sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Paisagem Natural | Von Martius e a flora brasileira

Cartaz da exposição. Imagem: Divulgação IMS-RJ
 Enquanto São Paulo aguarda a inauguração da nova sede do Instituto Moreira Sales, na Avenida Paulista, em mais um belo projeto do escritório Andrade Morettin, a sede do Rio de Janeiro continua esbanjando arte e beleza, a começar pelo belíssimo imóvel. Marco da arquitetura moderna, foi projetado em 1948 por Olavo Redig de Campos e projeto paisagístico de Roberto Burle Marx, para servir de moradia à família de Walther Moreira Salles (1912-2001). Na década de 1990, foi transformado em instituto para promover e divulgar a cultura, a fotografia, a literatura e as artes plásticas. Além de diversas mostras e eventos, o Instituto tem um riquíssimo acervo de fotos antigas. A começar do imóvel, qualquer visita lá é de encher os olhos. Com as belas exposições, então, é programa imperdível para cariocas e visitantes.
Instituto Moreira Salles. Rio de janeiro. Imagem: Catraca Livre
 Dentre outras belas mostras, o IMS-Rio abriga a recém-inaugurada O mapa de Von Martius ou Como escrever a história natural do Brasil, que reúne cerca de 50 paisagens, mapas e outras ilustrações do botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). A mostra foi aberta em comemoração aos 200 anos da chegada da Missão Austríaca no Brasil, a convite da Imperatriz Leopoldina.
Cachoeira do Rio São Francisco, chamada de Paulo Afonso, c.1869. Litografia de Carl Friedrich Philipp von Martius / Coleção Martha e Erico Stickel / Acervo IMS. Divulgação.

Durante três anos, a partir de 1817, o naturalista von Martius, em companhia do zoólogo Johann Baptist von Spix, liderou uma expedição que percorreu quase dez mil quilômetros quadrados das regiões Norte, Nordeste e Sudeste do Brasil, colhendo e catalogando vasta quantidade de espécimes vegetais em um minucioso levantamento da flora brasileira. O resultado final aparece na obra de referência “Flora brasiliensis”, reunindo 20 mil espécimes vegetais, catalogados entre 1840 e 1906, em 40 volumes.
O primeiro volume inclui o mapa produzido em 1858, no qual Martius propôs uma divisão regional para o Brasil a partir de cinco grandes biomas: cerrado, caatinga, mata atlântica, selva amazônica e pampa, divisão que continua em uso até hoje. 
Carl Friedrich Pjilipp von Martius. Imagem: Wikipedia
Von Martius foi professor de botânica na Universidade de Berlim e diretor do jardim botânico de Munique, cidade que há pouco tempo também realizou uma exposição sobre sua obra retratando a diversidade da flora brasileira. Além disso, era um homem à frente de seu tempo, como se depreende da proposta que fez ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1843, de como se deveria escrever a história do Brasil:
 
Seu programa de estudos incluía, pela primeira vez, a incorporação da participação popular na grande narrativa sobre a formação da nacionalidade.  "Assim, além dos indígenas e dos portugueses, ele sugeria a inclusão das populações de origem africana", diz Iris. "Algo muito atual como, por exemplo, o estudo da história do tráfico negreiro e das feitorias portuguesas no continente africano. Ele também chamou a atenção para a necessidade de investigar os mitos e tradições indígenas, por meio da incorporação da documentação oral”. (1)


Exposição: O mapa de Von Martius ou Como escrever a história natural do Brasil.
Curadoria: Julia Kovensky, coordenadora de iconografia do IMS, e Iris Kantor, historiadora e professora da Universidade de São Paulo.
Quando: De terça a domingo, das 11h às 20h, de 4 fev. a 16 abril 2017.
Onde: Instituto Moreira Salles - Rio de Janeiro
Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea 
Tel.: (21) 3284-7400- E-mail: educativo.rj@ims.com.br 

Notas e Referências:
IMS: http://ims.com.br/ims/visite/exposicoes/o-mapa-de-von-martius 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Línguas & Literatura| Sem-Cerimônia

 Outro dia escrevi sobre a reunião que comemorava os 40 anos de minha graduação em Arquitetura e Urbanismo (veja aqui) e mencionava que vários profissionais saíram daquelas famosas rampas da FAU-USP exercendo outras profissões, paralelamente ou não à Arquitetura e seus inúmeros ramos. Mas o mais interessante foi descobrir as coincidências entre mim e outros colegas. Já mencionei a querida Carolina Young e agora falo das coincidências entre mim e outra colega de turma daqueles tempos: ambas formadas na FAU, ambas trabalham (ou trabalharam) com patrimônio histórico, fizeram outras faculdades (ela, Psicologia e eu, Letras), fizeram cursos de Tradução e são tradutoras, se interessam a fundo pela história das religiões e ainda compartilham o prazer e a necessidade da escrita. Um ponto fora da curva entre nós, mas não muito grande, é que ela se dedicou à dança e à ginástica e eu, ao yoga. 
Quando percebi essas coincidências, fiz questão de trocar algumas palavras com ela, já que só nos víamos nos tais encontros de turma. Descobri que havia publicado dois livros – um de crônicas (Meus Queridos Cavalheiros) e o livro de estreia, chamado Sem-Cerimônia. Diário de uma Psicoterapia. Sônia Manski é o nome dela. Claro, já li os dois e vou comentar um pouquinho do segundo. 

