Dentro da dinâmica da exposição e já desde a mostra inaugural, em 2015, uma das ações propostas pela curadoria buscava incluir o observador na proposta, convidando-o, a refletir sobre sua própria vida e obra, a partir do que vira na exposição e, ao final, escrever uma carta para Oneyda Alvarenga. A mostra incluía um espelho que, ao mesmo tempo, refletia uma foto de Oneyda e a imagem do próprio visitante, fazendo a ligação entre duas imagens e duas linhas do tempo: da personagem e do observador. Muitas cartas foram escritas, já que a mostra percorreu várias cidades do Sul de Minas, em mais de uma dezena de montagens. Nas últimas, retiramos o espelho e a proposta da carta, porque a ação foi encampada por um projeto de extensão do CEFET-MG campus Varginha, que chegou a montar a exposição algumas vezes.
Varginha, outubro de 2024.
Caríssima Oneyda Alvarenga,
Você não me conhece, mas eu a conheço. Fomos contemporâneas em certa época. Antes de prosseguir, porém, deixe-me cumprimentá-la pela sua história de vida. É extraordinário o que você conseguiu. Inacreditável mesmo, sobretudo por tratar-se de uma jovem que saiu de sua cidade natal, no interior de Minas, numa época em que isso era, no mínimo, a exceção das exceções.
Agora, cá entre nós, quero crer que, no fundo, você já sabia das coisas e tinha sua meta traçada. Já sabia que queria frequentar, como aluna, o afamado Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, estudar com o intelectual Mário de Andrade e seguir na área musical. Intuitiva como toda mulher, já deveria imaginar que ele se encantaria com sua argúcia, genialidade e multiplicidade de dons e interesses. Você já deveria saber de tudo isso e, aos poucos, com seu jeito mineiro, foi chegando, crescendo, brilhando e desenvolvendo sua capacidade de trabalho e criação. Mas vamos começar do início.
Em 1930, aos dezenove anos, você deixou Varginha em direção à grande metrópole paulista e lá ficou até o fim, 1984. Quando você partiu desta vida, eu, arquiteta paulistana, ainda estava lá e, quatro anos depois, fiz o caminho inverso: aos 35 anos, saí da metrópole em direção à sua terra natal.
O fato, minha cara Oneyda, é que, em diferentes camadas de tempo, com algumas décadas de diferença, percorremos as mesmas ruas e calçadas da mesma metrópole, lutamos contra os mesmos dragões do desconhecimento, do descaso e da desvalorização da nossa cultura. Você teve a oportunidade e o privilégio de conhecer, pessoalmente, Mário de Andrade, tê-lo como professor, amigo e mentor, de fazer parte de seu círculo de amigos mais seletos. Eu, apenas pelas propostas, obras e ações daquele brilhante modernista.
Desde o início, seu professor e depois mentor, também deve ter percebido quem era e quem poderia ser Oneyda Alvarenga. Por isso, o pedido-testamento dele para você transcrever e compilar o incrível material da Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. Intelectual com visão de futuro, ele, que já viajara para o Nordeste, queria preservar as muitas expressões da nossa identidade cultural. Para isso, propôs a criação do SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, mas, naquele tempo, meados dos anos 30, o projeto foi rejeitado. Por isso, temendo o apagamento daquelas manifestações populares, ao ser convidado para dirigir o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, ele incluiu a proposta no programa do novo órgão. Então, a Missão foi formada, integrada por um arquiteto (Luís Saia), um músico (Martin Braunwieser), um técnico de som (Benedicto Pacheco) e um ajudante (Antônio Ladeira), com o objetivo registrar músicas, danças, ritmos, festas, manifestações e rituais populares, instrumentos musicais e personagens do Nordeste e do Norte do país. De longe, Mário trocava cartas com Luís Saia e orientava o grupo.
