sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Ecos Arquitetônicos | Espaços de Adoração (2)

Óbidos - https://www.obidosportugaltourism.com/guide/igreja-de-santiago.html
Já há tempos, temos lido a respeito da diminuição da frequência de público nas igrejas, templos e edifícios religiosos, sobretudo na Europa e na América do Norte. Em função disso, quando essa função não é mais exercida, o imóvel é vendido ou sublocado. Assim, é cada vez mais frequente  a conversão/adaptação do uso religioso para outros usos. A maior parte dessas conversões privilegia o uso habitacional, mas não só. Lembro-me, por exemplo, de uma livraria ocupando a antiga Igreja de Santiago na deliciosa cidade de Óbidos, em Portugal. Bem frequentes ainda são usos administrativos (sede de entidades e organizações não governamentais), serviços como educação (bibliotecas, clubes de leitura, cursos variados e grupos de discussões), culturais (galerias de arte, teatros, auditórios, exposições e concertos) e até usos mais comerciais com lojas, restaurantes e hotéis.   

Um desses artigos chamou minha atenção. O autor, Rick Reinhard, publicou na revista virtual Common Edge, o sugestivo título: What Would Jane Jacobs Do? Toward a New Model for Houses of Worship. De início, falando de igrejas cristãs, o autor faz uma brincadeira com as inicias da frase em inglês What would Jesus do? –  WWJD – (O que Jesus faria?) com as iniciais de outra pergunta a ser feita pelas cidades: What would Jane Jacobs do?  – WWJJD  – (O que Jane Jacobs faria?). Segundo o autor, um simples “J” a mais poderia causar diferenças significativas nas cidades. E todo arquiteto e urbanista conhece Jane Jacobs.

https://commonedge.org/what-would-jane-jacobs-do-toward-a-new-model-for-houses-of-worship/
Explico. Jane Jacobs, nascida no Canadá, é autora do icônico livro Morte e Vida das Grandes Cidades, lançado em 1961. Sua veia de ativista e estudiosa do urbanismo e da sociologia deixou um legado na área do planejamento urbano e influenciou de vez o urbanismo moderno. No livro, ela destaca quatro aspectos que transformam cidades comuns em ótimas cidades: diversidade de usos; quadras pequenas para permitir deslocamento fácil de pedestres e com fachadas ativas (nada de paredões); mistura adequada de edifícios antigos e novos (harmonia na paisagem urbana); concentração de pessoas de média a alta para garantir vida ao local, movimento e segurança. 
 
Segundo o autor, igrejas em geral falham em três deles: têm uso único; ocupam imensas quadras, são cercadas e não têm fachadas ativas; não existe a mistura de construções novas e antigas; e têm pouco uso, com baixa concentração de pessoas no dia a dia, às vezes, ficando fechadas e vazias ao longo da semana. A partir daí, ele propõe que esses edifícios, além da devida e necessária manutenção: 1-diversifiquem seu uso, incluindo o habitacional, o que garantiria a utilização contínua do local, movimentando mais as cidades e deixando-as mais agradáveis e seguras para os pedestres; 2-acomodem áreas de lazer, eventos musicais e mercados em seus estacionamentos; 3-aluguem espaços extras para eventos de outras comunidades, empresariais ou comerciais; 4-derrubem cercas e muros envoltórios; 5-aumentem a integração com a comunidade e sua história, criando espaços de discussão, aprendizado, pesquisa e exposições. Em suma, propõe deixar esses edifícios mais vivos, vibrantes, com constante afluxo e permanência de pessoas.

Livraria em Maastricht, Holanda.
Quando a legislação urbanística dificulta a mudança para os novos usos, o autor propõe a venda de edifícios religiosos com problemas financeiros  e justifica dizendo que é preciso criar um novo modelo de espaços de adoração, espaços menos impenetráveis e com usos mais inclusivos e diversificados. Assim, tanto essas instituições quanto a comunidade poderão sobreviver e progredir com novos usos, acessibilidade e alta densidade, de acordo com o modelo proposto por Jane Jacobs. O artigo traz alguns exemplos:

1-Centro de São Jax, em Montreal, no Canadá. A igreja anglicana de 1864, além de manter o caráter e o papel de um edifício religioso de dar conforto espiritual à comunidade, também ajuda materialmente outros grupos, como os de apoio a indígenas e a refugiados, outras entidades com impacto positivo na comunidade, um circo e uma escola de circo.  O centro foi desenvolvido, em 2019, pelos Centros Trinity, fundação que atua com inúmeras instituições religiosas nos Estados Unidos e no Canadá.  

