Preâmbulo: Com concepção, projeto e curadoria de duas profissionais batalhadoras e interessadas em divulgar nossa identidade cultural e arte (Anita Di Marco [euzinha] e a artista visual Vanessa CTReis), e criada a partir das pesquisas do historiador e psicólogo José Roberto Sales, a exposição “Oneyda Alvarenga & Eu-Seu tempo, sua busca, sua obra” foi a mostra inaugural do Projeto Nômades, também concebido por nós duas para divulgar, sobretudo em Varginha e no Sul de Minas, a vida e a obra de personagens locais cujos feitos extrapolaram as fronteiras municipais, estaduais e mesmo nacionais. Dentro da dinâmica da exposição e já desde
a mostra inaugural, em 2015, uma das ações propostas pela
curadoria buscava incluir o observador na proposta, convidando-o, a refletir sobre sua própria vida e obra, a partir
do que vira na exposição e, ao final, escrever uma carta para Oneyda
Alvarenga. A mostra incluía um espelho que, ao mesmo tempo, refletia uma foto
de Oneyda e a imagem do próprio visitante, fazendo a ligação entre duas imagens
e duas linhas do tempo: da personagem e do observador. Muitas cartas foram
escritas, já que a mostra percorreu várias cidades do Sul de Minas, em mais de
uma dezena de montagens. Nas últimas, retiramos o espelho e a proposta da carta,
porque a ação foi encampada por um projeto de extensão do CEFET-MG campus
Varginha, que chegou a montar a exposição algumas vezes.
Agora, em outubro de
2024, dentro do seu projeto de extensão Entrecartas, o CEFET-MG/Varginha lançou nova edição do Concurso
Cultural Oneyda Alvarenga 2024, cujo tema foi: “Sob o Olhar de Oneyda Alvarenga: registro da cultura e do folclore local
e regional”. Claro, eu escrevi uma carta a Oneyda Alvarenga e resolvi publicá-la aqui no blog Anita Plural, como
documento e como homenagem a essa grande mulher, tímida, corajosa e responsável
por compilar e preservar o material fonográfico e etnográfico da Missão de
Pesquisas Folclóricas, idealizada por Mário de Andrade, em 1938, no Nordeste
brasileiro. Com isso, as manifestações
do nosso folclore local e regional passaram a ser conhecidas,
reconhecidas e
preservadas, integrando o nosso imaginário e a identidade cultural
brasileira. Esses documentos podem ser consultados no Acervo Histórico da
Discoteca Oneyda
Alvarenga, no Centro Cultural São Paulo. Aqui vai minha carta:
Varginha,
outubro de 2024.
Caríssima Oneyda Alvarenga,
Você não me
conhece, mas eu a conheço. Fomos contemporâneas em certa época. Antes de
prosseguir, porém, deixe-me cumprimentá-la pela sua história de vida. É
extraordinário o que você conseguiu. Inacreditável mesmo, sobretudo por
tratar-se de uma jovem que saiu de sua cidade natal, no interior de Minas, numa
época em que isso era, no mínimo, a exceção das exceções.
Agora, cá
entre nós, quero crer que, no fundo, você já sabia das coisas e tinha sua meta
traçada. Já sabia que queria frequentar, como aluna, o afamado Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo, estudar com o intelectual Mário de Andrade e
seguir na área musical. Intuitiva como toda mulher, já deveria imaginar que ele
se encantaria com sua argúcia, genialidade e multiplicidade de dons e
interesses. Você já deveria saber de tudo isso e, aos poucos, com seu jeito
mineiro, foi chegando, crescendo, brilhando e desenvolvendo sua capacidade de
trabalho e criação. Mas vamos começar do início.
Em 1930, aos
dezenove anos, você deixou Varginha em direção à grande metrópole paulista e lá
ficou até o fim, 1984. Quando você partiu desta vida, eu, arquiteta paulistana,
ainda estava lá e, quatro anos depois, fiz o caminho inverso: aos 35 anos, saí
da metrópole em direção à sua terra natal.
O fato, minha cara Oneyda, é que, em
diferentes camadas de tempo, com algumas décadas de diferença, percorremos as
mesmas ruas e calçadas da mesma metrópole, lutamos contra os mesmos dragões do
desconhecimento, do descaso e da desvalorização da nossa cultura. Você teve a
oportunidade e o privilégio de conhecer, pessoalmente, Mário de Andrade, tê-lo
como professor, amigo e mentor, de fazer parte de seu círculo de amigos mais
seletos. Eu, apenas pelas propostas,
obras e ações daquele brilhante modernista.