Quando voltou, depois de quase seis meses e de percorrer mais de trinta cidades, a Missão trouxe um imenso material, horas de registros sonoros, fotos, filmes, desenhos, objetos e cadernetas de campo repletas de anotações sobre arquitetura, costumes, música, dança, folclores e rituais. Mas, como você bem sabe, Mário de Andrade já havia sido demitido do departamento. Imagino a tristeza e a perplexidade que devem ter sentido você, os componentes da Missão e os que compartilhavam aquele sonho! Mas imagino também que, ao criar a discoteca pública municipal, em 1935, ele já tinha tudo isso em mente e, antes de falecer, em 1945, quem foi a pessoa a quem ele confiou a tarefa hercúlea de transcrever e catalogar esse tesouro?
Foi você, caríssima Oneyda. Você, com sua perspicácia, sensibilidade e imensa capacidade de organização. Foi a você que o grande Mário confiou esse trabalho. Não é à toa que você deu nome à discoteca pública de São Paulo. Infelizmente, porém, ainda hoje, grande parte dessas e de outras manifestações ainda corre risco de desaparecer por descaso, preconceito e intolerância de uma sociedade que não tem olhos para reconhecer e valorizar manifestações populares de sua própria cultura.
Minha cara Oneyda, ao longo de sua vida, discreta e sem alardes, você estudou piano, música e etnografia, criou poemas (alguns deles musicados por grandes nomes), escreveu livros, pesquisou manifestações folclóricas, foi consultora em publicações de folclore, virou verbete de dicionário da música, nome de rua na capital paulista e na sua cidade natal, deu nome à discoteca pública de São Paulo, ganhou prêmios, homenagens, medalhas, foi elogiada aqui e fora do país, e foi tema de estudos, dissertações e teses. Ainda é.
Mas, mais do que isso, com seu olhar abrangente e de futuro, durante anos você trabalhou, com obstinação, documentando e preservando um universo que poderia ter desaparecido: durante as décadas de 30, 40 e 50, fez audições gratuitas semanais para despertar o gosto musical, formar público e, sobretudo, ensiná-lo a conhecer, valorizar e respeitar a música contemporânea e a nossa cultura, por meio de livros, discos e registros sonoros do nosso folclore. Ademais, reuniu, em livros, textos de Mário de Andrade sobre a cultura popular. No entanto, ainda que reconhecida e aplaudida por grandes nomes aqui e ali, na sua cidade natal você era pouco lembrada. Será esse o destino dos heróis da nossa cultura?
Nos anos 50, fomos contemporâneas na capital paulista. Enquanto eu nascia e crescia, você continuava dedicada de corpo e alma à tarefa que lhe foi dada por seu mentor e amigo. Anos mais tarde, nos anos 70, eu seguia as orientações de Mário de Andrade. Afinal, meu primeiro emprego também tinha o dedo dele: o Departamento do Patrimônio Histórico, da Secretaria Municipal de Cultura, em São Paulo. Quando comecei no DPH, em 1977, você ainda estava por aqui, na metrópole. Mário, não mais. Já tinha partido. Só o conheci, portanto, pela minha profissão, por documentos, livros e pelos resultados da famosa Missão, resultados divulgados a partir do seu trabalho, cara Oneyda.
No seu tempo, você lidou com poemas, escritos, pesquisas, bens culturais imateriais, sons, músicas, danças, catiras e cateretês, carimbó, tambores, bois-bumbás, cocos, reisados, congos, toadas... expressões imateriais da nossa mais pura brasilidade. Aliás, não me canso de admirar o impressionante material levantado pela Missão, até hoje pesquisado e revisitado; tampouco me canso de admirar seu admirável trabalho profissional, compilando e disponibilizando essa riqueza cultural para todos nós, cidadãos brasileiros.
No meu tempo, lidei com bens materiais para preservar nossa arquitetura, nossas técnicas construtivas, tão criativas e ricas em sua época. Melhor dizendo, tentei preservar; tentei muito naquela época e tento até hoje. Aqueles eram tempos difíceis no país – final dos anos 70, começo dos anos 80 – mas o DPH ainda era cheio de planos, como nós, um bando de jovens arquitetos sonhadores, entusiasmados (como você) e que acreditavam na missão de preservar e registrar nosso patrimônio a todo custo, por medo de que esses bens desaparecessem. Como, de fato, desapareceram tantos deles.
