segunda-feira, 1 de abril de 2019

Ecos Literários | Gramática da Manipulação

Há pouco tempo, ganhei da psicóloga e escritora Cynthia Mesquita Beltrão,  dois livros excelentes. Um é o corajoso Incômodo Conto (resenha aqui), de sua autoria, e o outro é uma publicação que considero imperdível, sobretudo nos tempos atuais, para grande parte da população. Trata-se de Gramática da Manipulação, de Letícia Sallorenzo, jornalista e mestre em Linguística pela Universidade de Brasília. Publicado em setembro de 2018 pela Quintal Edições, o livro é resultado da dissertação de mestrado da autora e prefaciado pelo jornalista Franklin Martins.
Como tudo começou? Bem, já durante o governo Lula, a autora e jornalista atuante se percebeu incomodada com as manchetes publicadas pelos jornais sobre as conquistas positivas daquele período (e não foram poucas): havia a notícia, uma vírgula e um invariável ‘MAS’... Resolveu investir no tema em um mestrado e, durante o segundo turno das eleições presidenciais de 2014, ela reuniu um corpus (conjunto) de 340 manchetes de capa e internas, publicadas entre os dias 6 e 31 de outubro de 2014, pelos jornais O Globo e Folha de São Paulo. 
A partir desse conjunto, a autora analisou dados discursivos e linguísticos, utilizando-se das três irmãs da Gramática: a Sintaxe (que mostra a função dos termos na frase: sujeito, predicado,objetos, adjuntos); a Semântica (que traz o significado e sentido das palavras) e a Pragmática (que mostra como a ordem e o rearranjo dos termos na frase enfatiza determinados aspectos e não outros). Ao final, concluiu que houve, sim, manipulação da mídia na produção das manchetes.
 
Como a autora reforça o tempo todo, não se trata de opinião e nem de defender A ou B, mas de um trabalho científico, embasado em uma série de pesquisas e conceitos teóricos linguísticos e de análise do discurso, provando que, através da ordem, forma e escolha dos termos das manchetes, o veículo de comunicação é capaz de alterar, direcionar e influenciar o pensamento do leitor.
Para leitores atentos e críticos, muitíssimas manchetes, de fato, e não só daquele período, eram claramente antagônicas e ofensivas a determinado candidato e sempre tolerantes e lenientes em relação ao outro. Que bom que agora surgiu alguém com um viés científico para mostrar o que já era claro para tantos que, em suas leituras, independentemente de sua opção política, conseguem ver o todo de forma crítica, estabelecendo relações históricas e tendo uma visão refletida dos fatos narrados, sem aceitar, placidamente, o que as manchetes querem impor e convencer como verdade.  
O trabalho de Sallorenzo mostra a construção lenta, consciente, maquiavélica e sub-reptícia, ao longo do tempo, de conceitos que demonizavam ou marcavam de forma negativa e belicosa os membros, dirigentes, simpatizantes e ações do Partido dos Trabalhadores, o PT. O livro elucida o que as escolas não ensinam aos alunos nas aulas de Português: a importância da sintaxe, da semântica e da pragmática na interpretação de um texto, o poder e o impacto das palavras escolhidas a depender de sua adjetivação e da ordem em que aparecem (ou não) na frase e a importância da sinonímia.
É isso mesmo! O livro usa conceitos simples da sintaxe e da semântica - verbo, sujeito, objeto, posição dos elementos na frase - e, de forma agradável, informal e divertida, vai esmiuçando e deixando muito clara sua conclusão: a manipulação proposital do leitor pela grande mídia. Mostra que, dependendo de como um verbo é utilizado nas manchetes o agente da ação pode ser suavizado, escondido ou simplesmente pode desaparecer. O tipo de verbo escolhido, cuja valência pode ser alterada e, de modo nada ingênuo, a depender da construção e da intenção do editor, induz à associação de determinada imagem a quem aciona o verbo, a seu agente e assim por diante. O livro é uma aula de Linguística, uma aula de Política e uma aula de Jornalismo, com “J” maiúsculo, não como temos visto tristemente, nos últimos dezoito anos.
 