Desde o
início, seu professor e depois mentor, também deve ter
percebido quem era e quem poderia ser Oneyda Alvarenga. Por isso, o
pedido-testamento dele para você transcrever e compilar o incrível material da
Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. Intelectual com visão de futuro, ele,
que já viajara para o Nordeste, queria preservar as muitas expressões da nossa
identidade cultural. Para isso, propôs a criação do SPHAN – Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mas, naquele tempo, meados dos anos
30, o projeto foi rejeitado. Por isso, temendo o apagamento daquelas
manifestações populares, ao ser convidado para dirigir o Departamento de
Cultura da cidade de São Paulo, ele incluiu a proposta no programa do novo
órgão. Então, a Missão foi formada, integrada por um arquiteto (Luís Saia), um
músico (Martin Braunwieser), um técnico de som (Benedicto Pacheco) e um
ajudante (Antônio Ladeira), com o objetivo registrar músicas, danças, ritmos, festas, manifestações
e rituais populares, instrumentos musicais e personagens do Nordeste e do Norte
do país. De longe, Mário trocava cartas com Luís Saia e orientava o grupo.
Quando
voltou, depois de quase seis meses e de percorrer mais de trinta cidades, a
Missão trouxe um imenso material, horas de registros sonoros, fotos, filmes,
desenhos, objetos e cadernetas de campo repletas de anotações sobre
arquitetura, costumes, música, dança, folclores e rituais. Mas, como você bem
sabe, Mário de Andrade já havia sido demitido do departamento. Imagino a
tristeza e a perplexidade que devem ter sentido você, os componentes da Missão
e os que compartilhavam aquele sonho! Mas imagino também que, ao criar a
discoteca pública municipal, em 1935, ele já tinha tudo isso em mente e, antes de
falecer, em 1945, quem foi a pessoa a quem ele confiou a tarefa hercúlea de
transcrever e catalogar esse tesouro?
Foi você,
caríssima Oneyda. Você, com sua perspicácia, sensibilidade e imensa capacidade
de organização. Foi a você que o grande Mário confiou esse trabalho. Não é à
toa que você deu nome à discoteca pública de São Paulo. Infelizmente, porém, ainda hoje, grande parte
dessas e de outras manifestações ainda corre risco de desaparecer por descaso,
preconceito e intolerância de uma sociedade que não tem olhos para reconhecer e
valorizar manifestações populares de sua própria cultura.
Minha cara
Oneyda, ao longo de sua vida, discreta e sem alardes, você estudou piano,
música e etnografia, criou poemas (alguns deles musicados por grandes nomes), escreveu
livros, pesquisou manifestações folclóricas, foi consultora em publicações de
folclore, virou verbete de dicionário da música, nome de rua na capital
paulista e na sua cidade natal, deu nome à discoteca pública de São Paulo,
ganhou prêmios, homenagens, medalhas, foi elogiada aqui e fora do país, e foi
tema de estudos, dissertações e teses. Ainda é.
Mas, mais do
que isso, com seu olhar abrangente e de futuro, durante anos você trabalhou,
com obstinação, documentando e preservando um universo que poderia ter
desaparecido: durante as décadas de 30, 40 e 50, fez audições gratuitas
semanais para despertar o gosto musical, formar público e, sobretudo, ensiná-lo
a conhecer, valorizar e respeitar a música contemporânea e a nossa cultura, por
meio de livros, discos e registros sonoros do nosso folclore. Ademais, reuniu,
em livros, textos de Mário de Andrade sobre a cultura popular. No entanto,
ainda que reconhecida e aplaudida por grandes nomes aqui e ali, na sua cidade
natal você era pouco lembrada. Será esse o destino dos heróis da nossa cultura?
Nos anos 50,
fomos contemporâneas na capital paulista. Enquanto eu nascia e crescia, você
continuava dedicada de corpo e alma à tarefa que lhe foi dada por seu mentor e
amigo. Anos mais tarde, nos anos 70, eu seguia as orientações de Mário de
Andrade. Afinal, meu primeiro emprego também tinha o dedo dele: o Departamento
do Patrimônio Histórico, da Secretaria Municipal de Cultura, em São Paulo.