Imagino seu esforço e dedicação para se destacar naquela época. Uma mulher de aparência frágil em meio a um mar de homens. Muitos deles brilhantes, é verdade, mas homens. Nesse nosso mundo, não basta ser competente, a mulher deve ir além, deve ser brilhante e sem perder a ternura. Você foi! Imagino que deva ter enfrentado sarcasmo, inveja, preconceito, desprezo até. Mas você venceu, deixou sua marca. E que marca! Junto com você, venceram todos aqueles que estavam interessados em pesquisar, registrar e valorizar as manifestações folclóricas que são parte indissociável da identidade cultural brasileira. Seus nomes, assim como o seu, minha cara Oneyda, jamais sairão do panteão de guardiães do nosso rico patrimônio.
Depois, já no início dos anos 80, subindo e descendo as rampas do Centro Cultural São Paulo, quando lá trabalhei, eu via a discoteca, admirava aquele acervo, me encantava com a expressão de encanto e surpresa das pessoas ouvindo, com fones de ouvido, sabe-se lá o quê... Que trabalho maravilhoso o seu!
Caríssima Oneyda, onde você estiver, aceite meu reconhecimento sincero, meus aplausos por suas conquistas e minha gratidão por ter legado ao povo brasileiro, e de forma organizada, esse rico acervo das nossas manifestações culturais.
Hoje, anos depois de deixar o Centro Cultural São Paulo, de ver seu nome enfeitando (merecidamente) a fachada da discoteca pública municipal, depois de buscar divulgar na sua cidade natal a importância do seu legado e o pioneirismo do seu papel para pesquisar, divulgar e preservar a nossa cultura, volto a entrar na Discoteca Oneyda Alvarenga como se entrasse num templo inteiramente organizado e dedicado à cultura musical brasileira, graças à genialidade de Mário de Andrade, mas também ao afinco e à competência de uma mulher franzina, mas gigante em sua capacidade e visão. Não é só Varginha que deve ser grata a você, mas todo o Brasil, pela imensa contribuição à preservação e divulgação das nossas mais profundas raízes. Foi uma honra ter conhecido seu trabalho e ter vivido, em parte, no mesmo tempo em que você viveu!
Caríssima Oneyda, receba meu singelo e caloroso abraço de gratidão.
Anita Di Marco
Tradutora, arquiteta e professora
Referências
https://anitadimarco.blogspot.com/2017/08/ecos-culturais-ecos-de-oneyda-alvarenga.html
https://anitadimarco.blogspot.com/2023/09/ecos-literarios-cefet-e-oneyda-alvarenga.html
https://anitadimarco.blogspot.com/2022/06/ecos-culturais-oneyda-alvarenga-em-sua.html
Estou aqui pensando… Como esse trabalho rendeu desdobramentos. Parabéns pela carta!
ResponderExcluirForam propostas muito legais tanto o projeto Nômades como a exposição! Valeu, parceira! Bjs
ExcluirParabens pelo texto agradável/j.csmpos
ResponderExcluirQue lindo texto, Anita!! Muito obrigada por me apresentar o trabalho e a vida de Oneyda Alvarenga
ResponderExcluirAnne Greice Soares La Regina
Obrigada, querida. Vindo de você é um baita elogio.... Oneyda era especial demais! Beijos
ExcluirMulheres fortes e corajosas.Ela e vc. Parabéns à todos os que comprometeram em não deixar que sua obra caísse no anonimato.Beijos
ResponderExcluirIone Paiva
Aos que nãos deixaram que o patrimônio e a cultura caíssem no anonimato....e não há a menor comparação. Oneyda é top demais para isso. Mas obrigada pelo carinho..beijos .
ExcluirCaríssima Anita, como tbm Oneyda , recebem nosso reconhecimento e gratidão pelo pioneirismo, perseverança e dignidade diante dos desafios superados com ações criativas.
ResponderExcluirParabéns pelo texto e pela linda carta escrita a essa grande mulher que foi Oneyda. Ela no seu tempo e você nos oferece textos magníficos em seu Blog.Bebel
ResponderExcluirObrigada, Bebel. Generosidade sua, mas Oneyda é incomparável... Um monstro mesmo.....Beijos
ResponderExcluirParabéns Anita.Lindo texto👏👏👏
ResponderExcluirParabéns! Linda carta ♥️ beijo
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