Muito bem escrito, com um texto leve, natural, rico e que flui sem tropeços, o livro aborda as sessões de psicanálise de uma narradora fictícia (Vera Anders) na casa de seus ‘trinta e muitos e quarenta e poucos anos’, que questiona sua vida, sua identidade, questões familiares, econômicas, religiosas, sociais e os papeis atribuídos a uma mãe, esposa e profissional nascida na segunda metade do século XX, período de avassaladoras mudanças nos mais diversos campos do conhecimento. Quem nasceu nessa época, sabe muito bem do que estou falando.

Através da psicoterapia, a personagem quer “voltar ao pretérito para fazê-lo perfeito” e o fator que desencadeia não só as sessões, mas também os desejos, reflexões e medos da narradora é a proximidade do 13º aniversário do filho e, portanto, da cerimônia que marca a apresentação do garoto ao seu grupo religioso e social: o bar-mitzvah (filho da lei ou do mandamento, em hebraico). Trata-se da transição mais importante na vida de um judeu, um sinal de maturidade religiosa e como todo ritual, reveste-se de importância singular para o grupo. Quem não está familiarizado com a religião judaica aprende o significado de alguns termos e situações específicas, sempre de forma clara e didática.
A clareza do texto também está presente na projeto gráfico, na diagramação e na mudança de tamanhos e tipos de fontes. 

Enquanto “rascunha o passado para ser passado a limpo”, a narradora busca fazer para si mesmo um outro futuro e a autora enriquece a obra com referências culturais literárias e musicais. Autores, atores, críticos, compositores e músicos comparecem em seu texto, dando mostras do amplo repertório de cultura, leitura e reflexão de Sônia Manski. E aqui, outra feliz coincidência entre nós, sobretudo na preferência por Chico Buarque, um dos seus (e meus também) autores e compositores mais citados. 

Sempre considerei a escrita como excelente recurso para alguém ouvir a si próprio, refletir, elaborar e superar. Aparentemente, a analista também compartilhava da mesma ideia, pois incentivou a autora a escrever. Da mesma lavra, Sônia Manski vai colocando no papel suas impressões, desnudando as sessões, as dúvidas e desafios da personagem ao entrelaçar questionamento, autorreflexão e descoberta. Tudo com leveza, abertura de alma e graça. Ponto para Sônia. Que venham outros!
Sônia Manski (de preto) e Anita Di Marco, no encontro que comemorava os 40 anos de formatura na FAU-USP.

Sem-Cerimônia. Diário de uma psicoterapia.

Sônia Manski

São Paulo: Editora Ágora, 2002. 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Línguas & Tradução | Apontar o dedo

Imagem:destinywordoftheday.com

 Apontar o dedo para alguém denota atitude agressiva e até autoritária. Além disso, como já disseram por aí, também demonstra a existência de alguém que não percebe para onde apontam os outros três dedos. Tentando entender um pouco mais a questão da crítica pura e simples, aquela que não acrescenta nada de criativo e transformador, achei alguns pensamentos bem interessantes.
- Sêneca (4 a.C.-65) argumentava que os homens podem dividir-se em dois grupos: os que seguem em frente e fazem alguma coisa e os que vão atrás a criticar.
- Santo Agostinho (354-430) mencionava preferir a companhia dos que o criticavam (porque o corrigiam) aos que o elogiavam, porque o corrompiam.
- Goethe (1749-1832), mais incisivo, dizia que o mais duro dos críticos é o amador malogrado.
- Mark Twain (1835-1910), escritor norte-americano, lamentava que todos criticassem seu tempo, mas nada faziam para começar a melhorar a si mesmos, com coragem e honestidade.
- Abraham Lincoln (1809-1865) afirmava que só tem direito a criticar aquele que quer ajudar e que, antes de começar a criticar os defeitos de quem quer que fosse, o indivíduo deveria enumerar ao menos dez dos seus próprios. 
- Mohandas (Mahatma) Gandhi (1869-1948) dizia que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo e que a mensagem a ser passada deve ser nossa própria vida.
- Mário Sérgio Cortella (1954), filósofo, educador e escritor, em seu livro Não ‘Nascemos Prontos!’ lembra que é necessário fazer outras perguntas, ir atrás das indagações que produzem o novo saber, observar com outros olhares através da história pessoal e coletiva, evitando a empáfia daqueles que supõem já estar de posse do conhecimento e da certeza. 
 
