domingo, 19 de junho de 2016

Línguas & Tradução | Bóris Schnaiderman

Boris Schnaiderman. Imagem:cartacapital.com.br
Há pouco tempo, perdemos três grandes nomes da tradução Umberto Eco, Bóris Schnaiderman e, mais recentemente, Gregory Rabassa. Umberto Eco (1932-2016) era linguista, filósofo, crítico literário, tradutor e semiólogo. Boris Schnaiderman (1917-2016), agrônomo de formação, era tradutor, ensaísta, crítico literário, romancista e professor. Gregory Rabassa traduziu grandes nomes da literatura latino-americana. Perdemos vozes críticas, de pensamento lúcido e coerente, pessoas que exerciam, com maestria, seu ofício das letras. Fui buscar, na memória, os meandros do meu contato com cada um. Fui buscar a história de cada um, porque mais que palavras são os atos que mostram quem, de fato, são as pessoas. 

Boris Schnaiderman, nascido na Ucrânia, emigrou ainda criança para o Brasil, aos 8 anos de idade. Ficou. É um dos criadores do curso de Russo na USP e um dos principais responsáveis pela tradução da literatura russa no Brasil. Autodidata em tradução, foi um dos responsáveis, no início da década de 1960, pela fundação do curso de língua e literatura russas na Universidade de São Paulo (USP) onde era professor de russo e de Teoria Literária. Sob orientação de Antonio Cândido, defendeu sua tese sobre Maiakóvsky, gerando o livro publicado com o título A Poética de Maiakovski através de sua Prosa (1971). É um dos primeiros tradutores do russo para o português, tendo traduzido autores do porte de Tolstói, Dostoiévski, Púchkin, Tchékov, Górki e Maiakóvski, entre outros. Começa seu trabalho de tradutor com pseudônimo - Boris Solomov.  Sua primeira tradução foi o livro de Dostoiévski Os irmãos Karamázov, publicado em 1944 e cuja tradução ele criticou tempos depois.


Como autor, lançou seu primeiro título, em 1964: Guerra em surdina mistura memórias e reflexões sobre o período que passou na Itália, na segunda Grande Guerra, pela Força Expedicionária Brasileira – FEB para lutar ao lado dos aliados e relata o processo progressivo de desumanização dos personagens. Sessenta anos depois, voltou  ao tema e lançou Caderno italiano (Perspectiva), uma narração autobiográfica onde reafirma seu ponto de vista sobre aquele período que ainda lhe provocava repulsa, indignação e frustração.   
Em 2001, recebe o título de professor emérito da USP e, em 2003, o Prêmio de Tradução da Academia Brasileira de Letras. Recebe, em 2007, do governo da Rússia a Medalha Púchkin, um reconhecimento por sua contribuição na divulgação da cultura russa. 

Teve amplo contato com os irmãos campos, Haroldo e Augusto de Campos, a quem chamou demagistrais tradutores”:
 - “Muito bom o contato, a troca e o trabalho com eles. Com o Augusto me dou bem até hoje [Haroldo de Campos morreu em 2003]. Na época eu não gostava de poesia concreta, mas, como tradutores, eram magistrais.{...} Ambos eram capazes de fazer traduções livres e, ao mesmo tempo, fiéis, o que nunca é fácil. ”  (1)   
Sábio, advertia os tradutores sobre uma prática que considerava elementar – o cotejo em voz alta da tradução feita:
 -“Adotei uma nova técnica: o texto em português já traduzido por mim era lido em voz alta por outra pessoa enquanto eu acompanhava em russo. Levei vários anos para descobrir como essa prática elementar é importante. ” (2) 
Ao ser perguntado sobre o motivo de ter chamado a tradução como “ato desmedido” e se isso se devia à sua eterna insatisfação com as próprias traduções aliado ao hábito de refazê-las constantemente, Schnaiderman respondeu:
-Não tenho dúvidas quanto a isso. Desmedido porque é uma violência pegar uma obra de Tolstói ou Dostoiévski e traduzir. Não sou Tolstói nem Dostoiévski e, no entanto, tento transpor para o português o que eles disseram em russo dentro do contexto da cultura russa. Tenho traduzido grandes autores, como Púchkin, Tchékov, Górki, Maiakóvski. O “ato desmedido” vale para todos eles. Traduzi Khadji-Murát, de Tolstói, pela primeira vez em 1949 e de lá para cá já fiz outras quatro traduções diferentes do mesmo livro, para melhorá-lo e diminuir o que chamo de violência”.    
Schnaiderman, dois dias depois da guerra. Imagem: Revista da Fapesp.
 Aos 98 anos, na mesma entrevista para a Revista da Fapesp, Schainerman dizia que com 98 anos não fazia mais novas traduções, apenas revisava e melhorava as antigas e que, enquanto tivesse energia, continuaria tal tarefa. 
Sua energia se foi, mas seu método, suas palavras e seu exemplo ficaram. Seu livro Ato Desmedido, pela Editora Perspectiva é leitura obrigatória para todo tradutor.  Impressionou-me sua capacidade de rever, humilde e constantemente suas traduções.  Em um mundo onde o ego de tantos grita tão alto, aquela postura me inspira. Seu método combinava rigor, disciplina, competência, devotamento e humildade, como um verdadeiro mestre. 
Como bem disse Caetano W. Galindo, tradutor de Ulisses, de James Joyce: “Todos os tradutores literários do Brasil sentem essa perda como a de um fundador. Todos lemos Schnaiderman, todos de alguma maneira seguimos seus passos."

Referências:

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