quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Ecos Culturais | A casa da Infância

Desenho: Maitê Colaianni Maciel, 7 anos, ago. 2021.

Quando eu era criança, em São Paulo, morávamos na zona norte da cidade, num bairro hoje chamado Vila Esther, entre Santana e Jardim São Bento. Com quatro ou cinco casas, no máximo, a rua não tinha calçamento, rede de esgoto e iluminação pública, mas nada disso importava porque a rua e os lotes vagos eram meu refúgio e palco de muitas brincadeiras. Fora do horário e das tarefas escolares, a meninada brincava de roda, de pular corda, amarelinha, queimada, mãe-da-lata, esconde-esconde, pique-pega, adoleta e por aí vai.... Hoje, anos depois, quem passa pelas transversais da Avenida Braz Leme, perto do Campo de Marte, não tem a menor ideia de como eram aqueles arredores nos anos 1950-60.

“Uma cidade que for boa para as crianças será um lugar bom pra todo mundo”. Nelson Mandela

 

Para começo de conversa não me lembro da existência de código de obras, legislação de uso do solo, muito menos exigência de recuos. No entanto, as poucas casas existentes eram térreas, mais longas do que largas, dispostas em lotes estreitos e compridos, e o bom senso imperava. Não me lembro de discussões entre vizinhos com referência a lotes, divisas, muros etc. A casa da frente do nosso lote, dos meus avós italianos, já existia. Foi a segunda casa da rua e do bairro. Meus avós - "vô" Chico e "vó" Rosária - muito se esforçaram para a construção da casa. Ele era fiscal da Companhia Municipal de Transportes Coletivos - CMTC, ainda no tempo dos bondes, e ela trabalhava de manhã, de tarde e à noite para atender às encomendas de pão e macarrão caseiros, lavava roupa para fora, gerenciava a família e ainda cuidava da construção da casa com o produto do seu trabalho.

A casa dos meus pais (minha casa) foi construída conjuntamente pelo meu pai e meu tio materno, Omar Portes, avô do primo Renato Portes (que só conheci virtualmente e há pouco tempo). Tio Omar veio especialmente de Goiânia para ajudar meu pai Pascoal (ainda solteiro) a construir uma casa onde ele, Pascoal, e minha mãe Adélia (irmã caçula do tio Omar) morariam depois do casamento. Tio Omar ajudou na construção da casa, retornou a Goiânia e nunca mais voltou, mas deixou sua marca naquela casa de paredes simples, sólidas e com um desenho mais do que lógico.

Então, minha casa e a casa de meus avós ocupavam o mesmo lote comprido e estreito (8m x 50m) e eram rebatidas. Exatamente iguais, as duas casas eram coladas a uma das divisas laterais do lote, abrindo-se para o outro lado: um grande e comprido quintal com tudo aquilo a que tínhamos direito. A "divisa" desse lado era feita com plantas - samambaias, costela de Adão e muitas flores. Hoje isso teria o nome de "cerca viva". Na época, era tudo muito natural... Minha mãe (que me ajudou a compor essas memórias) cuidava do jardim. Ainda junto à "cerca viva", a meia distância entre a frente e os fundos do terreno, havia uma amoreira que demarcava, de longe, a divisa do lote. A amoreira, sua sombra, seus galhos e frutos foram palco de muitas e muitas brincadeiras (e tombos) das poucas crianças da rua - nós, nossos primos e alguns vizinhos. Nesse trecho do quintal havia ainda uma profusão de suculentas que serviam de alimento para as bonecas. Afinal, quando minhas primas nos visitavam, a hora do chá das bonecas era sagrada.  

Vô Chico e vó Rosária, nas Bodas de Ouro, 1962.

Havia ainda uma área cimentada e dois barracões para os muitos apetrechos e ferramentas do meu avô. Ao lado dos barracões, mais perto do centro do lote, uma casinha para os cachorros - e sempre havia dois cachorros lá em casa: Peralta, Tigre, Radar.... Aliás, os barracões eram um mistério à parte, cheios de objetos estranhos que atraíam nossa infindável curiosidade infantil: o menor vivia trancado, era escuro, abafado e cheio de ferramentas "perigosíssimas", como enxada, enxadão, foice, machado, tesoura para podas etc. Ao lado do pequeno, o maior não tinha portas, só um telhado com telhas de amianto (!) e três paredes com prateleiras repletas de traquitanas – algumas ferramentas mais comuns, botas, chapéus, sacos de ração, gaiolas, vasos, adubo etc. Para nós, tudo era matéria-prima do nosso brincar. Para meu avô, nem tanto. Ah, sim. Os dois barracões eram de terra batida.

