segunda-feira, 21 de março de 2016

Línguas, Tradução & Poesia | Poetizando com paquidermes...


No dia da poesia, envio um lindo poema a vocês, de um lindo poeta...
Volta e meia, eu me pego elucubrando sobre a vida, a poesia e a forma de olhar. Já cheguei à conclusão (triste, eu acho) de que a gente só vê o que quer ver. Basta ver o que a maioria das pessoas anda vendo. Por mais que se mostre, que se aponte, que se descreva o que nós vemos, parece que há algum filtro ou certa cor na lente dos óculos daquele que olha, mas nem sempre vê. Ou vê de acordo com o filtro em suas lentes...a pessoa olha mas não vê. Não é cego, mas não enxerga....  Ou enxerga, mas não é capaz de ver. Ver o outro....
Triste cegueira que nos assola; a cegueira branca de Saramago, não da mente, mas do coração...

Isso vale para tudo: da culinária à arquitetura; da poesia ao romance; do sonho à realidade; da célula ao universo; do chão de nossa casa ao país. Quer ver só? Quer coisa mais esquisita, a princípio, para se fazer uma poesia do que um paquiderme? Isso mesmo, um bom paquiderme, daqueles: um elefante.
- Como assim, poesia com elefante? Você quer dizer elegante, pois não?
- Não....na, na, ni, na, não. É elefante, mesmo.
- Não acredito! 

Pois é, mas Drummond conseguiu fazer um lindo poema sobre o tal paquiderme e um elefante vira protagonista de um poema, no olhar dos que têm o dom, dos que ainda conseguem ver por trás da mera aparência, olham e veem 'através de'.

No livro A Rosa do Povo, "O Elefante" se destaca. O elefante e o poeta buscam...mas não encontram. Do que precisavam? O que buscavam? 
Como todos, buscavam o Amor, elemento articulador e agregador, caminho e verdade única, inexorável e fundamental. Nada, nada encontram. Voltam cansados da busca, mas no dia seguinte, sem desanimar, poeta e elefante recomeçam.


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) dispensa apresentações. Nasceu em Minas e saiu da vida no Rio de Janeiro, mas começou a deixar de viver a partir da morte de sua filha Maria Julieta, ocorrida pouco tempo antes. O poeta e cronista de Itabira foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, então Ministro da Cultura, e depois funcionário do SPHAN - Serviço Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (de 1945-1962), convivendo com figuras do porte de Mário de Andrade, Lúcio Costa, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Manuel Bandeira, Luiz Saia,  Rodrigo Melo Franco de Andrade. Drummond nos deixou alguns dos mais belos poemas e escritos do século 20. 
Um verdadeiro monstro, com aquele seu olhar pequeno, atrás dos indefectíveis óculos, um olhar agudo que perfurava e que via além. 

O Elefante (1983)
 [Carlos Drummond de Andrade em A Rosa do Povo]

Fabrico um elefante de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira, tirado a velhos móveis, talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão, de paina, de doçura.
A cola vai fixar suas orelhas pensas.
A tromba se enovela; é a parte mais feliz de sua arquitetura. 


Mas há também as presas,
dessa matéria pura que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos, onde se deposita
a parte do elefante mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.


Eis o meu pobre elefante pronto para sair 
à procura de amigos num mundo enfastiado, 
que já não crê em bichos e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente  e frágil, que se abana
e move lentamente a pele costurada
onde há flores de pano e nuvens, alusões
a um mundo mais poético 

onde o amor reagrupa as formas naturais.

Vai o meu elefante pela rua povoada,
mas não o querem ver nem mesmo para rir
da cauda que ameaça deixá-lo ir sozinho.


  É todo graça, embora  as pernas não ajudem 
e seu ventre balofo se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância sua mínima vida,
e não há cidade alma que se disponha
a recolher em si, desse corpo sensível
a fugitiva imagem,   o passo desastrado
mas faminto e tocante.
 


Mas faminto de seres e situações patéticas,
de encontros ao luar no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai sem esmagar as plantas
no campo de batalha, à procura de sítios,
segredos, episódios não contados em livro,
de que apenas o vento, as folhas, a formiga
reconhecem o talhe, mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.


E já tarde da noite volta meu elefante, mas volta fatigado, 
as patas vacilantes  se desmancham no pó.
Ele não encontrou o de que carecia,
o de que carecemos, 

eu e meu elefante, em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa, caiu-lhe o vasto engenho como simples papel.
A cola se dissolve e todo o seu conteúdo 

de perdão, de carícia,  de pluma, de algodão,
 jorra sobre o tapete, qual mito desmontado.
Amanhã recomeço. 

Referências: 
https://osuspirodopoeta.wordpress.com/academico/critica-dialetica-em-o-elefante-de-drummond/  

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