Eis aqui um exemplo simples para despertar a curiosidade dos leitores: o uso do verbo atacar.  Verbo denota ação e, no caso, sempre a existência de um sujeito. A pergunta que aparece de imediato quando se lê esse verbo é: quem ataca?  A jornalista responde, como qualquer um responderia: um animal ataca, um sujeito louco, descontrolado, raivoso. Pois bem, em quase 100% dos casos analisados, dentro das 340 manchetes, o sujeito era Dilma ou alguém ligado ao PT. Por outro lado, o verbo criticar denota alguém que pensa, um sujeito moderado, de fala mansa, que usa o raciocínio. Em suas análises, o sujeito do verbo criticar, em todas as ocorrências, referia-se a Aécio. Então, nas manchetes, Dilma atacava e Aécio criticava. Ora, o que esses veículos queriam provar com essa escolha de verbos? Quem ou o que defendiam? 
Entrevista no TUTAMEIA (tutameia.jor.br).
Em outro caso, quando na manchete o verbo vira substantivo - nominalização em Linguística - o agente da ação desaparece porque o que aciona o verbo passa a ser uma coisa inanimada, ou seja, omite-se um dado importante da mensagem. Sallorenzo salienta ainda que, embora não seja a única culpada, a mídia colaborou e colabora de forma descarada para esconder determinados fatos, suavizar outros, moldar opiniões, esconder responsabilidades e criar versões que interessam a ela, mídia.

No entanto, trata-se de uma edição tendenciosa, ideológica e parcial. Tudo o que um bom jornalismo não poderia ser. E não estou falando de colunistas, de articulistas ou de analistas (?). Estou falando da imprensa que narra o dia a dia da sociedade e de forma isenta. Pelo menos é essa sua função, ou deveria ser. Em uma época em que a internet mudou o conceito de jornal escrito e, parafraseando o tradutor e linguista italiano Umberto Eco,  "deu voz a uma multidão de imbecis", é patente que os jornais perdem, a cada dia, um pouco mais da credibilidade. E ainda, tiveram a coragem de chamar de "sujos" os blogues e jornais virtuais que questionavam e denunciavam tal manipulação. 

Infelizmente, é fato que grande parte da população brasileira só lê manchetes que têm consumo imediato, não se detém em uma leitura mais profunda e, muito menos, lê com olhar atento e criando uma linha de pensamento paralela, questionando e desenvolvendo a análise crítica. Depois desse livro, cuja leitura deveria ser obrigatória em todas as escolas de jornalismo e de ensino médio do país, espero sinceramente que as pessoas nunca mais leiam manchetes de jornais ou ouçam noticiários de rádio e TV da mesma forma, mas comecem a questionar o uso dos termos, a forma como a notícia é dada e comecem a entender o que foi dito com base em uma análise que não exclua a indispensável dimensão histórica.

Para quem quiser ouvir da própria jornalista suas explicações esclarecedoras, recomendo a excelente entrevista (10 min) que ela deu ao GGN (jornal do Luis Nassif), do qual é colunista. Vale assistir.  
  Entrevista com Leticia Sallorenzo. TV GGN.
Publicado em 25 out. 2018 

Livro: “Gramática da Manipulação”
Por Letícia Sallorenzo
Quintal Edições, BH, 2018.

Referências:

4 comentários:

  1. Tem coisas que a gente nem imagina que possam haver.Muito esclarecedora esta pesquisa. Parabéns à você por nos brindar com Estes conhecimentos
    BJ
    IONE

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  2. Puxa, muito obrigada por sua resenha! Que bom saber que meu livro está cumprindo com seu papel de desnudar os mecanismos de construção de manchetes e de ideias e ideologias!
    Adorei ler essa resenha! Mais uma vez, muito obrigada! <3

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    1. Olá, Letícia! Parabéns pelo seu texto e por sua pesquisa. São vozes corajosas que se unem e desmascaram o que está por aí. Grande abraço e obrigada pelo retorno. Sucesso em suas novas pesquisas e lutas.
      Anita

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  3. Maravilhosa explicação, Anita! Mostra como somos manipulados por textos que geram ódio e ironia! Como é importante estarmos atentos! Isto ocorre demais nas manchetes!

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