preciso respeitar essa inspiração, o ponto inicial, a trajetória, o tempo, o esforço de outros e a verdade de todos os grupos. Só assim crescemos, como humanidade. É preciso pesquisar, respeitar, refletir e ousar. Afinal, a pesquisa parte de um ponto de vista inicial, como diz o teólogo Leonardo Boff, mas esse ponto é a visão que se tem a partir de um ponto. Pode haver outros, então, além de “revisitar” – como querem as novas formas de expressão – esse ponto de vista, é preciso citar e reverenciar o ponto inicial, o já feito, o já pesquisado, o já lançado, o já vivido. Ou o primeiro grito, como no poema Tecendo a Manhã, do João Cabral, lembrado pela colega tradutora Telma Franco Diniz. 

Tecendo a manhã

(João Cabral de Melo Neto, 1920—1999)

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Publicado no livro A educação pela pedra (1966). In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.345. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)

5 comentários:

  1. Parabéns, outra vez, Anita!
    E cada um embasado em sua plataforma, só pode ver pelo ponto de vista que adota.
    Respeito e verdade são o mínimo, ao se fazer pesquisa.
    Escrever é um trabalho muito sério e autoria é sagrada.
    Enfim... como estudo de mandalas, por exemplo, a gente vê que todos uma vez na vida pensaram ser possível roubar uma centelha do Universo. Não. Não é possível. É ilusão, engano.
    Abraços

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    1. Que belo comentário, Valquíria. A comparação com a mandala é sensacional? Não é possível mesmo. A verdade, no fim, sempre aparece... Beijo grande e obrigada

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