terça-feira, 27 de outubro de 2015

Memória & Vida - E o Carneiro se foi

 Carneiro no bar da FAU-USP, ambiente de reunião e descontração. Foto: Anita Di Marco.


Antonio Carlos Carneiro, arquiteto.
Faleceu em 25/outubro/2015.
Turma da FAU-USP, 1972-1976. 

Na lista de presença eu era o número 749. Ele, 752. E era assim que ele me chamava: Anita 749, ou então “italiana”, outras vezes, carinhosamente de “goiaba”. Eu o chamava de Carneirinho.
Desde o início nos aproximamos, pela proximidade na lista de presença e pelo seu jeito de ser. Um sujeito despojado, sincero, expansivo, divertido e também impaciente e explosivo, do tipo  "tolerância zero”.  Mesmo assim, era impossível ficar perto do Carneirinho, sem rir.

Profissionalmente, era competente e criativo. Sua paixão, no entanto, era Desenho Industrial. Era bom o danado; um craque mesmo no DI e no manuseio da madeira. Enquanto trabalhou fez belos projetos, reformas, móveis, exposições e muitos, muitos bicos!
Adorava desenhar e ler. Nunca leu Saramago, nem Hermógenes. Adorou o livro que lhe mandei sobre a Sala São Paulo. Por um tempo praticou yoga e Lian Gong. 
Teve problemas de saúde e de relacionamento. Na saúde, teve dois derrames (o de 2005 lhe deixou sequelas, dificultando subir e descer escadas), problemas no fígado, pneumonia em mais de uma ocasião. Teve depressão, mas sempre disfarçava (ao menos nos e-mails), rindo, brincando e tentando levantar o astral das pessoas.  As crises, segundo ele, serviram para lhe mostrar quem eram os amigos de fato.  
Não acreditava que somos frágeis - “somos o que quisermos”, dizia ele. Não aceitava gente “azeda”... E eu concordava, citando Belarmino Bicas e dizendo que azedume também mata...

Carneiro passou por poucas e boas. Ficou descrente do ser humano e descrevia a si mesmo como cético e ateu, mas não anticristão. Acabou se retraindo e se afastando... Poucos amigos sobraram, amigos com quem falava, trocava emails, que o amparavam e acolhiam, discutiam, lhe mostravam o outro lado, mas não o julgavam... Para ele, as crises  eram vistas como experiência de vida, nem sempre, no entanto, bem aplicadas. Teve um único filho que cursou Direito na PUC e Ciências Sociais na USP.  
Inúmeras vezes, sentiu-se injustiçado tanto pessoal quanto profissionalmente. Vez por outra me contava uma história que relacionava calúnia e paina: “Dizem que caluniar é como soltar paina de um travesseiro do alto da torre de uma igreja - leva poucos segundos. Quando a verdade vem à tona, limpar o nome do caluniado leva um tempo  equivalente ao de recolher toda esta paina e refazer o travesseiro... mas nunca se recolhe toda a paina, nem se monta o travesseiro completo...” 
Ele era franco e aberto. Dizia que nunca escondera nada, falava tudo o que pensava e o porquê de pensar daquela maneira. Quando reclamava e se mostrava desanimado e descrente, eu lhe dizia para ir em frente, sem desanimar, porque na verdade - e eu acredito mesmo nisso - os que não têm caráter parecem ser em maior número porque fazem mais barulho... Enquanto os bons se retraem, são mais tímidos...

O mundo fica mais sem graça quando pessoas como ele desaparecem... Ficamos nos perguntamos, como Santo Agostinho, se fizemos tudo o que poderíamos ter feito; refletimos sobre a solidariedade e o acolhimento do mundo de hoje... um mundo tão difícil, cheio de ódio, intolerância, hostilidade e ignorância ... Todos nós temos problemas, não podemos condenar ou rotular quem quer que seja, porque de perto ninguém é normal e afinal, como diziam Chico e Francis Hime, “todo mundo tem pereba, só a bailarina é que não tem”. 

Como disse o amigo comum Raul Pereira, “nos últimos anos, ele sofreu muito e foi sepultado na solidão, quase sem amigos... é um pouco para refletirmos sobre nossas tristes perdas, sobre a vida e sobre nossos acolhimentos”.

