sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Ecos Imateriais | Chacoalhão ou lugar comum?

A partir do final dos anos 60, frases escritas nos muros das grandes cidades tinham um objetivo claro: chamar a atenção, denunciar, despertar, provocar, chacoalhar. Os graffitis vieram da rua, dos guetos, da periferia e foram tomando conta dos muros urbanos, a grande tela através da qual os invisíveis eram vistos e podiam se expressar. Ou melhor, até podiam, mas a mídia não lhes dava espaço, repassando ao público apenas a versão que era de interesse da própria mídia e de certos grupos, uma versão que, de tanto ser repetida.... 
Mas, sobretudo com a pandemia de Covid-19, essas frases de chamada à consciência social foram sendo substituídas, em grande parte, por frases de efeito, "mensagens de otimismo" ou citações religiosas. Lidas aqui e acolá, em muros e redes sociais, são repassadas impunemente e à exaustão. Nada contra frases profundas e verdadeiras que, de fato, nos fazem refletir e questionar nosso comportamento, frases que instigam o observador e estimulam seu autoconhecimento para que a pessoa comece a agir no sentido de transformar o mundo num lugar melhor para todos os povos.

O que chama a atenção e entristece é perceber que essas mensagens viraram "moda", já que muitos desses “repetidores” nem se dão ao trabalho de refletir sobre seu significado, muito menos de agir de acordo com o que divulgam. E repetem, ad aeternum, chavões feitos e lugares comuns, como dizer que a vida é sempre igual, uma monotonia só, sempre a mesma coisa, como na música do Chico que diz: “Todo dia ela faz tudo sempre igual...”. 

Shamsia Hassani, primeira artista de rua afegã. Divulgação

Errado!  A pessoa que acha que é tudo sempre igual, provavelmente vive de forma mecânica, como uma máquina. Um dia nunca é igual ao anterior; é sempre uma nova oportunidade de fazer mais e melhor, de aprender, mudar e evoluir. Quando se tem essa visão de que cada dia traz uma nova possibilidade, tudo é diferente, porque não seremos mais os mesmos – estaremos mais velhos, mais cansados, talvez mais indignados, mais conscientes, sábios e solidários, menos tolerantes com as injustiças. Como diz o filósofo grego Heráclito – não se entra duas vezes no mesmo rio, porque mesmo que alguém volte diariamente àquela parte do rio, suas águas já terão superado obstáculos, contornado barreiras, ou seja, não é mais o "mesmo" rio.  

Mudar é inevitável e não vive de fato aquele que pensa segundo o conhecido "deixa a vida me levar”. Quem acredita nisso vive alienado, como um autômato numa bolha. Infelizmente, muitos ainda são assim e seguem vivendo como se não tivessem um papel, uma missão, um norte... como se não fossem responsáveis por cada ato praticado. No entanto, não se vive impunemente e, um dia, também eles terão um choque de realidade e despertarão à força...

Falando em despertar, vale lembrar o método certeiro de Santo Agostinho para se conhecer e se aprimorar: todos os dias, antes de dormir, ele fazia um balanço de seus pensamentos, palavras, atitudes e ações. Sozinho, perguntava-se o que fez, como fez, se repetiria o que fez, se seria possível melhorar (e de que forma) e, por fim, se partiria de coração tranquilo se fosse tirado da Vida naquele instante. Ademais, além dessas questões, cada um de nós poderia ainda perguntar-se se agiria da mesma maneira com alguém que nos é muito querido. A resposta a essas perguntas leva-nos a um mergulho profundo no nosso interior, trazendo-nos uma dose diária de autoconhecimento, desde que sejamos honestos e corajosos em nossas respostas. 

Reconhecer o que percebemos em nós é só o início. A seguir, é preciso escolher aprender e melhorar. A própria decisão afirmativa impulsiona a mudança e como pontapé inicial nesse caminho é aconselhável eliminar o que emperra essa caminhada: ignorância sobre quem somos no universo, preconceitos, orgulho, egoísmo, soberba, ressentimentos, apegos, desrespeito ao outro... entraves que impedem o fluir da vida de forma mais natural, como a água corrente cristalina vinda de fonte pura. Por uma questão de inteligência, que possamos nos colocar no lugar do outro e celebrar o fluir da vida em nós, essa força que nos impele sempre adiante e sobre a qual temos muito mais responsabilidade do que imaginamos. 