Quando comecei no DPH, em 1977, você ainda estava por aqui, na metrópole.
Mário, não mais. Já tinha partido. Só o conheci, portanto, pela minha
profissão, por documentos, livros e pelos resultados da famosa Missão,
resultados divulgados a partir do seu trabalho, cara Oneyda.
No seu
tempo, você lidou com poemas, escritos, pesquisas, bens culturais imateriais,
sons, músicas, danças, catiras e cateretês, carimbó, tambores, bois-bumbás,
cocos, reisados, congos, toadas... expressões imateriais da nossa mais pura
brasilidade. Aliás, não me canso de admirar o impressionante material levantado
pela Missão, até hoje pesquisado e revisitado; tampouco me canso de admirar seu
admirável trabalho profissional, compilando e disponibilizando essa riqueza
cultural para todos nós, cidadãos brasileiros.
No meu
tempo, lidei com bens materiais para preservar nossa arquitetura, nossas
técnicas construtivas, tão criativas e ricas em sua época. Melhor dizendo,
tentei preservar; tentei muito naquela época e tento até hoje. Aqueles eram
tempos difíceis no país – final dos anos 70, começo dos anos 80 – mas o DPH
ainda era cheio de planos, como nós, um bando de jovens arquitetos sonhadores,
entusiasmados (como você) e que acreditavam na missão de preservar e registrar
nosso patrimônio a todo custo, por medo de que esses bens desaparecessem. Como,
de fato, desapareceram tantos deles.
Imagino seu
esforço e dedicação para se destacar naquela época. Uma mulher de aparência
frágil em meio a um mar de homens. Muitos deles brilhantes, é verdade, mas
homens. Nesse nosso mundo, não basta ser competente, a mulher deve ir além,
deve ser brilhante e sem perder a ternura. Você foi! Imagino que deva ter
enfrentado sarcasmo, inveja, preconceito, desprezo até. Mas você venceu, deixou
sua marca. E que marca! Junto com você, venceram todos aqueles que estavam
interessados em pesquisar, registrar e valorizar as manifestações folclóricas
que são parte indissociável da identidade cultural brasileira. Seus nomes,
assim como o seu, minha cara Oneyda, jamais sairão do panteão de guardiães do
nosso rico patrimônio.
Depois, já
no início dos anos 80, subindo e descendo as rampas do Centro Cultural São
Paulo, quando lá trabalhei, eu via a discoteca, admirava aquele acervo, me
encantava com a expressão de encanto e surpresa das pessoas ouvindo, com fones
de ouvido, sabe-se lá o quê... Que trabalho maravilhoso o seu!
Caríssima
Oneyda, onde você estiver, aceite meu reconhecimento sincero, meus aplausos por
suas conquistas e minha gratidão por ter legado ao povo brasileiro, e de forma
organizada, esse rico acervo das nossas manifestações culturais.
Hoje, anos
depois de deixar o Centro Cultural São Paulo, de ver seu nome enfeitando
(merecidamente) a fachada da discoteca pública municipal, depois de buscar
divulgar na sua cidade natal a importância do seu legado e o pioneirismo do seu
papel para pesquisar, divulgar e preservar a nossa cultura, volto a entrar na
Discoteca Oneyda Alvarenga como se entrasse num templo inteiramente organizado
e dedicado à cultura musical brasileira, graças à genialidade de Mário de
Andrade, mas também ao afinco e à competência de uma mulher franzina, mas gigante
em sua capacidade e visão. Não é só Varginha que deve ser grata a você, mas
todo o Brasil, pela imensa contribuição à preservação e divulgação das nossas
mais profundas raízes. Foi uma honra ter conhecido seu trabalho e ter vivido,
em parte, no mesmo tempo em que você viveu!
Caríssima Oneyda, receba meu singelo e
caloroso abraço de gratidão.
Anita Di Marco
Tradutora, arquiteta e professora
Referências
https://www.sistemasdeinformacao.varginha.cefetmg.br/2024/09/04/inscricoes-abertas-para-o-concurso-cultural-oneyda-alvarenga/
https://anitadimarco.blogspot.com/2017/08/ecos-culturais-ecos-de-oneyda-alvarenga.html
https://anitadimarco.blogspot.com/2023/09/ecos-literarios-cefet-e-oneyda-alvarenga.html
https://anitadimarco.blogspot.com/2022/06/ecos-culturais-oneyda-alvarenga-em-sua.html