Carneiro tinha algumas frases memoráveis:
- Como dizem os "irredutíveis Gauleses" do Asterix: "só temos medo é que o céu caia sobre nossas cabeças."
- Piano piano se va lontano...
- Ô bonitinha...Ô goiaba...
- Às vezes, a gente não pode, mas se esquece de tudo, até da própria história, que no meu caso sei ser muito bonita.
- E la nave vá.

O título do filme de Fellini virou seu bordão maior. Ao encerrar seus e-mails, ele sempre dizia: E la nave vá.  
Querido amigo Carneirinho, que você siga por caminhos menos sofridos... E, como você sempre dizia para seus poucos amigos, estou saudosa! 

20 comentários:

  1. Celia Beatriz Moreira28 de outubro de 2015 às 03:57

    Carneiro,que seus caminhos agora sejam felizes e iluminados!
    Num.761

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  2. Lindo o texto! Obrigado pelas lembranças :)

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    1. Oi Daniel, obrigada pela visita. O texto saiu quando sai do choque da notícia. É verdadeiro.
      Um abraço.
      Anita

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  3. Triste mesmo. Não o conheci. Mas me entristeci.

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    1. Anônimo, não se esqueça de deixar seu nome no corpo da mensagem.
      Embora a morte seja inevitável, a gente sempre se choca com ela, sobretudo com alguém mais jovem ou da nossa faixa etária... Ainda não estamos preparados para partir... Um abraço
      Anita

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  4. Ola Anita...li o texto atraves do Daniel...ainda estou em choque...

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    1. Olá, Zé, há quanto tempo. Pois é, foi um choque para todos nós.
      Como faço para entrar em contato com você? Me mande seu email particular, por aqui mesmo, mas não se preocupe porque nenhum comentário é publicado sem minha liberação. Um abraço
      Anita

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  5. Pedro Jatene Carneiro, muito prazer.

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    1. Olá Pedro,
      Sinto pela sua perda. Carneirinho tinha lá seus rompantes mas era uma pessoa de bom coração. Você deve saber melhor do que nós. Um abraço
      Anita

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    2. De fato, muito melhor.
      Um abraço.

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    3. Complementaria seu texto dizendo que doença mental não é sinônimo de excentricidade, surto psicótico não é sinônimo de rompante e amizade não se resume aos afagos. Mas a homenagem é bonita.

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  6. UM AMIGO,USAVA MINHA INTERNET,MORAVA PERTO DA MINHA CASA,DEIXOU SAUDADES,FIQUEI TRISTE,QUE ELE ESTEJA LÁ EM CIMA EM UM BOM LUGAR,JUNTO A DEUS

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  7. LI O TEXTO,ACHEI LINDO,APESAR QUE FIQUEI TRISTE,MAS UMA GRANDE HOMENAGEM

    GRAZI

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    1. Obrigada Grazi. Saiu de sopetão com o susto... um abraço
      Anita

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    2. VOCÊ É TÃO ESPECIAL COMO ELE,FIQUEI EMOCIONADA AO LER

      GRAZI

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  8. oi Anita,
    consegui acessar seu blog hoje.
    Adorei os textos que li. Quero sempre acompanhar suas postagens.
    Parabéns!!!
    bjos
    Lúcia

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    1. Lúcia, dá para ser mais específica? Conheço várias "Lúcias"....De qualquer forma, obrigada pela visita e pelos comentários gentis. Para acompanhar é só se cadastrar. Vc vai receber um email pedindo confirmação. Um abraço
      Anita

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  9. Anita,
    Estou chocado e muito triste, só vim saber agora por você. Achei linda a mensagem. Ele merece todo nosso carinho, respeito e consideração como nosso colega de turma. Nunca tive contato com ele além do período de FAU, mas estou muito triste. Que Deus cuide dele melhor do que cuidamos. Abraços
    Edison Favero

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    1. Pois é, Edison, muito triste... E sua última frase é perfeita - Que Deus cuide dele melhor do que cuidamos nós...Grande abraço...
      Anita

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