2-Distrito Catedral, em Jacksonville, Flórida. O distrito se desenvolveu em torno da catedral episcopal de São João. São 118 acres, de um bairro agora verde, vibrante e com moradores de várias idades que moram, trabalham, estudam e se divertem juntos. A administração é de uma organização sem fins lucrativos. Hoje, o distrito abriga, cinco edifícios religiosos históricos, 320 apartamentos em construção e 1500 moradores, além de vários tipos de serviço e lazer.

3- Mollo Village, em Louisville, Kentucky. Mollo significa bem-vindo, no dialeto Xhosa, da África do sul. Ou seja, todos são bem-vindos na comunidade. Antes a área era propriedade da igreja St. Peter’s United Church of Christ. Inaugurada em 2021, hoje é um bairro de uso misto, de 2.800 metros quadrados, no distrito histórico de Russell. O objetivo inclui oferecer serviços e lazer para a população mais pobre, além de ações para ressignificar, renovar e transformar a vida de seus usuários, através da educação, saúde, serviços e apoio.  

Outra atividade bem difundida e que convive com o uso religioso são as apresentações musicais, de coral e música de câmara aproveitando a excelente acústica desses edifícios. Felizmente, a prática vem se disseminando aos poucos aqui no Brasil, sobretudo nas igrejas das cidades históricas, mas são muito mais frequentes na Europa, como nos relatou a colega tradutora Joana Arari, apreciadora de concertos nas várias igrejas de Edimburgo, na Escócia, como os da Catedral Episcopal St. Mary e da Holy Trinity Church, entre outras. Tomara que a moda pegue e se espalhe cada vez mais!  

E, você, leitor, o que acha da ideia?

Referências 

https://commonedge.org/what-would-jane-jacobs-do-toward-a-new-model-for-houses-of-worship/ https://www.molovillagecdc.org/the-village

https://cathedraldistrict-jax.org/  

http://stjax.org/en/home 

https://www.edinburghexpert.com/blog/new-congregations-edinburghs-repurposed-churches

https://www.gazetadopovo.com.br/haus/arquitetura/igrejas-fechadas-holanda-viram-cafes-museus-bares/   

https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/08.087/5238

https://www.cathedral.net/music

10 comentários:

  1. Grande artigo, Anita.
    Estou encantada. Vou compartilhar com outras pessoas .
    Anita, vc pode fazer disso um trabalho muito maior. Eu na sabia dessas características das igrejas. Que coisa moderna!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Valquíria. É um tema apaixonante, né? E alguns usos se encaixam como uma luva. Valeu pela presença constante. Grande abraço....

      Excluir
  2. Oh! Que honra estar citada aqui! Adorei texto 😘 agora quero visitar uma dessas bibliotecas!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ei, Joaninha, como não ser citada???? Adorei os seus exemplos .. bjs

      Excluir
  3. Conversando com um holandês, ele me disse: Na minha terra não acreditamos mais em deus. Então demos outros usos para as igrejas.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Exatamente, sobretudo na Holanda vi muitas ex-igrejas transformadas.....bjs

      Excluir
  4. Minha cunhada mora em Boston, numa antiga igreja, que se transformou em edifício residencial. Uma das janelas tem um vitral. Nunca antes tinha imaginado essa transformação.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Cris, alguns projetos são incríveis mesmo.... E os vitrais, lá no alto, daí um toque todo especial...obrigada, bjs

      Excluir
    2. Oi Cris. Você tem fotos? Queria ver!

      Excluir
  5. Muito interessante seu texto.Não sabia destas igrejas que prestam esses serviços a comunidade. Será que no Brasil conseguiriam??

    ResponderExcluir