Referências 

https://outraspalavras.net/uncategorized/graffiti-arte-de-rua-poesia-protesto/

https://www.shamsiahassani.net/

17 comentários:

  1. Uma ótima reflexão! Obrigado por compartilhar seus pensamentos e sentimentos 💜💙 beijão pra todos!
    Daniel B Ortega

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  2. Grata Anita.
    A leitura nos conduz maravilhosamente dos grafites à reflexão cotidiana do que revelamos do nosso Ser. Da superfície ao profundo convite observador das razões determinantes de ações conscientes ou até padronizadas. Bjs Marta Ricoy

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    1. Consciência sempre, né? Já nos pedia o yoga, linda e antiga ciência da vida, cada vez mais atual. Bjs

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  3. Anita teu texto flui e está bem sintonizado com o momento presente .. estes 14 dias entre as eclipses do sol (pai) em lua minguante em libra (13.10.23) e da lua cheia (mãe) em touro (28.10.23), favorecem as transformações dentro e fora de nós.
    São dias favoráveis para nos despir do que carregamos que não tem nada de nós…ou melhor como vc disse “ reconhecer o que percebemos em nós é só o início” e então …iniciarmos um ciclo com maior consciência e envolvimento ( pois Marte está em escorpião) .
    Parabéns e obrigada
    Bjs IsaRe

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    1. Amém, querida. Mudar, evoluir é preciso, sempre, apesar de..... Bjs

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  4. Saudade dos tempos em que pixavamos Abaixo a ditadura, não pela ditadura, claro, mas por uma juventude mais sonhadora e em busca de justiça coletiva. Linda coluna, Anita. Zé Marcelino.

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    1. Exato, Zé. Hoje o individualismo corre solto. A gente tinha sonhos, lindos sonhos... Mas não podemos perder a esperança de transformar a sociedade .. beijão

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  5. Anita, diante de tudo o que você expõe a gente se sente convidada a ver que a repetição do dia a dia, do tempo que corre, tudo precisa ser celebrado como sagrado.
    Abs

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    1. Sim, Valquíria, o certo seria sacralizar cada ação nossa.. tenho certeza que o mundo seria outro. Abs

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  6. Ótimo texto Anitinha! Que bom ver muros escritos algo com inteligência. Expor um sentimento verdadeiro faz bem à gente.

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  7. Interessante essa reflexão.. as vezes passamos por certas frases escritas nos muros e pensamos o que o autor quer dizer, alertar, protestar ou desabafar..Belo trabalho.

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    1. Bem-vindo, Beto! É a arte de rua, muito mais que arte e muito mais que de rua... Grande abraço

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  8. Mergulhar em seu texto é aprofundar em si mesmo. Parabéns! Salvo algumas exceções ( pinturas artísticas com o consentimento dos proprietários dos imóveis), coloco-me contra as pixações e grafites por considerá-los uma forma de agressão ä propriedade alheia. Cartazes, faixas ou equivalentes podem fazer o mesmo papel de denúncia social. Abraços. ( Lilian Conde)

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  9. Anita, é o Aruam escrevendo! Fazer sempre tudo igual é não dar chance só universo de vir com uma nova ideia! Fazer diferente é o que faz a gente andar. O Grafiti é uma forma de comunicação, mas está sendo usada de uma maneira muito agressiva afrontando a beleza dos espaços! Acredito que podemos usar essa forma para aprimorar a nossa vida, contribuindo para uma reflexão sobre como vivemos e como nos relacionamos uns com os outros!

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    1. Oi, Aruam, há de tudo, mas muitos chamam a atenção e querem nos acordar. Vc conhece o trabalho de Bansky, por exemplo, e dessa artista afegã? Vale a pena, bjs

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