O “fundo do quintal” para nosso olhar infantil parecia não ter fim; o lote parecia maior, mais largo, sem fim. Descobri, depois, que parecia não ter fim porque não conseguíamos enxergar a cerca (feita manualmente de ripas de madeira) através das diversas árvores existentes, plantadas por eles - laranjeira, goiabeira, jabuticabeira, amoreira e um parreiral, cujas uvas eram solenemente colhidas e servidas a cada Natal (ver Antigas Comemorações). Isso sem contar a "horta" com milho, jiló, couve, almeirão...Ah, também havia o cercadinho só para os coelhos, porque as galinhas ficavam soltas pelo quintal e dormiam nos poleiros e nas árvores!


No centro do terreno, colado à outra divisa lateral, um elemento organizava e dividia o conjunto: uma lavanderia e um banheiro. Dali saíam três degraus de cada lado para acessar um tipo de alpendre de (que chamávamos de "terracinha"), passagem obrigatória para entrar e sair das casas. Era como uma antessala, um hall, um divisor não de águas, mas de territórios. Separava o território da minha casa e o da minha avó, o que para mim não fazia muita diferença, porque eu vivia lá, num entra e sai danado. Cada "terracinha" era separada do quintal por uma meia parede, meu local preferido de brincadeiras: sobe escadinha, desce escadinha, pula mureta, cavalga, desce do cavalo, torna a subir... a mureta era o grande alazão dos primos.

Meu olhar (ainda não sabia que seria arquiteta, mas bem que poderia ter imaginado) também já era atraído pelo ladrilho hidráulico geométrico da casa da minha avó. As cores, vinho e bege. Os desenhos, losangos de vários tamanhos, formando uma linda estrela. Aliás, o piso já foi tema de uma postagem aqui no blog Anita Plural https://anitadimarco.blogspot.com/2017/01/memoria-paisagem-construida-ladrilho.html. No post, falo do surgimento dos ladrilhos, prensas hidráulicas, materiais empregados e moldes. Naquela época, quando já admirava aqueles desenhos, nem imaginava o trabalho necessário para produzir aquelas maravilhas. Ainda bem que, hoje, esses ladrilhos são valorizados e estão em voga de novo. Belo ofício!  

 Mas  voltando à casa da infância, nossa casa não era grande, nem imponente, nem nobre. Era comum, dessas casas simples de bairro popular, bem construída, com um quintal desordenado para os padrões atuais, mas era um palácio para nós. Tínhamos a "terracinha", quintal, terra, água, plantas e a rua; tínhamos matéria-prima para o brincar; tínhamos apoio e participação da minha mãe nas brincadeiras e, principalmente, carinho, escuta e liberdade. Tínhamos uma família presente. 
A casa onde passamos os primeiros anos da vida não é apenas passado ou fonte de lembranças e memórias. É um tesouro vivo impregnado em nós, lugar de inspiração, de escuta, de descobertas, aconchego e desafios. Meu sonho é que, um dia, todos tenham não apenas uma moradia digna (que é direito de todos), mas uma casa da infância que aconchegue e tenha eco para formar, inspirar e cultivar sonhos pela vida afora.

26 comentários:

  1. "Ai que saudades que eu tenho da aurora de minha vida, da minha infância querida".
    Vi direitinho sua casa da infância.
    Ou seria a minha?

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    1. A de toda uma geração que usava o quintal, a rua e a cidade, sem medo de ser feliz. Bjs

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  2. Anita que lindo este texto!!! Ele remeteu à minha história tbm. Bricavamos tanto que quando deitava na cama, havia uma sensação que nosso corpo ainda brincava. Obrigada pela oportunidade de me permitir lembrar tbm. Está gravado no corpo e na alma. Maria Inez Carvalho

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    1. Acho que foi a época, né? Simplicidade e felicidade tém tudo a ver. Obrigada, meu bem. Bj

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  3. Nossa que belo texto, eu pude ver esse ambiente descrito! Que saudades do meu amado avô Omar, ele era muito bom no que fazia, o legado dele foi cumprido, uma vez ele falou pra mim que só morreria tranquilo depois de fazer a casa de cada filho e assim ele fez! É quando todas essas restrições acabar quero conhecer todos pessoalmente, quebrar essa corrente antiga do nossos antepassados, sinto falta de aconchego familiar e a humanidade precisa disso!