Enfim, o que não faltam são coleções de frases sobre o ato de criticar, por parte daqueles que acham que estão sempre certos. Na verdade, isso é o que mais vemos nos nossos tempos: críticas, críticas e críticas. Todos apontam o dedo para outros, julgam e já dão a sentença em lugar de identificar suas próprias limitações e fazer um exame das próprias ações, ou ainda das razões do outro e das explicações vindas de todos os lados.   
A regra de ouro também já existe, há milhares de anos, nas mais variadas filosofias: colocar-se no lugar do outro. Ou como, sabiamente, diziam minha avó e minha mãe, não se conhece uma pessoa e suas razões até que tenhamos comido um saco de sal com ela! 


 Como qualquer outro profissional que trabalha com línguas, tradutores também podem também errar: errinhos de interpretação, entendimento ou tradução, mesmo, pressão do tempo, digitação. Enfim, não deveria, claro, mas acontece. Em que pese sua atenção, habilidade e empenho, nem sempre o tradutor consegue encontrar, na língua de chegada, o melhor termo, a frase mais sonora ou a representação mais verossímil do texto original. Mas, acreditem, como (incorretamente) pode sugerir o célebre ditado italiano Traduttore traditore, o tradutor não é um traidor. Pelo contrário, seu trabalho consiste em pesquisar, garimpar e analisar seus achados, horas a fio, para descobrir a solução mais adequada. Em última análise, todo tradutor sofre de uma doença bem conhecida entre nós da área, conhecida como “angústia tradutória”.  Inevitável.

A colega tradutora Sheila Gomes, editora do blog Multitude, discorreu sobre o tema e, como ela sugere, seu entendimento pode ser alargado e sua aplicação, extrapolada para outros campos profissionais.  Agradeço à Sheila por permitir sua divulgação aqui.


Errar
Sempre podemos escolher entre errar repetidamente ou cometer erros novos para aprender mais. Quem gosta de errar? Eu não. Não gosto de perceber que errei, ou pior: que percebam que eu errei. Mas ainda prefiro mil vezes que alguém note, seja eu ou outrem, para poder consertar. E tento reforçar a minha ideia de que um erro do presente é uma garantia a mais de acertar no futuro, uma forma de atentar para algo que até então passava despercebido e uma oportunidade de aprendizado. Tento sempre agradecer quando apontam um erro meu, mas ainda acho muito chato quando isso acontece em público. Prefiro a política de elogiar em público, mas apontar erros privadamente, e sempre com cuidado e educação. Eu já fui bem mais insegura profissionalmente e tomei decisões desfavoráveis por terem apontado algum erro meu. O ataque à autoestima, que já não era grande coisa na época, foi o suficiente para me fazer duvidar da minha própria capacidade e pisar feio na bola, mais de uma vez: são fases que todos passam até se firmarem como profissionais.
Isso se torna ainda pior quando há trabalho colaborativo em questão: funcionar bem não significa não cometer erros, mas lidar com eles como uma equipe, aproveitando os pontos fortes de todos para compensar e lidar com os fracos. Recriminação não leva a lugar algum, mas encarar o problema e desenvolver táticas em conjunto para resolvê-lo, sim. Algo que pode ser aplicado em todas as atividades em grupo: fóruns, equipes de trabalho e coletivos profissionais. Se apontar erros alheios faz alguém se sentir melhor por perceber que ao menos esse erro não cometeria, perceber e guardar para si essa percepção ajuda duas pessoas: você e o outro, que talvez nem teria merecido recriminações, pois nem sempre os erros são cometidos pela pessoa que pensamos. Um bom exemplo são erros em legendas de filmes ou em livros traduzidos: muitos reclamam do tradutor, quando há vários outros profissionais envolvidos que poderiam ter errado também.  
E um risco grande que se corre ao ficar de olho nos erros dos outros é perder de vista os próprios. Aliás, esse já é um trabalho grande o suficiente para tomar nossa atenção e deixarmos os outros em paz. E nos faz economizar tempo para investirmos em formas de lidar com os erros que fatalmente cometeremos.
“Aprender a cair”, prestar mais atenção ao modo que nos expressamos para criar a impressão desejada, adotar formas de fala seguras e equilibradas. Tudo isso é útil e contribui ao nosso crescimento pessoal e profissional muito mais que prestar atenção aos erros alheios.
Todos queremos ter sucesso na carreira e um passo importante para isso é estabelecer uma reputação favorável não apenas entre clientes, mas também entre os pares. Isso contribui para futuras parcerias e para elevar o nível do mercado inteiro. Saber que fazemos parte de uma rede colaborativa nos impulsiona a participar de forma melhor e mais eficaz. Relações humanas baseadas na boa vontade favorecem os envolvidos e tendem a evoluir quando todos estão dispostos a:
  ceder de vez em quando;
 oferecer opiniões apenas quando solicitadas;
 não deixar o ego tomar conta das interações;
 não fazer escolhas apenas por conta própria, mas oferecê-las para uma decisão coletiva.
Afinal de contas, quem quer ser feliz e bem-sucedido sozinho? Para que não seja assim, é preciso abrir mão de algo. E quando fica difícil de entender ou interagir com o grupo, uma boa ideia é aprender a ler as pessoas a partir de outros pontos de vista.