    Parabéns Anita! 😍😍😍😍😍💖💖💖💖

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    1. Oi, Renato. Com certeza, essa pandemia mudou muita coisa. Iremos nos encontrar, sim, em breve, logo que der. Até Cida Portes, filha do tio Argemiro, comentou comigo sobre o texto. Grande abraço, meu querido primo ainda virtual.

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  4. Anita, que texto inspirador! Voltei na minha infância e até senti o cheiro da casa da minha avó, que era onde nós mais ficávamos. Obrigada por nós trazer essas memórias. Bjs no coração.

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    1. Imagino que deva ser a Kaká, pelo beijo no coração. Obrigada, meu bem. Bjs no seu tambem

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  5. Verdade!!
    Vivências q me fizeram reviver as minhas próprias.
    Tbem cresci em uma rua de chão e me recordo, claramente, de eu aprendendo andar de bicicleta c meu pai, das festas juninas, dos piques- pegas após a escola, do calçamento da rua e tantas outras...
    Até me fez descer uma lágrima de se.
    Muito bom revivê-las por intermédio de vc Anita. Grata!!

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    1. Acho que tem muito a ver com nossa geração, não é? Obrigada por comentar, Simone. Volte sempre, beijos

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  6. Bem... por distração esqueci de assinar o texto acima. Mas sou eu Anita, Simone!

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  7. Nossa que delícia voltar ao tempo, éramos muito felizes. Lembranças deliciosas da nossa infância onde fiz parte e vivencie cada cantinho desse nosso pedaço do paraíso. Adorava passar as tardes na casa da vó e principalmente poder brincar com os primos, claro que antes tínhamos que ajudar a limpar a casa. Quantas vezes passávamos a enceradeira na sala e ensina dos meus pés, kkk tudo muito divertido. Depois de brincar a tarde a pipoca que cheiro bom lembro que você as separava por ordem de tamanho e as comia em ordem decrescente. Saudades!!!❤️❤️❤️❤️

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  8. Hahahahahah, não me lembrava de como comia as pipocas... Eu me lembrava de que fazia..Agora,lembro que minha irmã e eu passávamos a enceradeira e tirávamos o pó, mas não que passávamos nos seus oes. Que horror!!!..hahahhahahah e que memória! Bjs saudosos

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  9. Um amor suas memórias. Provocativas das minhas também. Dá pra sentir até o cheiro do lugar. 😍Já estou compartilhando.

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    1. Oi, Maria Inês... imagino que a sua também deva ter sido genial, lá em Curvelo. Obrigada, querida. beijos e saudades

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  10. Que texto bonito! Também voltei à minha infância. E lembrei muito da casa da minha avó em Jundiaí.

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  11. Me apaixonei pela "terracinha".
    Muito me lembra, tudo isso, as casas da minha avó e da minha mãe.
    Até hj luto pra ir conservando a casa da minha avó.
    Esses quintais compartilhados, essas memórias. Ainda bem que a infância foi tão abençoada.
    E você teve a imensa felicidade de se realizar na Arquitetura. Acho isso muito lindo.

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    1. Oi, Valquíria, a casa não existe mais. Hoje tem outra casa lá, "a casa Azul", mas as memórias ficam com a gente né, por isso o blog é importante, para deixar registrados pensamentos, lembranças, emoções... Um dia a gente se vai, mas o virtual fica. Obrigada, meu bem, grande abraço

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  12. Que texto lindo!Saudades da infância,lembranças queridas.Todos nós lembramos da infância gostosas,brincadeiras,correrias e das casas de nossos avós e a nossas.Tempo bom,não volta mais!!Bebel

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  13. Delicioso texto que também me lembrou minha infância, uma infância pra lá de feliz. Alias, contrapondo a famosa canção, "a gente era feliz, e sabia".
    Parabéns.
    Carlos SA

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  14. Minha infância foi muito parecida com a sua. Que saudades!!!!!!
    Rita Scardinho

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    1. Que beleza, Rita! Conseguiu comentar, obrigada, querida... agora espero sempre seus comentários.. beijos

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